terça-feira, 1 de dezembro de 2020

Petiscos de Lisboa por Eduardo Fernandes, o Esculápio (1 de 3)

Estamos perto do Carnaval, minhas senhoras e meus senhores, e não é de estranhar, portanto, que, apesar da pastoral dos excelentíssimos e reverendíssimos bispos condenar os divertimentos pagãos desta quadra, o grupo dos "Amigos de Lisboa" se lembrasse de incluir no ciclo das suas conferências — arremêdo simplista das tão debatidas conferências do Casino, agora de novo em discussão por doutos oradores — uma palestra um tanto de Entrudo, que divertisse, em vez de levar o auditório para o campo da pré-história e da arqueologia, ministrando-lhe sábios conhecimentos ácêrca dos antecedentes sérios e dignos de estudo da tão decantada terra de Ulysses, a cidade de mármore e de granito, na divina expressão de um glorioso escritor.

Eduardo Fernandes (1870-1945) Esculápio.

Palestra um tanto de Entrudo, digo eu, não porque lhes vá descrever o que foi o Carnaval dos meus tempos de infante, tantas vezes já descrito, mas porque, tendo·me sido entregue o cometimento, na minha qualidade de antigo e popular gazetilheiro, "alfacinha da gema" — nasci na Bica — e frequentador assíduo, desde rapaz, dos recantos e recintos onde se gosava a vida e consolava o estômago, eu me proponho distraí-los um pouco com a descrição e apreciação do que eram os ágapes do povo em tempos idos e referir-lhes quanto a cidade do Tejo, com os seus originais petisquinhos, comidas e bebidas, concorreu sempre para o estímulo dos vários sucos que protegem e auxiliam as boas e reconfortantes digestões. 

Não é propriamente, pois, um assunto carnavalesco, mas é um assunto com o seu quê de humorístico e está, portanto, bem e tem "cabidela" — passe o termo popular e o petisco — na pessoa que o tomou por tema e na quadra que estamos atravessando. 

O facto de se tratar de um "alfacinha", ou seja, de um filhote de Lisboa, e o de ser esta a terra do mármore e do granito, vêm a propósito. Nada melhor para reconfortar a tripa do que a alface repolhuda, verde e encaracolada, cuja excelência deu curso ao apodo porque são conhecidos os oriundos desta cidade, e nada mais aconchegador do que um calicesinho de granito [licor anisado com plantas aromáticas], após uma copiosa e pantagruélica ceia. 

Podia eu aqui, repito, descrever-lhes o Carnaval de há 50 anos, começando pelas origens romanas da celebrada festa, enveredando pela descrição dos cortejos do "Club dos Salsas", pelas pelejas no Chiado do "Turf Club" do "Tauromáquico", pela descrição dos assaltos e dos "salsifrés familiares" de então, os "bailes públicos" de S. Carlos, do Trindade, de D. Maria e do Coliseu; pelos velhos tipos do "ché-ché" ou "velho de Entrudo", o "galego", o "fralda de camisa", o "dominó", a "pastorinha", a "velha de capote"; pela animação das antigas batalhas de flores e os grandes cortejos no "corso" da Avenida; pela história das "danças da luta" da Bica, da Mouraria e de Alfama, os batalhões populares de vários bairros que tinham vassouras por espingardas e traziam, na retaguarda, o carro das munições e o da cosinha, tão característicos; enumerar-lhes os populares pregadores como o endemoninhado "Zé Augusto", que morreu sem se saber como na Rua de Santa Bárbara, e o engraçado "Rei da Madureza", que morreu do mesmo modo em um vão de escada; citar-lhes as "cégadas", os "grupos musicais" e as "danças dos padeiros" e das "varinas", as máscaras célebres, a "Saloia dos Carnavais" e muitas outras coisas, porque havia pano para mangas. 

Não tive, porém, tempo para coligir os meus apontamentos e os meus conhecimentos do assunto, pelo que já pedi desculpa à direcção do nosso grupo e a peço agora a Vocelências. Prefiro apresentar-lhes a ementa do meu desataviado discurso, deixando o Carnaval para outros mais eruditos e estudiosos, intitulando-o "Os Petisquinhos de Lisboa". Faço-o como o antigo galego, serviçal das casas de pasto, que, nos tempos de outrora, em vez de nos dar a lista das comidas e bebidas, como o faz actualmente, se perfilava ante o freguês e começava:

— Tem "bomecê", multo belamente, cabeça de "pórco", orelha e chispe, carne de "báca" p'rá grelha, "canôas"...

E era um nunca acabar de petisqueiras que o galego enunciava com a presteza com que nós resamos um Padre Nosso, terminando, sempre, a concluir a prelenga, com o consagrado: "e tem-me a mim e ao mestre", como quem diz que estavam às nossas ordens êle e o mestre cosinheiro que confeccionava os piteus.

[Iscas com e sem elas]

Começarei pelas "iscas", as "saborosas iscas com elas e semelas". "Semelas" porque, em certa tasca, o letreiro que as anunciava, juntára as palavras "sem" e "elas" numa só.

