terça-feira, 14 de abril de 2020

Chanfana (1 de 2)

Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana?

Comprada em asqueroso matadoiro 
Sanguinosa forçura, quente, e inteira, 
E cortada por gorda taverneira, 
Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro; 

Vista do Convento de Sto Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa (detalhe), Henri L'Évêque/Francesco Bartolozzi.
ComJeitoeArte

Cabeças de alho com vinagre e loiro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira,
C'os indigestos figados de touro;

Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;

Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;
Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta. 

[Nicolao Tolentino d'Almeida] (1)

SONETO LI

D'alto barrete, á laia de turbante, 
Os braços nus, a faca na cintura,
Co'um pano por timão á dependura,
Trabalha o Isidro, a turco similhante:

A ceia da chanfana
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904

Do elastico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacanle!

Esta, príncipe augusto, é que eu approvo,
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o vosso povo:

O peor é, que lambe d'estocada
Aos peraltas o seu cruzado novo.
Menos a mim, que nunca paguei nada!


Antiguidade da Chanfana

SONETO LII

Depois que ao som do berço me cantava 
Velha enrugada modas bolorentas,
A voz soltando pelas sujas ventas,
Q'em vez de somno medo me causava:

Cena de bordel com frades, Nicolas Delerive.
FRESS

Depois que para a eschola eu só andava
Expondo-me do mundo a mil tormentas,
E minha avó nas contas já sebentas
Para que eu fosse bom sempre rezava:

Vi até agora em portas de baiuca
Bofes, pimentos, alhos, e cebolas
Em caçoula fervendo já caduca:

Este guisado, pois, de corriolas
A tal chanfana ser ninguem retruca,
Petisco de malsins, de mariolas.

Descripção da Chanfana

SONETO LIII

Em pequenas barracas de madeira
No campo do curral vejo espichado 
Em torto prego o bofe ensanguentado
De velho boi, já cheio de lazeira:

Pintando uma bulha entre dois bêbados, Nogueira da Silva.
Obras completas de Nicolau Tolentino de Almeida... 1861

Alli de Isidro, Almeida, Talaveira (*)
E de outros taes, a quem ergueu o fado,
Todo o negocio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:

Alli de bodegões bando infinito
O seu tassalhão compram de semana,
Que descalços á porta vendem frito:

A qualquer que ali passa o cheiro engana:
Gasta os seus cobres, e depois afflicto
A vomitos conhece o que é chanfana.

(*) Casas de pasto mui nomeadas em Lisboa

Retrato da casa onde se vende a Chanfana

SONETO LIV

Em casa terrea com dous bancos sujos,
Meza de pinho a quem um dos pés falha, 
D'estopa em cima sordida toalha,
E de roda fumando alguns marujos:

A porta sempre cheia de sabujos,
E defronte sentada sobre palha
De Guiné, e d'Angola essa canalha,
Vendendo mexilhões, e caramujos:

De louro á porta um grande molho atado,
Cortina rota, e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado:

Pois quem vir isto assim fuja do cheiro,
Que se entrar por querer d'este guisado
Sairá sem comer, e sem dinheiro.

Retrato do Mal-cosinhado (*)

SONETO LV

Lá onde d'antes era situada
Essa antiga Ribeira, em negras choças
Estão vendendo enlabuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada:


Painel de azulejos, A Casa dos Bicos e o mercado da Ribeira Velha, século XVII.
Museu da Cidade de Lisboa

Soccos nos pés, as pernas sem ter nada,
Roupinhas de bacta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co'o feijão, com a isca, e co'a canada:

Alli de humilde boi já esfolado
O molle bofe se lhe vai frigindo,
E em prato o põem, que nunca foi lavado:

Toda a plebe á chanfana vai surgindo;
Mas depois sáem d'este coe damnado
Ora dando encontrão, ora caindo.

(*) prostíbulo (ou local), v. carta analisada na revista Lusitânia, Fascículo Camoniano (V e VI), 1925

Feito por auctor anonymo, e dirigido ao Príncipe D. José, sobre o mesmo assumpto do soneto LI
(pareceu conveniente reunir aqui, posto que de auctores diversos, esta e as seguintes composições, dirigidas todas ao mesmo assumpto, e feitas na mesma occasião)

SONETO LVI

Se um veloz javali, que vai fugido,
Vossa Alteza seguisse, e por acaso
Por caminho embrenhado, e pouco raso
D'arbustos cheio, e mattos desabrido:

Retrato de D. José, príncipe do Brasil (1761-1788),
por Miguel António do Amaral.
Cabral Moncada Leilões

Se por matal-o em fim, tendo corrido
De distancia, e de tempo um longo praso, 
Perdido dos criados, n'este caso
Na choça d'um pastor fosse acolhido:

E se o pobre pastor, tendo primeiro
Alhos, sal, e pimenta na cabana,
As entranhas frigisse de um carneiro:

Falto de fiambres, já crescendo a gana,
(Negra é a fome!) talvez já pelo cheiro
Vossa Alteza soubesse o que é chanfana.

Ao mesmo

SONETO LVIII

Não é esta, senhor, a de que fala, 
Á chanfana do fígado do touro, 
Nem se aduba com alhos, nem com louro, 
Como o tal Tolentino quiz pintal-a:

Retrato de Nicolau Tolentino, Giuseppe Trono.
Agostinho Araújo, Tipologia votiva e lição literária: o caso Tolentino

Uma carne, que deixam de sangral-a, 
Mais ascorosa que a do matadouro, 
Com toucinho, que o ranço fez cor d'ouro, 
E pedregoso arroz, que o dente estala:

Carneiro resequido, e não assado, 
Galinha, que mais couta que anno e dia, 
Com os seccos pasteis sem ter picado:

Eis aqui de que fala a fidalguia; 
Isto é chanfana, insípido bocado, 
Que forjam os cyclopes da ucharia,

(Pedro Caetano Pinto de Moraes Sarmento)

Ao mesmo

SONETO LIX

Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:

Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:

Pinto toma os pinceis da phantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Foi colorir as fezes da ucharia: 

Seu quadro é bom; seria consumado,
Se a sua tão creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado

(Luis Joaquim da Frota) (2)

Preside o neto da rainha Ginga
Á corja vil, aduladora, insana:
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguaes se esgota. a pinga:

Manuel Maria de Barbosa de Bocage (detalhe), Henrique Joze da Silva del. Francisco Bartolozzi R. A. sculp.
belas-artes ulisboa

Vem pão, manteiga, e chá, tudo é catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o ourango-outang a corda á banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga:

Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode:

Applaudem de continuo as Moleiras
Belmiro em dithyrambo, o ex-frade em ode;
Eis aqui de Lereno as quartas feiras. (3)

Se eu podera ir de tralha, ir á surdina
Por ahi! Forte sede, e forte gana
De zurrapa, de atum, de ti, chanfana,
De ti, que dos pingões és golosina!

Vista da Cidade de Lisboa tomada da Junqueira (detalhe), Henri L'Évêque/Francesco Bartolozzi.
ComJeitoeArte

Que tempo em que eu com sucia, ou grossa, ou fina,
Para a tia Anastácia (a tal cigana)
Ia, e vinha depois co'a trabuzana
A remos, no mar roxo, ou á bolina!

Quando has de consentir, cruel Fortuna,
Ao magro, de olho azul, de tez morena
O bem d'andar a flaino, e d'ir á tuna?...

Mas ai! Maldicto som, que me condemna!
Dize, oh Fado, ao bizouro, que não zuna...
Ahi me chama algum — "Alma pequena!" (4)


(1) Obras completas de Nicolau Tolentino de Almeida... 1861
(2) António Lobo de Carvalho, Poesias joviaes e satyricas, Cadix, 1852
(3) Obras poéticas de Bocage (volume I)...  1875
(4) Idem

Leitura relacionada:
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.

Sem comentários: