domingo, 1 de agosto de 2021

Vista de huma parte da Cidade (no 3° quartel do século xviii)

Entre as preciosidades do Museu das Janelas Verdes existe um a interessante vista panorâmica de Lisbo a, do século XVIII, que co ntém alguns pormenores que não se encontram nas vistas idênticas, mais conhecidas, da mesma época. Tem o título seguinte, escrito e muma linha, no alto da mancha:

Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no meyo do Tejo.

Igreja demolida de Santa Catarina, no alto do monte empinado, sem a muralha de suporte que no século passado [xviii] se construiu... Ã sua frente vê-se a cruz que deu o nome à rua da Cruz de Pau, actualmente do Marechal Saldanha cf. Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio
fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no
meyo do Tejo ().
Hemeroteca Digital de Lisboa

A vista é um desenho em papel, aguarelado a sépia, a verde no mar e nos sítios cultivados, e a azul no céu. 

Tem no Museu a cota «Museu N.° 86», e as suas dimensões, dentro do filete da cercadura, são: 175 cm, 4 de largo por 24 cm, 3 de altura.

A única legenda que o desenho tem é «Rio Tejo»; mas no corpo da mancha apresenta 33 números remissivos, referentes a uma legenda que desapareceu , ou que não chegou a fazer-se.

Na margem superior está escrito, ao meio , «N.° 2», o que parece indicar que a vista devia ser completada com outra que a antecedesse, que seria a «N .º 1».

A vista é manifestamente posterior ao ter remoto de 1755; vêem-se edifícios desmoronados, alguns escorados, rimas de madeira para as reedificações, e o aspecto da margem do Tejo é idêntico ao representado em outras vistas da 2.a metade do século XVIII posteriores ao terremoto.

Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio
fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no
meyo do Tejo.
Hemeroteca Digital de Lisboa


O panorama, que abrange um ângulo de 90 graus, foi tirado de um ponto a meio do Tejo, certamente de um barco fundeado, a cêrca de 600 metros da estátua do Duque da Terceira e de 630 metros do largo do Conde-Barão; do alto de Santa Catarina distava aproximadamente a mesma extensão.

Carta topographica de Lisboa (editado), levantamento de 1807, Duarte José Fava.
Hemeroteca Digital de Lisboa

Está o desenho feito com uma tal ou qual exactidão, como se deduz do confronto com o panorama de Lisboa existente na Academia Nacional de Belas-Artes, feito pelos anos 1767 a 1769 [v. artigo relacionado: Panorâmica de Lisboa nos finais do séc. XVIII], mais recente, mas todavia mais perfeito. Nota-se a coincidência de aspectos de muitos edifícios representados em ambos os panoramas, tendo em consideração os pontos de vista diferentes donde foram tirados.

É porém mais correcto do que a vista panorâmica de Lisboa, quási coeva (datada de 1763) [v. artigo relacionado: Panorâmica de Lisboa em 1763], que foi descrita pelo dr. G. Perry Vidal in Olisipo, Boletim do Grupo «Amigos de Lisboa», n.º 2, Abril de 1938 , a págs. 5 e seguintes. Vamos suprir, dentro do possível, a falta da legenda  explicativa dos números marcados na vista.

Para isso socorrer-nos-emos da planta de Lisboa levantada em 1807 pelo capitão-engenheiro Duarte José Fava, publicada e m l833, e de uma planta desenhada, do 3.° quartel do século XVIII, de que somos possllldores, que se conserva inédita, e que tem por título: 

Planta que rnostra os Citios da Esperança, athé o Arcenal da Marinha. A planta que acompanha o presente estudo é um extracto da citada planta de Lisboa de 1807, tendo sobreposta, a tinta encarnada, a linha que contorna o campo de visão da vista panorâmica, os números de referência que nesta existem, e as letras que julgámos conveniente co locar para referências e melhor co mpreensão da descrição.

Observaremos, porém, que a nossa interpretação fica sujeita a emendas ou rectificações, que um mais minucioso exame da vista venha a sujerir. Começaremos pelo lado esquerdo do desenho:

1- Igreja de Santa Isabel, mal perceptível.

2 - Igreja, demolida, do mosteiro de Santo Cristo, das Religiosas Capuchinhas Francesas, vulgarmente chamado das Francesinhas, no Caminho Novo, actual rua João das Regras.

3 - Convento de S. Bento das Negros, actualmente Palácio do Congresso. Vê·se nitidamente o portão de ingresso no recinto do adro do convento, que abria na calçada da Estrêla, em frente da igreja das Francesinhas.

Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio
fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no
meyo do Tejo.
Hemeroteca Digital de Lisboa

4 - Palácio do conde-barão de Alvito, propriedade actualmente dos herdeiros do conde de Pinhel, no largo do Conde-Barão, esquinando para a rua dos Mastros.

5 - Palácio dos Almadas, provedores da Casa da India, que esquina do largo do Conde-Barão par a a rua das Gaivotas, lado ocidental. Está hoje aí a Garagem Conde-Barão, a oficina Ottosgráfica, Lda. e outros estabelecimentos comerciais.

6 - Armazém da Casa da India, segundo se comprova com a planta inédita que possuímos. Ficava aproxi- madamente no sitio do prédio n.os 1 a 7 do largo do Conde-Barão, fronteiro, e sensivelmente com a mesma extensão de frente que o palácio dos Almadas.

7 - Paço da Madeira, conforme a mencionada planta. Ficava quási contíguo ao armazém (6), no leito da actual Rua da Boa-Vista, e em parte do sítio do prédio da mesma rua n.os 87 a 93, que torneja para a do lnstituto Industrial. Em 1807, como se vê na planta de Lisboa dessa data, já esta instituição alfandegária havia sido construída um pouco para nascente (em A, na planta), no local onde existiu e funcionou o Instituto Industrial e Comercial de Lisboa , actualmente em demolição.

8 - Prédio que esquina da rua da Boa-Vista, n.os 180 e 182, para o pequeno bêco da Boa-Vista. Ignoramos que interêsse apresentava para merecer uma referência ao desenhador.

9 - Palacete que foi dos condes de Sampaio, na esquina da rua da Boa-Vista, n.os 98 a 108, para a travessa do Marquês de Sampaio, antigamente bêco do Conde de Sampaio, cuja entrada se distingue bem nitidamente. Por cima, no último plano, vêem-se uns prédios do lado sul da Rua Fernandes Tomás, suportados por contra-fortes que se firmam no terreno da encosta. O da esquerda (B, na planta), com dois andares e quatro janelas grandes e três pequenas, em cada andar, está no sítio do prédio n. º' 7 a 13 da rua Fernandes Tomás, que tem o mirante; o da direita (C, na planta), com três andares e seis janelas em cada um, é o prédio n.os 1 a 5 da mesma rua; o telhado que se avista por cim a do último pzrtence ao grande prédio (D, na planta) da rua do Alcaide, n.os 1 a 18.

10 - Antiga igreja e mosteiro de S. João Nepomuceno, de Carmelitas Descalços Alemães, sito no largo de S. João Nepomuceno. Éstes edifícios foram transformados, e nêles está instala o o Asilo de Santa Catarina.

Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio
fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no
meyo do Tejo.
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11 - Tímpano da igreja do convento dos Paulistas, actual paroquial de Santa Catarina, na Calçada do Combro.

12 - Primeiro prédio da travessa da Condessa do Rio, n.os 1 a 11 , que esquina para a rua dos Ferreiros a Santa Catarina, n. os 2 a 4. Consta que pertenceu àquela família titular e hoje é do engenheiro-agrónomo José Mateus de Mendia.

13 - Prédio fronteiro ao anterior, com frente também para a r ua de Santa Catarina, n. 0 16 , propriedade do negociante Guilhe rme Pinto Basto. Vê-se em seguida a rua que desce pela encosta, calçada de Castelo-Branco Sar aiva, então calçada de S. J oão Ne- pomuceno, a qual vinha desembocar, como hoje, junto do p réd io n.os 8 e 10 da rua da Boa-Vista (E, na planta), que está desenhado ao lado direito do marcado n .0 17. Êste prédio n .º 3 8 e 10 , que fi ca mesmo em frente da esqu adra de polícia, é de cinco pavimentos, tendo o 1.º e 2.° andares duas janelas de sacada cada um, e o 3.° uma só, e 2 sua fachada termina superiormente em curva. Esta casa pe rmanece a inda hoje com o mesmo aspecto.

14 - Igreja demolida de Santa Catarina, no alto do monte empinado, sem a muralha de suporte que no século passado se construiu. No seu local está o prédio construído em 1862 pelo industrial José Pedro Colares, hoje pertencente à família do falecido industrial Alfredo da Silva. Ã sua frente vê-se a cruz que deu o nome à rua da Cruz de Pau, actualmente do Marechal Saldanha.

15 - Casa nobre no largo do Calhariz, que no ano do terremoto era do Principal Lázaro Leitão Aranha e depois vendida para a construção do palácio de Joaquim da Cruz Sobral, onde funciona a Caixa Geral de Depósitos. A rua que desce dêsse palácio, aguarelada de escuro (FJ na p lanta), é a rua da Bica de Duarte Belo, onde trabalha e elevador chamado da Bica. E a casa com dois andares e quatro janelas de frente em cada um (G, na planta) que fica na vertical daquela rua, é sita na rua de S. Paulo, n.os 230 e 236, e nela Sé' abre o portal de ingresso para o dito elevador. O prédio tem actualmente mais dois andares.