Custavam um vintem "sem elas", e trinta réis "com elas", ou seja com batatas cosidas e cortadas às rodas, que lhes davam um sabor particular. O vinho das iscas era especial e com um "bouquet sui generis", como era especial a conserva que vendiam para acompanhar o petisco, feita de pimentos partidos em bocados e tiras de cenoura, tudo de infusão num vinagre forte, a que se juntava, ao ser servida, num pratinho muito pequeno, igual áquele onde se serviam as iscas, um ligeiro fio de azeite e um golpe de vinagre expelido por uma garrafa cuja rôlha fôra recortada à laia de regador.

O galego, que confeccionava o fígado de vaca de que se faziam as iscas, armado de uma faca enorme e espalmada como as que os judeus empregam para imolar as rezes no Matadoiro, sabia cortá-lo em folhas de uma espessura transparente, com grande perícia e habilidade, espalmando a mão esquerda sôbre o flgado sanguinolento e abrindo-o finamente com o facalhão.

As "iscas" transitavam dêste para um alguldarão onde tinham previamente feito um escabeche, ou salmoura de vinagre, raspas de baço, alho, loiro, sal, pimenta e outros ingredientes e tempêros, ficando ali a aboborar largo tempo, tapado o alguidar com uma tampa de madeira e movido o seu conteúdo, de quando em quando, com um enorme e comprido garfo de ferro, que servia para arremessar depois as "iscas" à frigidelra sôbre a banha de porco que fervia.

A banha tinha-a o galego perto, em grandes boiões de barro, donde a extraia com uma monstruosa colher de pau, às vezes até só com os dedos, e a frigideira só lá de tempos a tempos se lavava, acumulando os resíduos das iscas de muitos meses, que vinham dar o seu particular sabor às "iscas" que começavam a ferver e eram, depois de passadas no riquíssimo e apetitoso môlho, estiradas com o citado garfo no pratinho, depois de reduzidas na frigideira, com o mesmo garfo, a exíguas dimensões.

As batatas estavam cortadas àparte, no tacho onde haviam sido cosidas, e eram espalhadas à mão sôbre o pratinho.

— Mais uma com elas! "Bae" um de conserva! — gritava o criado, em meio dos fregueses, em mangas de camisa, grandes sapatorros, sem gravata e com um barretlnho de côres enfiado no alto da cabeça.

— "Bae"! "Bae"! — respondia o cosinhelro, retirando iscas do alguidar para as levar à frigideira.

Mas como sabiam e eram agradáveis ao paladar aquelas palmetas de fígado, apesar da pouca higiene da casa, da falta de asseio dos galegos e da ausência de comodidades.

Ninguém as comia em familila com mais gôsto, e só os galegos lhes davam aquele precioso tique saboroso que apenas tinha como rival o cheiro particular do petisco, o qual atulhava as ventas do freguês e o atraia ao antro, lá de longe, visto que as visinhanças da tasca se impregnavam do mágico odor a que ninguém resistia.

A "casa das iscas" era manhosa e acanhada, com os seus bancos corridos e mesas de madeira, às vezes sem toalha, e os garfos pendiam, em algumas delas, de correntes que os ligavam às mesas, não fôssem os fregueses safar-se com êles após o repasto.

O cosinheiro tinha quási sempre o seu fogão cêrca da porta da rua, áquem da qual o rapasio, armado com anzóes pendentes de bengalas e paus, "pescava" muitas vezes a sua isca com grande desespêro dos "chuços", empregados do estabelecimento.

A primeira "casa de iscas" que eu conheci em Lisboa era ao Salitre, entre o velho circo do Price e o vetusto teatro das Variedades, multo frequentada à noite pelos espectadores das duas casas de espectáculo.

Antigo Circo Price, demolido para a abertura da avenida da Liberdade,
desenho do natural por Casellas in O Occidente 1883.
IHemeroteca Digital

O criado de mesa era um corcunda muito popular na cidade, não havendo ninguém que não conhecesse o "Marreco das iscas", pois que, nesse tempo, "ir às iscas" ou "ir comer uma isca", um pratinho de conserva, um quarto de pão e dois decilitros, à espelunca, era coisa vulgar, custando todo aquele suculento banquete a módica quantia de 70 réis.

Segulram-se em notoriedade as "iscas do Arsenal", ou do "Cotovelo", instaladas na loja que torneja da rua daquele nome para a travessa dêste, onde hoje está um moderno estabelecimento de alfaias agrícolas.
No tempo das patuscadas 
Das guitarras e touradas
Das hortas, do carrascão 
Eram as iscas o prato 
De mais consumo e barato
Na vida dum cidadão

E ninguém se envergonhava 
Toda a gente que passava 
Entrava nessas vielas 
A gente sentia-se bem 
Sendo simples era um vintém 
Trinta réis se eram com elas

Se ao longe vinha um parceiro 
E o cheirinho lhes sentia 
Até mesmo apetecia 
Comê-las só pelo cheiro 
E a sua fama foi tal; 
O povo então era vê-lo: 
Travessa do Cotovelo 
E Rua do Arsenal

Hoje tudo isso mudou 
A taberninha acabou 
Desapareceram os becos 
Os cocheiros são chauferes 
Vigaristas, soutneres 
E os casqueiros, papo-secos

Se os meninos odaliscas 
Comessem um prato d'iscas 
Daquelas bem temperadas 
Morriam de indigestão 
Não bebendo um garrafão 
D'água das Pedras Salgadas

Fado das iscas, José de Oliveira Cosme/Jaime Mendes, Repertório de José Freire
Multas vezes ali fui, com alguns malandrotes da minha idade, ao "pescanço das iscas" e, até, de uma vez, acertando com o anzol no cabo da frigideira, a voltei e fiz entornar o môlho, valendo-me a façanha o ter vindo o galego atrás de mim, de garfo em punho, até ao largo da Biblioteca, onde por uma unha negra não fui pilhado e sacrificado pelo hercúleo e figadal inimigo — passe o adjectlvo sem "calembourg".

Na travessa de S. Domingos, defronte da Igreja, no recanto, havia e há outra "casa das iscas". Aformoseou-se, porém, e, hoje, está convertida em uma espécie de casa de pasto, com petiscos vários, embora as iscas figurem ainda na ementa, mas já sem o "savoir faire" do espadaúdo galego que as manipulava, pois que eram das melhores e mais saborosas de Lisboa.

Na rua da Atalaia, no Bairro Alto, como quem vai para o Cunhal das Bolas, outra "casa de iscas" teve fama, mas com desgosto vi, há tempos, a casa também a transformar-se, sem a tosca mesa de madeira que havia no vão da escada, perto dos boiões de banha de porco, sem a frigideira e o alguidar das iscas à porta, sem, enfim, o pitoresco e o original do glorioso piteu de outros tempos.

Também se modificou uma casa de iscas que havia na Travessa da Queimada, à esquina de S. Roque, junto do antigo café dos jornalistas, assim chamado por nele se reunirem de manhã cedo os vendedores de jornais. E outra casa de iscas da Travessa da Palha emparelhou, deixando a especialidade, com as casas de pasto que ora enxameiam a rua e oferecem petiscos baratos à freguesia. (1)

Muitas outras "casas de iscas" houve em Llsboa: a do Romão, galego, às Portas de Santo Antão, onde está hoje o Politieama; em Santo António da Sé, no Calhariz, na Calçada do Combro, nas Janelas Verdes, em Belém, em Alfama, mas quási tôdas deram a alma ao Criador. O petisco passou de moda e já não é costume "ir às iscas". Apenas no Largo do Carmo, na esquina que volta para a Travessa da Trindade, uma casa do género se estadeia ainda e tem à porta um letreiro original que começa pelo seguinte: "Iscas Permanentes".

Por aqui se vê como as iscas de fígado estão pegadas à tradição.

A "casa das iscas" do Largo do Carmo — vá lá uma pequena digressão do assunto, que vem a propósito — foi antigamente uma oficina de fabricação de baús, instituída por um galego de apelido Barral que teve dois filhos: um, o abalisado médico João Gregório, mais conhecido pelo Baüleiro, em razão da profissão do pai, que me tratou de um ataque de anemia aos 7 anos, e outro o farmacêutico Barral, da antiga botica da rua do Ouro, pai do "sportman" João Barral, que foi meu condiscípulo e deu brado em Lisboa com as equipagens em que transportava ao Campo Pequeno o tão falado espada "Guerrita", o qual, segundo li, está a morrer em Córdova (e morreu, efectivamente, passados dias desta conferência).

Iscas com elas ou sem elas?...
O Notícias Ilustrado n.° 39, 10 de março de 1929

Voltando à vaca fria, ou, quero dizer, "às iscas": também o "Magina", a casa de pasto da rua de Santo Antão, armou em "casa das iscas", mas deixou o negócio e transformou-se em "bar" e em "restaurant", engeltando os populares "bifes de cabeça chata", como, em calão de pelintras, se designavam em tempos as mimosas lascas de fígado de vaca.

Armazém das iscas:
http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=273595&AplicacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1

Era no tempo em que o fígado se vendia pelas ruas, à mistura com o bofe e a fressura, em caixas de madeira sanguinolentas, com o fel pendurado, às costas de vendilhões, também cobertos de sangueira, um facalhão espetado na mercadoria, e a gente ia às vezes comprá-lo às "casas" ou "armazéns de iscas", pois tinham também esta imodesta designação, para "entalar" uma "isca" num quarto de pão e fazer do petisco um confortável lanche. (2)



(1)  Olisipo n.° 15, julho de 1941
(2)  Olisipo n.° 16, outubro de 1941

Artigos relacionados:
Chanfana (1 de 2)
Chanfana (2 de 2)

Leitura relacionada:
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.

Sem comentários: