terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Petiscos de Lisboa por Eduardo Fernandes, o Esculápio (1 de 3)

Estamos perto do Carnaval, minhas senhoras e meus senhores, e não é de estranhar, portanto, que, apesar da pastoral dos excelentíssimos e reverendíssimos bispos condenar os divertimentos pagãos desta quadra, o grupo dos "Amigos de Lisboa" se lembrasse de incluir no ciclo das suas conferências — arremêdo simplista das tão debatidas conferências do Casino, agora de novo em discussão por doutos oradores — uma palestra um tanto de Entrudo, que divertisse, em vez de levar o auditório para o campo da pré-história e da arqueologia, ministrando-lhe sábios conhecimentos ácêrca dos antecedentes sérios e dignos de estudo da tão decantada terra de Ulysses, a cidade de mármore e de granito, na divina expressão de um glorioso escritor.

Eduardo Fernandes (1870-1945) Esculápio.

Palestra um tanto de Entrudo, digo eu, não porque lhes vá descrever o que foi o Carnaval dos meus tempos de infante, tantas vezes já descrito, mas porque, tendo·me sido entregue o cometimento, na minha qualidade de antigo e popular gazetilheiro, "alfacinha da gema" — nasci na Bica — e frequentador assíduo, desde rapaz, dos recantos e recintos onde se gosava a vida e consolava o estômago, eu me proponho distraí-los um pouco com a descrição e apreciação do que eram os ágapes do povo em tempos idos e referir-lhes quanto a cidade do Tejo, com os seus originais petisquinhos, comidas e bebidas, concorreu sempre para o estímulo dos vários sucos que protegem e auxiliam as boas e reconfortantes digestões. 

Não é propriamente, pois, um assunto carnavalesco, mas é um assunto com o seu quê de humorístico e está, portanto, bem e tem "cabidela" — passe o termo popular e o petisco — na pessoa que o tomou por tema e na quadra que estamos atravessando. 

O facto de se tratar de um "alfacinha", ou seja, de um filhote de Lisboa, e o de ser esta a terra do mármore e do granito, vêm a propósito. Nada melhor para reconfortar a tripa do que a alface repolhuda, verde e encaracolada, cuja excelência deu curso ao apodo porque são conhecidos os oriundos desta cidade, e nada mais aconchegador do que um calicesinho de granito [licor anisado com plantas aromáticas], após uma copiosa e pantagruélica ceia. 

Podia eu aqui, repito, descrever-lhes o Carnaval de há 50 anos, começando pelas origens romanas da celebrada festa, enveredando pela descrição dos cortejos do "Club dos Salsas", pelas pelejas no Chiado do "Turf Club" do "Tauromáquico", pela descrição dos assaltos e dos "salsifrés familiares" de então, os "bailes públicos" de S. Carlos, do Trindade, de D. Maria e do Coliseu; pelos velhos tipos do "ché-ché" ou "velho de Entrudo", o "galego", o "fralda de camisa", o "dominó", a "pastorinha", a "velha de capote"; pela animação das antigas batalhas de flores e os grandes cortejos no "corso" da Avenida; pela história das "danças da luta" da Bica, da Mouraria e de Alfama, os batalhões populares de vários bairros que tinham vassouras por espingardas e traziam, na retaguarda, o carro das munições e o da cosinha, tão característicos; enumerar-lhes os populares pregadores como o endemoninhado "Zé Augusto", que morreu sem se saber como na Rua de Santa Bárbara, e o engraçado "Rei da Madureza", que morreu do mesmo modo em um vão de escada; citar-lhes as "cégadas", os "grupos musicais" e as "danças dos padeiros" e das "varinas", as máscaras célebres, a "Saloia dos Carnavais" e muitas outras coisas, porque havia pano para mangas. 

Não tive, porém, tempo para coligir os meus apontamentos e os meus conhecimentos do assunto, pelo que já pedi desculpa à direcção do nosso grupo e a peço agora a Vocelências. Prefiro apresentar-lhes a ementa do meu desataviado discurso, deixando o Carnaval para outros mais eruditos e estudiosos, intitulando-o "Os Petisquinhos de Lisboa". Faço-o como o antigo galego, serviçal das casas de pasto, que, nos tempos de outrora, em vez de nos dar a lista das comidas e bebidas, como o faz actualmente, se perfilava ante o freguês e começava:

— Tem "bomecê", multo belamente, cabeça de "pórco", orelha e chispe, carne de "báca" p'rá grelha, "canôas"...

E era um nunca acabar de petisqueiras que o galego enunciava com a presteza com que nós resamos um Padre Nosso, terminando, sempre, a concluir a prelenga, com o consagrado: "e tem-me a mim e ao mestre", como quem diz que estavam às nossas ordens êle e o mestre cosinheiro que confeccionava os piteus.

[Iscas com e sem elas]

Começarei pelas "iscas", as "saborosas iscas com elas e semelas". "Semelas" porque, em certa tasca, o letreiro que as anunciava, juntára as palavras "sem" e "elas" numa só.

Custavam um vintem "sem elas", e trinta réis "com elas", ou seja com batatas cosidas e cortadas às rodas, que lhes davam um sabor particular. O vinho das iscas era especial e com um "bouquet sui generis", como era especial a conserva que vendiam para acompanhar o petisco, feita de pimentos partidos em bocados e tiras de cenoura, tudo de infusão num vinagre forte, a que se juntava, ao ser servida, num pratinho muito pequeno, igual áquele onde se serviam as iscas, um ligeiro fio de azeite e um golpe de vinagre expelido por uma garrafa cuja rôlha fôra recortada à laia de regador.

O galego, que confeccionava o fígado de vaca de que se faziam as iscas, armado de uma faca enorme e espalmada como as que os judeus empregam para imolar as rezes no Matadoiro, sabia cortá-lo em folhas de uma espessura transparente, com grande perícia e habilidade, espalmando a mão esquerda sôbre o flgado sanguinolento e abrindo-o finamente com o facalhão.

As "iscas" transitavam dêste para um alguldarão onde tinham previamente feito um escabeche, ou salmoura de vinagre, raspas de baço, alho, loiro, sal, pimenta e outros ingredientes e tempêros, ficando ali a aboborar largo tempo, tapado o alguidar com uma tampa de madeira e movido o seu conteúdo, de quando em quando, com um enorme e comprido garfo de ferro, que servia para arremessar depois as "iscas" à frigidelra sôbre a banha de porco que fervia.

