segunda-feira, 23 de julho de 2018

Batalha do Cabo de S. Vicente (5 de julho de 1833)

O inimigo conservava-se em linha cerrada,  e reservou o seu fogo até nos acharmos bem a tiro de fuzil; a Fragata hissou então um signal, que supposémos ser a pedir licença para romper o fogo: o momento era critico, e todos nós o conheciamos.

Battle of Cape St. Vincent of 1833.
A squadron of Portuguese frigates commanded by British Admiral Napier on behalf of the Queen Maria Liberal faction defeated King Miguel’s Absolutist squadron, in the Portuguese Civil War
The Westphalian Post

Apenas a Náo hissou o seu signal em reposta ao da Fragata, rompêo esta a sua banda , o que foi instantaneamente seguido por toda a esquadra, á excepção da D. João que só nos podia chegar com os seus guarda-lémes. Pobre Rainha! 

Eu olhei para cima, esperando ver todos os mastros ao vai-vem; mas a flâmula tremulava no tope, é não obstante o mais tremendo fogo que jamais tinha presenceado, que fazia borbulhar o mar que nos rodeava, como um caldeirão a ferver, o fumo tendo-se dissipado, descobrio aos Miguelistas assombrados a Fragata Rainha, altivamente fluctuando sobre as aguas de Nelsone Sáo-Vicente, com os mastros, a prumo, mostrando unicamente na sua enxárcia e panno a prova do fogo que tinha experimentado (The fiery ordeal she had gone through).

Sketch of Napier's glorious triumph over the Miguelite Squadron, George Philip Reinagle, 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

As guarnições estavão apostos, poucos forão mortos ou feridos no convéz, porém as três peças de proa sobre o tombadilho ficarão quasi sem guarnição, e o Tenente Nivett, da Marniha, ficou mortalmente fendo.

A este tempo ainda nós não tinhamos dado um só tiro, e ordenei então que se fizessem alguns sobre o inimigo, para evitar quanto fosse possivel que este decizivamenté escolhesse um ponto d'ataque. 

Sketch of Napier's glorious triumph over the Miguelite Squadron, George Philip Reinagle, 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

O nosso exemplo foi seguido pela D. Pedro, e depressa passámos pela Fragata, e Martim de Freitas, perdendo este ultimo o seu mastaréo de velaxo. 

Sketch of Napier's glorious triumph over the Miguelite Squadron, George Philip Reinagle, 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

A Náo de Linha da retaguarda mettêo então de ló, nós arribámos para evitar uma banda das suas baterias, e a D. João orçou toda, demandando o seu travéz com o intuito de nos collocar entre os fogos crusados das duas Náos.

Sketch of Napier's glorious triumph over the Miguelite Squadron, George Philip Reinagle, 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

Isto era exactamente o que eu desejava, porque esta se achava nmito sotiventeada para poder retomar uma posição a barlavento; mettênios instantímeamente o léme de ló.

Sketch of Napier's glorious triumph over the Miguelite Squadron, George Philip Reinagle, 1833.
Biblioteca Nacional de Portugal

A Fragata obedeceo ao léme, quasi roçando a popa da Náo Rainha coin o páo da giba; disparárão-se-lhe os cachorros, e mais peças de proa, carregados até á boca de bala rasa e metralha; alliviou-se então o léme, e corremos a prolongar-nos com a Náo debaixo de um fogo activíssimo, que deitou abaixo o meu Secretario, o Mestre, e muita gente. 

Ambos os Navios ficarão atracados crusando as vergas e velas grandes, e o Chefe de Divisão Wilkinson, e o Capitão Carlos Napier, commandando a gente d'abordagem saltarão de cima das ancoras para a amurada da Náo, e levarão adiante de si aquella parte da guarnição ao longo dos bailéos de bombordo. 

Batalha do Cabo de S. Vicente em 1833, Morel-Fatio.
Imagem: Wikipédia

Eu não tinha tenção de ser um dos da abordagem, tendo bastante que fazer em to- mar cuidado na esquadra , porém o impulso éra demasiadamente forte, eachei-nie, quasi sem saber como, em cima do Castello-de-prôa da Náo, accompanhado de um ou dois Officiaes. 