A banha tinha-a o galego perto, em grandes boiões de barro, donde a extraia com uma monstruosa colher de pau, às vezes até só com os dedos, e a frigideira só lá de tempos a tempos se lavava, acumulando os resíduos das iscas de muitos meses, que vinham dar o seu particular sabor às "iscas" que começavam a ferver e eram, depois de passadas no riquíssimo e apetitoso môlho, estiradas com o citado garfo no pratinho, depois de reduzidas na frigideira, com o mesmo garfo, a exíguas dimensões.

As batatas estavam cortadas àparte, no tacho onde haviam sido cosidas, e eram espalhadas à mão sôbre o pratinho.

— Mais uma com elas! "Bae" um de conserva! — gritava o criado, em meio dos fregueses, em mangas de camisa, grandes sapatorros, sem gravata e com um barretlnho de côres enfiado no alto da cabeça.

— "Bae"! "Bae"! — respondia o cosinhelro, retirando iscas do alguidar para as levar à frigideira.

Mas como sabiam e eram agradáveis ao paladar aquelas palmetas de fígado, apesar da pouca higiene da casa, da falta de asseio dos galegos e da ausência de comodidades.

Ninguém as comia em familila com mais gôsto, e só os galegos lhes davam aquele precioso tique saboroso que apenas tinha como rival o cheiro particular do petisco, o qual atulhava as ventas do freguês e o atraia ao antro, lá de longe, visto que as visinhanças da tasca se impregnavam do mágico odor a que ninguém resistia.

A "casa das iscas" era manhosa e acanhada, com os seus bancos corridos e mesas de madeira, às vezes sem toalha, e os garfos pendiam, em algumas delas, de correntes que os ligavam às mesas, não fôssem os fregueses safar-se com êles após o repasto.

O cosinheiro tinha quási sempre o seu fogão cêrca da porta da rua, áquem da qual o rapasio, armado com anzóes pendentes de bengalas e paus, "pescava" muitas vezes a sua isca com grande desespêro dos "chuços", empregados do estabelecimento.

A primeira "casa de iscas" que eu conheci em Lisboa era ao Salitre, entre o velho circo do Price e o vetusto teatro das Variedades, multo frequentada à noite pelos espectadores das duas casas de espectáculo.

Antigo Circo Price, demolido para a abertura da avenida da Liberdade,
desenho do natural por Casellas in O Occidente 1883.
IHemeroteca Digital

O criado de mesa era um corcunda muito popular na cidade, não havendo ninguém que não conhecesse o "Marreco das iscas", pois que, nesse tempo, "ir às iscas" ou "ir comer uma isca", um pratinho de conserva, um quarto de pão e dois decilitros, à espelunca, era coisa vulgar, custando todo aquele suculento banquete a módica quantia de 70 réis.

Segulram-se em notoriedade as "iscas do Arsenal", ou do "Cotovelo", instaladas na loja que torneja da rua daquele nome para a travessa dêste, onde hoje está um moderno estabelecimento de alfaias agrícolas.
No tempo das patuscadas 
Das guitarras e touradas
Das hortas, do carrascão 
Eram as iscas o prato 
De mais consumo e barato
Na vida dum cidadão

E ninguém se envergonhava 
Toda a gente que passava 
Entrava nessas vielas 
A gente sentia-se bem 
Sendo simples era um vintém 
Trinta réis se eram com elas

Se ao longe vinha um parceiro 
E o cheirinho lhes sentia 
Até mesmo apetecia 
Comê-las só pelo cheiro 
E a sua fama foi tal; 
O povo então era vê-lo: 
Travessa do Cotovelo 
E Rua do Arsenal

Hoje tudo isso mudou 
A taberninha acabou 
Desapareceram os becos 
Os cocheiros são chauferes 
Vigaristas, soutneres 
E os casqueiros, papo-secos

Se os meninos odaliscas 
Comessem um prato d'iscas 
Daquelas bem temperadas 
Morriam de indigestão 
Não bebendo um garrafão 
D'água das Pedras Salgadas

Fado das iscas, José de Oliveira Cosme/Jaime Mendes, Repertório de José Freire
Multas vezes ali fui, com alguns malandrotes da minha idade, ao "pescanço das iscas" e, até, de uma vez, acertando com o anzol no cabo da frigideira, a voltei e fiz entornar o môlho, valendo-me a façanha o ter vindo o galego atrás de mim, de garfo em punho, até ao largo da Biblioteca, onde por uma unha negra não fui pilhado e sacrificado pelo hercúleo e figadal inimigo — passe o adjectlvo sem "calembourg".

Na travessa de S. Domingos, defronte da Igreja, no recanto, havia e há outra "casa das iscas". Aformoseou-se, porém, e, hoje, está convertida em uma espécie de casa de pasto, com petiscos vários, embora as iscas figurem ainda na ementa, mas já sem o "savoir faire" do espadaúdo galego que as manipulava, pois que eram das melhores e mais saborosas de Lisboa.

Na rua da Atalaia, no Bairro Alto, como quem vai para o Cunhal das Bolas, outra "casa de iscas" teve fama, mas com desgosto vi, há tempos, a casa também a transformar-se, sem a tosca mesa de madeira que havia no vão da escada, perto dos boiões de banha de porco, sem a frigideira e o alguidar das iscas à porta, sem, enfim, o pitoresco e o original do glorioso piteu de outros tempos.

Também se modificou uma casa de iscas que havia na Travessa da Queimada, à esquina de S. Roque, junto do antigo café dos jornalistas, assim chamado por nele se reunirem de manhã cedo os vendedores de jornais. E outra casa de iscas da Travessa da Palha emparelhou, deixando a especialidade, com as casas de pasto que ora enxameiam a rua e oferecem petiscos baratos à freguesia. (1)

Muitas outras "casas de iscas" houve em Llsboa: a do Romão, galego, às Portas de Santo Antão, onde está hoje o Politieama; em Santo António da Sé, no Calhariz, na Calçada do Combro, nas Janelas Verdes, em Belém, em Alfama, mas quási tôdas deram a alma ao Criador. O petisco passou de moda e já não é costume "ir às iscas". Apenas no Largo do Carmo, na esquina que volta para a Travessa da Trindade, uma casa do género se estadeia ainda e tem à porta um letreiro original que começa pelo seguinte: "Iscas Permanentes".

Por aqui se vê como as iscas de fígado estão pegadas à tradição.

A "casa das iscas" do Largo do Carmo — vá lá uma pequena digressão do assunto, que vem a propósito — foi antigamente uma oficina de fabricação de baús, instituída por um galego de apelido Barral que teve dois filhos: um, o abalisado médico João Gregório, mais conhecido pelo Baüleiro, em razão da profissão do pai, que me tratou de um ataque de anemia aos 7 anos, e outro o farmacêutico Barral, da antiga botica da rua do Ouro, pai do "sportman" João Barral, que foi meu condiscípulo e deu brado em Lisboa com as equipagens em que transportava ao Campo Pequeno o tão falado espada "Guerrita", o qual, segundo li, está a morrer em Córdova (e morreu, efectivamente, passados dias desta conferência).

Iscas com elas ou sem elas?...
O Notícias Ilustrado n.° 39, 10 de março de 1929

Voltando à vaca fria, ou, quero dizer, "às iscas": também o "Magina", a casa de pasto da rua de Santo Antão, armou em "casa das iscas", mas deixou o negócio e transformou-se em "bar" e em "restaurant", engeltando os populares "bifes de cabeça chata", como, em calão de pelintras, se designavam em tempos as mimosas lascas de fígado de vaca.

Armazém das iscas:
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=273595&AplicacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1

Era no tempo em que o fígado se vendia pelas ruas, à mistura com o bofe e a fressura, em caixas de madeira sanguinolentas, com o fel pendurado, às costas de vendilhões, também cobertos de sangueira, um facalhão espetado na mercadoria, e a gente ia às vezes comprá-lo às "casas" ou "armazéns de iscas", pois tinham também esta imodesta designação, para "entalar" uma "isca" num quarto de pão e fazer do petisco um confortável lanche. (2)



(1)  Olisipo n.° 15, julho de 1941
(2)  Olisipo n.° 16, outubro de 1941

Artigos relacionados:
Chanfana (1 de 2)
Chanfana (2 de 2)

Leitura relacionada:
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.

domingo, 1 de novembro de 2020

George Landmann em Portugal (1808-1810)

Tendo ingressado em 16 de Abril de 1793, como cadete, na Royal Military Academy (Londres), instituição onde o seu pai, Isaac Landmann (1741-1826?), era professor de artilharia e fortificação, George Thomas Landmann embarcou para Portugal em Maio de 1808, quando havia já sido promovido a capitão dos Royal Engineers (1 de Julho de 1806), integrado nas forças do General Spencer (1760-1828), que vinham juntar-se às tropas de Sir Arthur Wellesley (1769-1852), futuro duque de Wellington [...]

Lt. Colonel George Thomas Landmann (1779–1854).
Greenwich Industrial History

Em Portugal, Landmann não só supervisionou com competência obras de engenharia militar — nomeadamente a construção de duas pontes de barcas e uma ponte provisória, respectivamente em Abrantes, Punhete, hoje Constância, e Vila Velha de Rodão, em Dezembro de 1808 —, fez reconhecimentos, inspecções, e elaborou relatórios, como comandou o pequeno corpo dos Royal Engineers durante as batalhas da Roliça e do Vimeiro, de que deixou detalhado registo, como já atrás dissemos, na segunda parte das suas memórias, que ficariam incompletas [...]

Em 1809 Landmann deixou Portugal e passou a Espanha, onde os seus bons serviços foram reconhecidos e lhe valeram comissões no exército espanhol. 

Em Dezembro de 1810, após uma estada de alguns meses em Inglaterra por motivo de doença, foi nomeado agente militar na Península e regressou uma vez mais a Lisboa, para entregar despachos a Wellington no Cartaxo. 

Seguidamente dirigiu-se para Espanha, onde viria a ser ferido em combate no dia 7 de Janeiro de 1811. Em Março do ano seguinte, muito debilitado, retornou a Inglaterra, na companhia do embaixador espanhol, para não mais voltar à Península Ibérica. (1)

É só no segundo volume de Recollections of My Military Life que encontramos o relato do que Landmann viu e sentiu em Portugal ao tempo da invasão deste país pelas tropas de Junot, pois o primeiro diz respeito ao período entre 1806 e 1808, quando o autor esteve colocado em Gibraltar. 

De notar que o estilo de narrativa adoptado poucos anos antes em Adventures and Recollections, e que fora muito bem acolhido pelo público — vivo, bem-humorado, rico em episódios acontecidos com figuras gradas do meio militar e da aristocracia ingleses, aos quais Landmann tinha acesso graças às suas origens e profissão —, se mantém, e constituiu, aliás, uma das principais razões do êxito da obra, como podemos concluir da leitura de excertos de recensões críticas favoráveis vindas a lume na imprensa periódica britânica e reproduzidos pela editora Hurst and Blackett em anúncios publicitários que inseriu noutros títulos que deu posteriormente à estampa [...]

Seguindo uma organização cronológica, Landmann oferece-nos uma narrativa que, embora centrada na vivência pessoal do memorialista, se alarga a um colectivo — o exército britânico em campanha em Portugal —, fornecendo-nos o retrato de um eu compartilhado, por assim dizer [...]

Ao contrário de muitas narrativas sobre a Guerra Peninsular escritas por compatriotas seus, não encontramos, na de Landmann, longas tiradas sobre as atrocidades cometidas pelo inimigo napoleónico. Recollections of My Military Life fala-nos, essencialmente, do oficialato inglês a que o autor pertencia, e representa, nessa medida, um contributo para o reconstituir da história geral do quotidiano do exército britânico em Portugal ao tempo da primeira invasão francesa. 

Ao registar pela escrita, para além de cenas que tocaram a sua sensibilidade, os grandes momentos vividos, especialmente os rememorados com particular satisfação pessoal — o facto de Arthur Wellesley ter seguido as suas sugestões quanto à estratégia a adoptar para atacar as forças francesas na Roliça, o sabor das vitórias alcançadas sobre o inimigo, o reconhecimento do valor dos mapas que desenhou, o jantar com o futuro duque de Wellington em Santo António do Tojal, a participação num grandioso pequeno-almoço público oferecido por Junot em Lisboa em Setembro de 1808 —, George Landmann procura também, claro está, autopromover-se, subtrair-se ao esquecimento e inscrever o seu nome nesse período crucial da história da Europa. (2)


(1) Maria Zulmira Castanheira, A primeira campanha do exército britânico em Portugal ao tempo da Guerra Peninsular, recordada pelo militar inglês George Thomas Landmann... Revista de estudos anglo-portugueses n.° 18, 2009
(2) Idem

George Landmann:
Historical, military and picturesque observations on Portugal v. 1, 1818
Historical, military and picturesque observations on Portugal v. 2, 1818
Recollections of My Military Life v. 2. 1854

RTP Arquivo:
Destaque para a obra do General e engenheiro britânico que esteve em Portugal na altura da Guerra Peninsular no século XIX...

Leitura relacionada:
Guerra Peninsular – 200 anos
A guerra peninsular : perspectivas multidisciplinares ; Congresso Internacional e Interdisciplinar Evocativo da Guerra Peninsular, integrando o XVII Colóquio de História Militar nos 200 Anos das Invasões Napoleónicas em Portugal, Actas

Revista de estudos anglo-portugueses:
Arquivo

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

O Porto de Lisboa por Alexandre-Jean Noël

De acordo com o título, foi tirada "do centro do porto, entre o Monte Santa Catarina e a Villa de Almada, a bordo do navio de Guerra S. Sebastião*". 

The Harbour of Lisbon, Alexandre-Jean Noël.
British Library

Como em todas as vistas de Noël, o primeiro plano é preenchindo por detalhes anedóticos e pitorescos: marinheiros no seu trabalho num pequeno navio ao lado de um barco a bordo do qual alguns homens em trajes orientais fumam. 

The Harbour of Lisbon (detail), Alexandre-Jean Noël.
British Library

Outro grupo de marinheiros bebe e come uvas, passageiros são transportados numa embarcação e um casal dança sobre uma balsa, entre homens que tocam viola e outas pessoas que observam, incluindo uma criança. 

The Harbour of Lisbon (detail), Alexandre-Jean Noël.
British Library

Num pequeno barco amarrado à balsa, um homem dorme, possivelmente embriagado, enquanto que o seu companheiro trajando capuz [religioso] e tonsurado continua a beber de uma malga. 

The Harbour of Lisbon (detail), Alexandre-Jean Noël.
British Library

A Praça do Comércio com a estátua equestre do rei D. José I pode ser vista no fundo, à direita. Edifícios em ruínas e dois guindastes aparecem como recordações da destruição causada pelo terramoto de 1755, do qual a cidade não recuperou completamente. (1)

The Harbour of Lisbon (detail), Alexandre-Jean Noël.
British Library

Espalhadas por entre as vistas da "Topographical Collection" de George III [British Library], há três gravuras assinadas por François Allix (c. 1753-1794) que pertenceram à mesma fracassada série  de "Spanish and Portuguese ports". 

Estas vistas de Cádiz, Cartagena e Lisboa segundo desenhos de Alexandre Jean Noël (1752-1834) foram publicadas entre 1788 e 1790. Não são datadas, mas, de acordo com dois anúncios no Journal de Paris, as vistas de Cádiz e Lisboa apareceram em 20 de novembro de 1788, enquanto a vista de Cartagena não foi publicada até junho de 1790. (2)

Lisboa Arte Gravura The Harbour of Cádiz Alexandre Jean Noel 1796 British Library 01.jpg

A informação de uma pretendida "Collection des Ports d’Espagne et de Portugal" apaceu no anúncio das primeiras duas vistas publicadas no Journal de Paris em 18 de novembro de 1788.

De acordo com esta fonte, a série seria a continuação de "the collection of views of Ports of France, engraved by M.M. Cochin & le Bas, after the paintings made for the King by M. Vernet." cobrindo toda a Europa. O projecto teve a benção de Claude-Joseph Vernet (1714–1789), que tinha já recomendado o seu antigo aluno Noël para acompanhar a expedição científica de Jean Chappe d’Auteroche ao México e Baja California. Mais ainda, os trabalhos de Noël seriam riscados e gravados por François Allix, que estudara sob Jacques-Philippe Le Bas (1707–1783).

Lisboa Arte Gravura The Harbour of Cartagena Alexandre Jean Noel 1796 British Library 01

O anúncio explicava que Noël tinha viajado em Espanha e Portugal entre 1780 e 1782.

Ele, provavelmente, incluiu-se nas vistas de Cádiz e Cartagena como o desenhador acompanhado pelo cão e pelo assistente segurando um portfolio de maneira a dar ênfase aos seus trabalhos desenhados no lugar.

Lisboa Arte Gravura The Harbour of Cádiz Cartagena Alexandre Jean Noel 1796 British Library (detalhe).psd

Os "Portos" apelariam a ambos, gosto e intelecto, através do "agradavel ar de verdade" garantido pelas credenciais científicas do pintor e pela sua escolha de cenas "belas" e "pitorescas" [...]

Não foram encontradas até hoje mais vistas da série. Uma das razões possíveis para o fracasso da empresa de Noël pode ter sido a falta de tempo.

The Harbour of Lisbon (detail), Alexandre-Jean Noël.
British Library

O conde de Fernán Núñez deixou o seu posto de embaixador espanhol em Paris em 1791 como consequência da Revolução Francesa, Allix morreu durante o Terror em 1794 e Noël parece ter partido para o exílio em Portugal cerca de 1791 [v. B. Madeira, A Emigração Francesa em Portugal durante a Revolução, Lisboa, 1984, pp. 19–20]. (3)
* S. Sebastião" (1767-1832) — Nau de 64 peças que foi lançada à água no Rio de Janeiro em 8 de Fevereiro de 1767. Tomou parte na expedição a Roussillon em 1793 e na campanha do Mediterrâneo de 1798 a 1800 em socorro da Inglaterra.
Em 1832 foi desmanchada por inútil.
cf. Cmdt. António Marques Esparteiro, Catálogo dos navios brigantinos (1640 - 1910)

(1) Mercedes Cerón, Alexandre Jean Noël's collection of Spanish and Portuguese ports (1788–1790)
(2) Idem
(3) Idem, ibidem

Artigos relacionados:
em Eventualmente Lisboa e o Tejo;
em Almada virtual.

domingo, 19 de julho de 2020

Panoramas de Lisboa e Clement Lemprière

Em causa está um desenho [colecção José Manuel Conceição] de uma vista panorâmica da frente ribeirinha de Lisboa e arredores (a que nos passaremos a reportar como desenho) compreendida entre a zona da Ribeira Velha (a oriente) e a Torre de Belém (a ocidente). 

Vista Panorâmica de Lisboa (segmento central), Clement Lempriere, atribuído, c. 1709,
colecção José Manuel Conceição.
Gabinete de Estudos Olisiponenses

Desenho não assinado e não datado, sobre suporte de papel, à pena (?), tinta e aguada cinza. Com uma dimensão total de 28,1cm (alt.) por 132,6 cm (larg.), apresenta-se dividido em três segmentos que se encontram originalmente soltos, de medidas idênticas [...]

No sentido de apurar as diferenças e as semelhanças nas representações de Lisboa e no desenho em estudo, apresentamos uma montagem de pormenores a partir do corpus iconográfico, que permitem a identificação e a leitura da estrutura das construções dos seguintes edifícios: igrejas de São Paulo e Santa Catarina, fortificações da Porta do Pó, São Paulo e Remolares.  


Zona entre a Boavista e o Cais do Sodré no corpus iconográfico
Uma vista desconhecida de Lisboa antes do Terramoto- problemáticas e possibilidades in
A IMAGEM DE LISBOA
O Tejo e as Leis Zenonianas da Vista do Mar
Gabinete de Estudos Olisiponenses

Todos estes monumentos, já desaparecidos, localizavam-se entre a Boavista e o Cais do Sodré pré-terramoto. 

A atual Igreja de São Paulo, que é uma referência nesta parte de Lisboa, foi erguida a partir de 1768 no local onde estava anteriormente o largo da primitiva Igreja de São Paulo, destruída pelo terramoto. 

Quanto à proeminente igreja quinhentista de Santa Catarina, que sofreu várias destruições e reconstruções, viria a ser abandonada no século XIX. Estava localizada onde atualmente se encontra o Museu da Farmácia. 

As fortificações que se fizeram nesta zona ribeirinha de Lisboa, erguidas durante a dinastia filipina e a Restauração, foram sendo destruídas ao longo do século XIX. Tal foi o caso de um esquecido Baluarte da Porta do Pó (a ocidente da Rua de São Paulo); do Baluarte de Remolares (Cais do Sodré) e do Forte de São Paulo (em frente da antiga igreja do mesmo nome), estruturas militares que foram reforçadas na conjuntura que marcou a intervenção portuguesa na Guerra da Sucessão de Espanha.

DIRCK STOOP 1662

Gezicht op de stad en de haven van Lissabon, Dirk Stoop, 1662.
Rijksmuseum

PIER MARIA BALDI 1669 

Viaje de Cosme de Médicis por España y Portugal (1668-1669), Pier Maria Baldi.

PIER AVELINE 1692 (?)

Lisbone, Ville capitale du Royaume du Portugal... Pierre Aveline (1656-1722) entre 1680 e 1720.

GABRIEL DEL BARCO C. 1699 

Grande Panorama de Lisboa, Gabriel del Barco, c. 1699, Museu Nacional do Azulejo.
Gabinete de Estudos Olisiponenses

CLEMENT LEMPRIERE c. 1709

Vista Panorâmica de Lisboa, Clement Lempriere, atribuído, c. 1709, colecção José Manuel Conceição.
Gabinete de Estudos Olisiponenses

FRIEDERICH SCHOENEMANN 1756 (des. ant. 1697)

Lissabon, Friederich Schoenemann, 1756.
LUNA

JOSÉ PINHÃO DE MATOS C. 1730

D. João III e o núncio apostólico da Índia, ou A partida de São Francisco Xavier em 1541,
aut. desc. José Pinhão de Mattos, c. 1730.
Imagem: Wikipédia

PETER MONAMY C. 1735

The British Fleet Sailing into Lisbon Harbour, Peter Monamy, 1735.
Charles Harrison-Wallace

CLEMENT LEMPRIERE C. 1735

A Plan of the City of LISBON Situate on the Mouth of the River TAGUS (detalhe), in A Prospect thereof, and a Representation of the British Fleet Sailing into the Harbour in the year 1735. Desenho de Clement Lempriere.
Gabinete de Estudos Olisiponenses

CLEMENT LEMPRIERE 1756 (des. 1709?) (1)

The view of the city of Lisbon, C. Lemprière, publ. 1756.
Cabral Moncada Leilões

O CONTEXTO DA PRODUÇÃO DO DESENHO

Entre a guerra da Sucessão de Espanha e a entrada da armada inglesa de Sir John Norris em Lisboa (1701-1735). (2)

Chegada da frota Holandesa-Inglesa Carlos III (Arquiduque Carlos da Áustria) a Lisboa, 7 de março de 1704.
Rijksmiuseum

A guerra da Sucessão de Espanha foi motivada pela morte sem descendência do Rei Carlos II, deixando como sucessor um membro da casa de Bourbon, o neto de Luís XIV, Filipe de Anjou [v. artigo dedicado: Jornada de Carlos III a Lisboa] [...]

A pretexto de proteger os interesses comerciais britânicos e do restabelecimento da paz na Península Ibérica, a Inglaterra anuiu enviando uma frota de guerra sob o comando do Almirante John Norris. Não chegou a haver conflito, sendo a questão solucionada pela via diplomática em 1737. O evento foi tema da planta com a Vista de Lisboa da autoria de C. Lempriere impressa talvez cerca de 1740. 

A Prospect thereof, and a Representation of the British Fleet Sailing into the Harbour in the year 1735.
Desenho de Clement Lempriere.
Gabinete de Estudos Olisiponenses

O mesmo episódio inspirou a pintura, de que também já falámos, de Peter Monamy The British Fleet Sailing into Lisbon Harbour. (3)


(1) Uma vista desconhecida de Lisboa antes do Terramoto, Gabinete de Estudos Olisiponenses
(2) Idem
(3) Idem, ibidem

Artigos relacionados:
Vistas de Lisboa (1)
Vistas de Lisboa (6)
etc.

Tema:
Vistas de Lisboa

Leitura relacionada:
Uma vista desconhecida de Lisboa antes do Terramoto, Gabinete de Estudos Olisiponenses

Leitura relacionada por Charles Harrison-Wallace:
Captain Clement Lemprière (1683-1746)
Panoramia, zooming in on Lisbon Greenwich Constantinople
Lisbon: Clement Lemprière
More on Lisbon
Lisbon, before and after 1755

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domingo, 28 de junho de 2020

Fado VIII, Alfredo Marceneiro e outros (com o moinho por tema)

(quadras soltas)

Junto ao moinho cantando 
Lavam roupa as lavadeiras 
Os patos brincam nadando 
Arrulham pombos nas eiras

Às vezes contemplo o moinho 
Que além de velho, não cai 
Formado no casalinho 
Que era do pai do meu pai

Variações sobre o fado, Panorama n.° 25-26, 1945.
O natal do moleiro (Henrique Rego/Alfredo Marceneiro)

Que noite de Natal tristonha, agreste 
De neve amortalhava-se o caminho 
O vento sibilava do nordeste 
Nas frinchas das porta do moinho 

Sentada à velha mó já carcomida 
Onde incidia a luz duma candeia 
O moleiro de barba encanecida 
Com a mulher comia a parca ceia

Próximo do moinho, ouviu-se em breve 
Uma voz, e o moleiro abrindo a porta 
Viu um velhinho todo envolto em neve 
Vergado ao peso duma esperança morta

Entrai, meu peregrino da desgraça 
Disse o moleiro ao pálido ancião 
Aqui não há dinheiro, existe a graça 
De haver carinho, piedade e pão 

Vinde comer, agasalhar-se ao lume 
Festejar o nascer do Deus Menino 
Porque a vida somente se resume 
Na escravidão imposta pelo destino

E então o velhinho, numa voz sonora 
Pronunciou, levando as mãos ao peito 
Abençoado seja a toda a hora 
Este moinho que é por Deus eleito 

Moinho desmantelado (Henrique Rego/Alfredo Marceneiro)

Moinho desmantelado 
Pelo tempo derroído 
Tu representas a dor 
Deste meu peito dorido 

É grande a tua desgraça 
Ao dizê-lo sinto pejo 
Porque em ti apenas vejo 
A miseranda carcaça 
Perdeste de todo a graça 
Heróica do teu passado 
Hoje ao ver-te assim mudado 
Minh’alma cora e descrê 
Quem te viu, e quem te vê 
Moinho desmantelado 

Moinho pombo da serra
Que triste fim tu tiveste 
Alvas farinhas moeste 
Pró povo da tua terra 
Hoje a dor em ti se encerra F
oste votado ao olvido 
Foi-se o constante gemido 
Dessas mós trabalhadoras 
Doce amante das lavouras 
Pelo tempo derroído 

Finalizas tua vida 
Em fundas melancolias 
Às tristes aves sombrias 
Hoje serves de dormida 
No teu seio das guarida 
Ao horrendo malfeitor 
Tudo em ti causa pavor 
É bem triste a tua sorte 
Sombria estátua da morte 
Tu representas a dor

Junto de ti eu nasci 
Oh meu saudoso moinho 
E do meu terno avozinho 
Quantas histórias ouvi 
Agora tudo perdi 
Sou pela dor evadido 
Vivo no mundo esquecido 
Moinho que crueldade 
És o espelho da saudade 
Deste meu peito dorido. 

Lembro-me de ti (Joao Linhares Barbosa/Alfredo Marceneiro)

Eu lembro-me de ti 
Chamavas-te Saudade 
Vivias num moinho 
Tamanquinha no pé 
Lenço posto à vontade 
Nesse tempo eras tu 
A filha do moleiro. 

Eu lembro-me de ti 
Passavas para a fonte 
Pousando num quadril 
O cântaro de barro 
Imitavas em graça 
A cotovia insonte 
E mugias o gado 
Até encheres o tarro. 

Eu lembro-me de ti 
E às vezes a farinha 
Vestia-te de branco 
E parecias então 
Uma virgem gentil 
Que fosse à capelinha 
Um dia de manhã 
Fazer a comunhão. 

Eu lembro-me de ti 
E fico-me aturdido 
Ao ver-te pela rua 
Em gargalhadas francas 
Pretendo confundir 
A pele do teu vestido 
Com a sedosa lã 
Das ovelhinhas brancas. 

Eu lembro-me de ti 
Ao ver-te num casino 
Descarada a fumar 
Luxuoso cigarro 
Fecho os olhos e vejo 
O teu busto franzino 
Com o avental da cor 
Do cantaro de barro 

Eu lembro-me de ti 
Quando no torvelinho 
Da dança sensual 
Passas louca rolando 
Eu sonho eu fantazio 
E vejo o teu moinho 
Que bailava tambem 
Ao vento assobiando 

Eu lembro-me de ti 
E fico-me a cismar 
Que o nome de Lucy 
Que tens não é verdade 
Que saudades eu tenho 
E leio no teu olhar 
A saudade que tens 
De quando eras Saudade.


Outras referências:
Amaro de Almeida, Reflexões sobre a origem do fado, Olisipo n.° 25, 1944
Variações sobre o fado, Panorama n.° 25-26, 1945

O fado segundo Maurice Mariaud:
Instituto Camões, O Fado (1923)
CINEPT: O Fado (1923)



A Severa segundo Júlio Dantas:
Júlio Dantas, A Severa
Esperas de touros, Serões n.° 37, 1908
A Severa (peça teatral), Illustração Portugueza n.° 156, 1909
Restos de Colecção, A Severa, Primeiro Filme Sonoro-(Fonofilme)
A Severa da lenda... literatura... realidade, Reporter X n.° 95, 1932
Dina Teresa, Cine-Jornal n.° 16, 1936



terça-feira, 9 de junho de 2020

Fado VII, Alfredo Marceneiro (1888-1982)

O fado tem tido muitas mulheres, algumas, mesmo, heroínas da canção doente e bonita. Homens — só um: Alfredo Marceneiro. Ligou o passado ao presente, e com a sua alma errante, luminosa e ingénua, colocou o fado num plano de "Auto do Povo", que ficará na história do nosso tempo. (1)

Alfredo Marceneiro.
Mundo Grafico n.° 60, 31 de março de 1943

Nasceu em Lisboa este popular e apreciado cantador de Fado que, como seu irmão Julio Duarte, o começou cantando desde muito novo, em várias casas particulares e festas de beneficência, nas quais era convidado a tomar parte por outros cantadores da velha guarda que muito apreciavam a sua voz e começavam a vêr nôle um genuíno fadista de alma e coração.

Agradando sempre, Alfredo Duarte nunca faltava então a êsses benefícios, ao tempo chamados "Veladas sociais", e assim começou a impôr-se como cantador dos mais apreciados, bastando o seu nome no programa de qualquer festa de Fado para atrair o público.

É curioso registar porque lhe chamam, geralmente, Alfredo "Marceneiro", sendo o seu verdadeiro nome Alfredo Rodrigo Duarte.

De facto, o nosso biografado exerce a profissão de marceneiro, e foi em 1930, numa festa promovida pelo cantador e poeta popular Manuel Soares (do Intendente), no Club Montanha e em homenagem aos cantadores Alfredo dos Santos "Correeiro" e José "Bacalhau" que éle se tornou conhecido por Alfredo "Marceneiro". Convidado a tomar parte nessa festa e não sabendo a comissão organizadora como havia de anunciá-lo, pois sómente sabia que éle era Alfredo e marceneiro, Manuel Soares remediou o caso, lembrando que o anunciassem Alfredo "Marceneiro", o que não pareceria estranho numa festa em que também cantava um Alfredo "Correeiro"...

E assim Alfredo Duarte, agradando extraordinariamente nessa festa como já havia acontecido em tantas outras, ficou sendo conhecido por Alfredo "Marceneiro".

Alfredo Marceneiro.
A. Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, 1937

Levado pelo velho fadista Monteiro ou na companhia de outros cantadores da velha guarda, Alfredo Duarte cantou muita vez nos retiros do Caliça, Bacalhau, José dos Pacatos e no Romualdo, acompanhado à guitarra pelo dr. Borges de Sousa e Carlos da Maia, com a assistência da melhor sociedade. Foi ali que cantou pela primeira vez a sua "marcha", acompanhado à guitarra por aquele ilustre médico. 

Cantou no Teatro de S. Luiz, no Teatro Avenida, no Coliseu dos Recreios (na peça "História do Fado", do distinto poeta Avelino de Sousa), Apolo, Eden-Teatro (numa festa organizada pelo actor Almeida Cruz), no Capitólio, Politeama, Maria Vitória, Clube Olímpia e outros, tendo cantado ultimamente no Retiro da Severa, Solar da Alegria, Café Mondego e em várias festas de homenagem a colegas seus e récitas de beneficência.

Tem nove discos gravados e é autor das seguintes músicas : "Marcha Alfredo Marceneiro", "Fado do Cravo", "Fado do Louco", "Fado Alexandrino", "Lembro-me de ti", "Fado Pierrot", "Fado Maria dos Anjos", "Fado Bailarico", "Fado da minha guitarra" e "Fado Pagem". O Fado da opereta "Pão de Ló", conhecido por "Fado do Soldado", foi inspirado num dos seus fados. Alfredo Duarte conhece todas as nossas províncias, tendo feito uma digressão artística com Ercília Costa [v. artigo dedicado], Alberto Costa e Rosa Costa [v. artigo dedicado].

Troupe Guitarra de Portugal.
Em pé: João Fernandes, Rosa Costa e Santos Moreira.
Sentados: Alfredo D. Marceneiro, Ercília Costa e Alberto Costa.
Fadoteca

Em 1922, com Alfredo dos Santos "Correeiro", cantou uma noite no "João das Velhas", a pedido da notável actriz Vera Vergani que ali se encontrava a cear com a actriz Loiza Satanela, o ilustre poeta Silva Tavares, os actores Estevam Amarante, Nascimento Fernandes e Manuel Santos Carvalho, tendo sido, como aquele seu colega, delirantemente aplaudido.

Em 1924, tomando parte num concurso de fados organizado no Coliseu dos Recreios pelo emprezário Artur Emauz, e no qual o seu colega João Maria dos Anjos ganhou uma medalha de ouro, foi contractado por um mês para cantar o Fado no Chiado-Terrasse.

Alfredo Duarte possue também uma medalha de ouro ganha num concurso de fados realizado há anos, no Sul-America, na rua da Palma; e uma taça de prata que lhe foi Conferida por votação do público, numa festa de homenagem ao pugilista Francisco de Brito (Britinho), realizada no Teatro Joaquim de Almeida, em 1929.

Cantou em diversas festas organizadas pelo Clube Tauromáquico, num passeio fluvial e numa jornada ao Tamariz e ao Casino Estoril, promovidos por um dos sócios daquele Clube, e numa festa oferecida pelo banqueiro Ricardo Espirito Santo à embaixada alemã, na qual cantaram também os seus colegas Ercília Costa, Filipe Pinto e Jaime Duarte, acompanhados pelo guitarrista Armando Augusto Freire ("Armandinho") e pelo violisla Martinho de Assunção.

Há duas passagens interessantes na vida fadista do nosso biografado, que não deixamos de relatar: Quando a popular e aplaudida cantadeira Ercília Costa eslava no Hospital de Santo António dos Capuchos onde sofrera uma operação cirúrgica, Alfredo Duarte, regressando altas horas da noite duma festa de beneficência na Escola 1, na companhia duns amigos, não obstante já ser proibido terminantemente cantar o Fado em serenatas, não resistiu à tentação e, pedindo aos seus amigos que vigiassem as embocaduras das ruas, não surgisse algum policia ou guarda nocturno, cantou um dos seus mais enternecidos fados, em homenagem àquela sua colega.

Uma outra ocasião, estando a cantar o Fado no Clube Olímpia, varreu-se-lhe da memória os versos finais da última décima. Enervado, parou subitamente de cantar e desculpou-se, indo sentar-se, aborrecido, a um canto da sala. 

Minutos depois, recebia de Silva Tavares, Amadeu do Vale e Carlos Dubini, que se encontravam a uma mesa, um cartão com a seguinte quadra que ele conserva como recordação dessa noite:

Alfredo, a lua memória, 
Falha-te, embora resistas, 
Mas has-de ficar na História 
Como o maior dos fadistas.

Também como noite memorável entre tantas que marcam na sua carreira de cantador, Alfredo Duarte descreve-nos a que mais o impressionara:

Já havia terminado uma festa de Fado em que ele e alguns dos mais aplaudidos cantadores haviam tomado parte, no Parque Mayer, quando ali apareceram o dr. António Menano e o cavaleiro D. Ruy da Camara, que iam propositádamente para ouvir a sua colega Maria Emilia Ferreira. Uma parte do público já havia saído, e Alfredo Duarte conversava à porta com alguns amigos, refugiado na sua caracleristica modéstia. Acedendo ao pedido daqueles, Maria Emilia Ferreira cantou primorosamente como sempre um dos seus fados castiços, e logo o dr. António Menano retribuiu, deliciando a assistência com a sua linda voz num dos seus notáveis fados-canções. Quando acabou, alguém lhe disse e a D. Ruy da Câmara, que o Alfredo "Marceneiro" ainda se encontrava ali. Solicitado imediatamente por êles, Alfredo Duarte acedeu, cantando num fado da sua autoria "O pintor", letra do poeta popular Henrique Rêgo. Ao terminar, alvo duma carinhosa ovação, ouviu o dr. António Menano dizer, aplaudindo-o ainda entusiásticamente:

— O que êste homem cantou com tanto sentimento estava eu a vêr! É um grande fadista!

Foi esta, segundo Alfredo Duarte nos diz, a noite que, até hoje, melhor gravou no seu espirito. Por ser aquela letra, do seu vasto e escolhido repertório, uma das que Alfredo Duarte mais aprecia, com a sua transcrição vamos concluir os dados biográficos dêste popular e aplaudido cantador.

O pintor 
Mote 

Encostado sem brio ao balcão da taberna, 
De nauseabunda côr e tábua carcomida, 
O bêbado pintor co'o lápis desenhou 
O retrato fiel duma mulher perdida.

Glosas 

Era noite invernosa e o tento desabrido 
Num louco galopar ferozmente rugia, 
Vergastando os pinhais, pelos campos corria, 
Como um triste grilheta ao degredo fugido. 
Num antro pestilento, infame e corrompido, 
Imagem de bordel, cenário de caverna, 
Vendia-se veneno à luz duma lanterna 
À turba que se mata, ingerindo aguardente, 
Estava um jovem pintor, atrofiando a mente, 
Encostado sem brio ao balcão da taberna.

Rameiras das banais, num doido desafio, 
Exploravam do artista a sua magra féria, 
E êle na embriaguês do vinho e da miséria, 
Cedia ás tentações daquele mulherio. 
Nem mesmo a própria luz, nem mesmo o próprio frio, 
Daquele vasadouro onde se queima a vida, 
Faziam incutir à corja pervertida. 
Um sentimento, bom d'amor e compaixão, 
P'lo ébrio que encostava a fronte ao vil balcão, 
De nauseabunda côr e tábua carcomida. 

Impudica mulher, perante o vil bulício 
De copos telintando e de boçais gracejos, 
Agarrou-se ao rapaz, cobrindo-o de beijos, 
Perguntando a sorrir qual era o seu oficio; 
Ele a cambalear, fazendo um sacrifício, 
Lhe diz a profissão em que se iniciou, 
Ela escutando tal, pedindo-lhe, alcançou 
Que então lhe desenhasse o rosto provocante, 
E num sujo papel, o rosto da bacante 
O bêbado pintor com um lápis desenhou. 

Retocou o perfil e por baixo escreveu, 
Numa legível letra o seu modesto nome, 
Que um ébrio esfarrapado, com o rosto cheio de fome. 
Com voz rascante e rouca à desgraçada leu. 
Esta, louca de dor, para o jovem correu, 
E beijando-lhe o rosto, abraça-o de seguida... 
Era a mãi do pintor, e a turba comovida, 
Pasma ante aquele quadro original, estranho, 
Enquanto o pobre artista amarfanha o desenho: 
O retrato fiel duma mulher perdida. (2)


(1) Norberto de Araújo cf. Alfredo Marceneiro, aqui mora o fado
(2) A Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1937

Leitura relacionada:
Alfredo Marceneiro, aqui mora o fado
Lisboa no Guiness

Redes sociais:
Alfredo Marceneiro 'aqui mora o fado' (fb)
Valdemar Marceneiro 'aqui mora o FADO' (YouTube)
Alfredo Marceneiro (flicker)



Outras referências (em actualização)

O pregão é só um! O artigo é que muda... 

Alfredo Marceneiro cf. Alfredo é só fado, RTP 1969

* * *

Os fados de expressão lírica e romântica na discografia de Alfredo Marceneiro (em actualização) :

The Fabulous Marceneiro (1961)
Senhora do monte, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Lembro-me de ti, Linhares Barbosa (1893-1965), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O amor é água que corre, Augusto de Sousa, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Mocita dos caracóis, Linhares Barbosa (1893-1965)
A viela, Guilherme Pereira da Rosa, Fado cravo, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Ironia, Armando Neves (1899-1944), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A casa da Mariquinhas, Silva Tavares (1893-1964),  Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Amor De Mãe, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A Menina Do Mirante, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Andrade Ferreira, José Maria de, Revista contemporanea de Portugal e Brazil, n° 4, Vol. III, 1861
O lenço, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O bêbedo pintor, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Leilão, Linhares Barbosa (1893-1965)
Bairros de Lisboa (v. 2006), Carlos Conde (1901-1981), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes e depois (v. 2006)
A camponesa e o pescador (v. 2006), Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes e depois (v. 2006)
A minha freguesia (v. 2006)
Antes e depois (versão alternativa, v. 2006)

Há Festa Na Mouraria (1965)
Há festa na Mouraria, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado balada, Silva Tavares (1893-1964), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Orfãzita
Despedida, Carlos Conde (1901-1981), Fado cravo, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Os velhinhos, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Colchetes d'oiro , Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Marceneiro
Fado laranjeira, Júlio César Valente, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Empate dois a dois
Bailado das folhas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Natal do moleiro, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
As fontes da minha aldeia, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)

Alfredo Marceneiro e o Fado (1971) [Os Melhores Da Música Portuguesa (2006)] 
O pagem
Rainha Santa
Sonho Dourado
Sinais Sinas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Cabaré, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Moinho desmantelado, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Avózinha
Quadras Soltas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Remorso, Linhares Barbosa (1893-1965)

Nos Tempos Em Que Eu Cantava (1972)
Foi na velha Mouraria, Fernando Teles (1891-1958), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Domingo d'agosto
Tricana, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Oh águia, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Depois do Carnaval
Nos tempos em que eu cantava
Café das camareiras, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A minha freguesia
O Pierrot, Linhares Barbosa (1893-1965)
Três tabuletas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)

Outros (sem referência discográfica) 
Cabelo branco, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes que queira não posso, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A Lucinda camareira, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado bailado, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O louco, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Marcha do Alfredo, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado cravo, Fernando Teles (1891-1958), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
É tão bom ser pequenino, Linhares Barbosa (1893-1965)
Janela da vida, Carlos Conde (1901-1981), (1888-1982)

cf. Alfredo Marceneiro, DiscogsTrês grandes compositores do fado tradicional


* * *

Poetas populares do fado tradicional

Carlos Harrington (1870-1916)
Avelino de Sousa (1880-1946)
Gabriel de Oliveira (1891-1953)
Fernando Teles (1891-1958)
Silva Tavares (1893-1964)
Linhares Barbosa (1893-1965)
Henrique Rego (1893-1963)
Frederico de Brito (1894-1977)
António Amargo (1895-1933)
Amadeu do Vale (1898-1963)
Armando Neves (1899-1944)
Carlos Conde (1901-1981)
Clemente Pereira (1903-1986)
João da Mata (1906-1947)
Radamanto (1908-1972)
Conde de Sobral (1910-1969)
Domingos Gonçalves Costa (1913-1984)
Artur Soares Pereira (1921-2011)
Maria Manuel Cid (1922-1994)
Lopes Victor (N. 1922)
Moita Girão (1923-2013)
António Vilar da Costa (1924-1988)
Artur Ribeiro (1924-1988)
João Dias (1926-1979)
Jorge Rosa (1930-2001)
Isidoro d’Oliveira (1934-2013)
Manuel Andrade (1944-1966)


cf. Poetas populares do fado tradicional