Alli fiz pausa, até que saltando mais gente dentro do Navio, corremos para ré dando um grande: Viva! — e ou passámos pelo meio, ou repellimos pela escotilha grande abaixo, uma partida dos inimigos.

Almirante Charles Napier por John Simpson, após 1834.
Parques de Sintra

N'este momento recebi um severo golpe com um pé-de-cabra, cujo dono não escapou a salvo, e o pobre Macdonough, cahio a meu lado traspassado por uma bala de fuzil; Barreiros, Commandante da Náo, apresentou-se na minha frente, ferido no rosto, e batendo-se como um tigre. 

Era um homem valente; eu lhe salvei a vida. Veio depois o 2.° Commandanle, e atirou-me uma tào boa cutilada, que nao tive coração para lhe fazer mal; também ficou salvo. Barreiros pegou outra vez em armas, e a final foi morto na Camara. 

O Chefe de Divisão, e o Capitão Carlos Napier, depois de terem levado adiante de si huma multidão d'inimigos, cahirão pelo lado de bombordo do tombadilho da Náo, gravemente feridos; o primeiro com difficuldade poude tornar para dentro da Fragata, o ultimo, perdendo os sentidos, jazêo por algum tempo sobre o tombadilho, até que as vozes dos amigos, que vinhão em seu soccorro, o fizerão tornar a si. 

Charles John Napier.
Royal Museums Greenwich

Estávamos já senhores da tolda, mas a carnagem continuava ainda, a pezar dos esforços dos Officiaes para a terminar.

A primeira e segunda coberta ainda senão tinhão rendido; e quando a Fragata D. Pedro se dispunha para a abordagem, ambos os Navios fizerão fogo. 

Fallei pelo porta-voz ao Capitão Goble para que não continuasse, pois já estávamos senhores do convéz, e para que desse caça á Náo D. João, que se tmha feito ao largo; n'este mesmo momento um tiro disparado da segunda coberta o ferio mortalmente , e dentro de poucos minutos já não existia.

O Tenente Edmunds, e Wooldridge saltarão abaixo com um troço de gente; apoderárão-se da coberta, mas ambos cahirão feridos mortalmente. 

Dentro em poucos minutos tudo estava tranquiilo; a ultima coberta tinha-se rendido, e muitos dos marinheiros Portuguezes saltarão para cima da tolda para salvar-se, trazendo, tiras de lona branca nos braços esquerdos, tendo descoberto que esse era o distinctivo que a nossa gente trazia ao abordar.

Plano de Ataque, Batalha do Cabo de S. Vicente, 5 de julho de 1833.
Internet Archive

Outros poderão passar para bordo do meu Navio, entre estes alguns rapazes, que se souberão introduzir na praça d'armas (gun-roorn), e se empregarão em alimpar vidros. 

A gente teve então ordem de voltar para bordo da Fragata Rainha, á excepção dos que forão nomeados para ficar, e n'esta confusão, separarão-se os dois Navios, deixando-me a bordo da Preza. Com tudo não tardou muito que eu me não achasse a bordo da Fragata Almirante. 

Posição ao dar a Abordagem, Batalha do Cabo de S. Vicente, 5 de julho de 1833.
Internet Archive

Mettêo-se um velaxo novo, porque o outro estava despedaçado; a vela grande também se achava inutilisada, e estávamos no acto de mettêr outra, fizemos força de vela, e rapidamente nos hiamos aproximando da Náo D. João, achando-se a D. Pedro ainda mais perto d'ella, quando, vendo que não havia meio de evitar o combate, mettêo de ló, e arriou bandeira. 

Dei ordem á D. Pedro para tomar posse da Náo, e dei caça ao Martim de Freitas, cuja força era mui desproporcionada á da Portuense (cujo commandaate, Blackstone, foi ferido mortalmente), e o Villa-FIòr; e ainda que tinha recebido consideráveis avarias, hia-se arrastando, fazendo força de vela: mas ás déz horas estava em meu poder. 

A Corveta Princeza Real, passando a travéz de um dos Vapores, rendêo-se tambem. Pouco tempo depois estava eu prolongado com a Náo Rainha. 

O Capitão Peak, da D. Maria, passou pela popa da Fragata de cincoenta, prolongou-se com ella, orçou toda, e depois de algumas bandas, mettêo o gorupéz por entre a enxárcia da gata, e a tomou corajosamente.

Posição depois do Combate, Batalha do Cabo de S. Vicente, 5 de julho de 1833.
Internet Archive

Assim terminou a Acção de 5 de Julho, deixando em nosso poder duas Náos de Linha, cada uma das quaes montava oitenta e seis peças, incluindo quatro de quarenta e oito para disparar bombas; uma Fragata de cincoenta, um Navio de cincoenta peças, e uma Curveta de dezoito.

Escaparão duas Curvetas e dois Brigues; as duas primeiras chegarão a salvo a Lièboa; um Brigue reunio-se- nos no dia seguinte, e o outro foi ter á Ilha da Madeira. 

O inimigo estava amplamente provido de toda a sorte de petrechos de guerra, e montava guarda-lémes, alem das suas completas baterias. 

Sir Charles Napier's Victory off Cape St Vincent while in the Portuguese Service under Admiral de Ponza.
Art.com

A perda da Esquadra andou por uns noventa mortos e feridos. O inimigo perdeo de dozentos a trezentos homens. (1)


(1) Charles Napier (trad. Manoel Codina), Guerra da successão em Portugal, Lisboa, 1841

Tema:
Guerras Liberais

sexta-feira, 20 de julho de 2018

Os Cachopos

Se o Conde de Bolonha D. Affonso, Infante de Portugal, teve filhos de sua primcira mulher a Condessa Mathilde (1202 -1259), he hum dos pontos, em que com mayor vigor se tem contendido, e disputado.

A map of the mouth of the famous river Tagus or the harbour of the city of Lisbon (detalhe), William Burgess (1729-1746).
Biblioteca Nacional de Portugal

Em quanto Portugal se conservou separado [de Hespanha], nunca esta materia teve mais fundamento do que a tradição pueril de alguns Historiadores, de quem se pode dizer, que a escreverão para gastarem tempo, e papel com a sua narração, mas depois, que o imprudente valor del Rey D. Sebastião condenou ás masrnorras de Africa no,campo de Alcacere toda a gloria Portugueza, e depoia que a indesculpavel irresolução do Cardeal D. Henrique, que quasi na sepultura cingio a Coroa, deo lugar a que se occupasse o Throno Porruguez pela violencia das armas, e não pela desarmada força do Direito, então he que começou a soar pelo mundo com mayor estrondo a injustiça, que El Rey D. Alfonso III usou com os filhos, que houve de sua primeira mulher a Condessa Mathilde de Bolonha [...]

Vista do Tejo e do palácio da Ajuda, Charles Landseer, 1825.
Instituto Moreira Salles

Diz pois a tradição, como referem estes Authores, que sabendo em França a Condessa Mathilde, que seu marido o Infante D. Affonso estava casado em Portugal com D. Brites, filha bastarda de D. Alfonso X Rey de Castella, levada da impaciencia de caso tão feyo e doendolhe vivamente o desprezo da sua pessoa, e do seu amor, viera acompanhada de huma frota a este Reyno, e que chegando a Cascaes, soubera que o infante estava em Frielas, e que por huns criados de grande estimação, e confiança, que consigo trazia, lhe escrevera, representandolhe a indignissima acção, que usava com ella, e pedindolhe, que desse satisfação ao escandalo de toda a Europa.

Descripção da boqua do Tejo, Vincenzo Casale, 1590.
Fortificações da foz do Tejo

Diz mais a tradição, que o Infante sem fazer caso dos seus rogos, nem das suas justificadas representações, lhe respondera com aspereza tão pouco esperada, que desconfiando de conseguir o que pretendia, entre a dor, e a desesperação expuzera os os filhos, que comsigo trazia, na foz do Tejo, donde teve principio o nome de Cachopos que na nossa linguegem antiga he o mesmo que Meninos, e que voltando outra vez para França, se valera do respeito de S. Luiz, que então reynava gloriosamente naquella Monarchia, para que a grande authoridade desse Principe fosse o remedio da sua injuria, o não chegou a ter effeito [...]

A map of the mouth of the famous river Tagus or the harbour of the city of Lisbon (detalhe), William Burgess 1729 - 1746.
Biblioteca Nacional de Portugal

Quem se não ha de rir vendo que escreverão huns homens, que se prezavão de eruditos, que desta acção se derivou o nome de Cachopos, por se exporem naquelle lugar estes reos innocentes? Que mayor argumento da ignorancia desta nova tradição? Os Cachopos he huma corrupção da palavra Latina Scopulm, com que se explicão os baixos, que se fizerão infames no escandalo dos navegantes pelos naufragios, que causarão, e nunca se derivarão dos meninos, que nelles deixou o desconfiado amor da Condessa Mathilde.

18
Moleta
Batiment qui pêche dans le Tage et en dehors

Só huma circunstancia tem faltado a este conto de velhas, que foy o como se salvarão daquelle liquido patibulo. Não appareceo atégora algum compadecido pescador, que vendo-os em tão evidente perigo, os salvasse na sua molleta, ou no seu barco do alto [...] (1)

13
Lanchas do Alto
Batiments pecheurs qui vont en haute Mer

A entrada do Tejo fica situada entre as torres de S. Julião e do Bugio, que distam 2:750 metros uma da outra, e entre o Bugio e o Bico da Calha, ou ponta do cabedelo do S. Dois grandes bancos se prolongam para o mar na direcção geral de NE. - SW., que se denominam Cachopo do N. e Cachopo do S., ou Alpeidão. Formam estes cachopos dois canaes, o do N., ou corredor do N., que fica entre o cachopo do N. e a torre de S. Julião da Barra, e o do S., ou Barra Grande, que fica entre os dois cachopos indicados. Alem d'estes canaes ha um outro, estreito, pouco fundo e variável em planta, chamado Golada, entre a torre do Bugio e a terra.

Vista do estuário do Tejo, tomada da Estação Espacial Internacional, Samantha Cristoforetti, 2015.
Samantha Cristoforetti no Facebook

O cachopo do N. estende-se naquelle rumo por 5:500 a 6:500 metros. O do S. é formado da cabeça do Pato, das coroas de Santa Catharina e do cachopo propriamente dito.

Sobre a primeira parte ha peio menos 10 a 12 metros de agua. As coroas de Santa Catharina ficam entre a cabeça do cachopo e a do Pato. Este cachopo do S., ou Alpeidão. na extensão proximamente de 5:500 metros, é um banco de areia, que descobre em baixa-mar em diversos logares.

Lisboa com a sua área às 10 horas, Christian Friedrich von der Heiden, 1672.
BLR

O banco, ou barra que liga os extremos dos cachopos pelo W., fica entre a cabeça do Pato e o Espigão, na máxima largura de 3:700 metros, e forma grande escarcéu com ventos do quadrante do SW., levantando ás vezes um rolo do mar, ou arrebentação, que fecha de um lado ao outro o canal da barra e offerece nessas occasiões perigo em arrostar com elle. (2)


(1) Joze Barbosa, Catalogo chronologico, historico, genealogico, e critico, das rainhas de Portugal..., Lisboa, Na Officina de Joseph Antonio da Sylva, 1727.
(2) Adolfo Loureiro, Os portos maritimos de Portugal e ilhas adjacentes, Vol III parte 1, Lisboa, Imprensa Nacional, 1906

Artigo relacionado:
A pequena tocha do mar

Leitura relacionada:
Naufrágios na foz do Tejo
Cristina Santos, Fortificações da foz do Tejo, Lisboa, Universidade Lusíada, 2014