16 - Prédio cujo telhado se projecta no céu, no sítio do palácio do largo do Calhariz, que foi dos Sousa Holstein, e no qual tem a sede o Automóvel-Club de Portugal (interpretação duvidosa). A rua, também aguarelada de escuro, que se vê à direita e paralela à acima mencionada (H, aa planta), descendo pela encosta, é a calçada da Bica Grande, que desemboca inferiormente defronte da Casa da Moeda. Um prédio arruinado. (I, na planta) que se vê na vertical do traçado da refarida calçada, deve ser o que em 1755 pertencia aos condes de Sandomil e hoje é do negociante Carlos Silva; esquina da rua das Chagas, onde tem os n.os15 a 4 7, para o largo do Calhariz, n.os 1 a 4.

17 - Armazém da Junta do Maranhão, segundo mestra a planta inédita. Ficava aproximadamente no sítio da esquadra de policia da rua da Boa-Vista.

18 - Escritórios ou armazéns da .Junta do Maranhão. Eram situados, po uco mais ou menos, no local do prédio qu e esquina da rua de S. Paulo, n. os 91 a 107 para a rua da Moeda. Tôda a extensão que vai desde o edifício 18 até ao 6, hoje preenchida com prédios de particulares, a abegoaria e outros serviços municipais, a esquadra de polícia e a fábrica do gás, isto é desde a rua da Moeda até à do Instituto Industrial , e limitada ao norte pelo parapeito da fortificaçcio, estava, por ocasião do terremoto de 1755, tôda ocupada com estaleiros, que deixavam desafrontados, e com vista sôbre o rio, os prédios do lado norte da rua da Boa-Vista.

19 - Escritórios ou Armazéns da Junta de Pernambuco, segundo a mesma planta. Eram o corpo de edifício da Casa da Moeda, ao longo da rua da Moeda, onde estavam uns armazéns que arderam em Outubro de 1941.

20 - Continuação dos armazéns do número anterior. É possível também que fôsse o muro que fechava o recinto dos edifícios e oficinas da Casa da Moeda, à qual pertenciam as três ja-nelas e os três ou quatro telhados seguidos que o desenho mostra por cima do referido muro.

20. A Casa da Moeda foi instalada naquele local em 1720 e actualmente está sendo daí removida.

21 - Prédio sito no pátio chamado do Pimenta, encostado ao paredão sul do suporte do terreiro onde está a igreja das Chagas. No seu local, ou sôbre êle, levantou-se o grande prédio que pertence ao Dr. José Dias Ferreira. O edifício com três andares que à di-reita lhe fica contíguo (J, na planta) , é o prédio do mesmo pátio, n. º' 30 a 32, que tem também frente para a rua do Ataíde, n.os 15 a 17.

22 - Ruínas da igreja das Chagas. Nota-se o paredão ocidental do terreiro no tôpo da rua das Chagas, derrubado para a encosta . Ã direita, na línha do horizonte, avista-se o frontão da igreja do Loreto.

Vista de huma parte da Cidade que comprehende desde São Bento dos Negros thé o Largo do Corpo Santo a qual vista foi deliniada / no citio
fronteiro a Santa Catharina de Monte Sinay / e tomada na parte do Sul no
meyo do Tejo.
Hemeroteca Digital de Lisboa

23 - Tanoaria dos Armazéns ( da Junta de Pernambuco?), segundo a nossa planta inédita; na praia, como no terrapleno, vêem-se alguns barris. Devia ser uma de pendência do forte de S. Paulo, para o qual tinha escadas de acesso. Na sua parte posterior pegava com a grande arrecadação do forte, onde é hoje o armazém de ferro da firma Orey, Antunes & C. ia, para o qual também tinha portas de acesso.

24 - Forte de S. Paulo ou da Tenência. No seu terrapleno vêem-se um guidaste e balas empilhadas. Logo por cima dêle, e formando-lhe o fundo, mostra o desenho a primitiva igreja de S. Paulo, arrulnada, que ficava da banda do norte do forte.

25 - Paredão do parapeito da fortificação marginal, a que se segue uma palissada, os quais ligavam o forte de S. Paulo com o dos Remolares (L, na planta), que se vê na continuação da palissada. No sítio da muralha, e em mais terreno conquistado ao Tejo, foi construída mais tarde, em 1771, a antiga e desaparecida praça da Ribeira Nova (M, na planta), que ficava contígua ao forte.

26 - Prédio no local do quarteirão de casas que fecha pelo sul o actual largo de S. Paulo; pertenciam estas então ao marquês de Pombal; as que lá existem actualmente são de reedificação posterior ao terremoto.

27 - Palácio do marquês de Valença. A sua frente, do lado ocidental, vê-se uma grande muralha de suporte do terreno onde foi , no século XIX, construída a fábrica de cerveja Jansen. O corpo de edifício marcado 27, com cinco grandes janelas na fachada ocidental, é o antecessor do prédio pertencente à mesma fábrica, na rua António Maria Cardoso  n .os 3 a 7, em que funcionam os serviços de obras, e onde está o refeitório do pessoal das Companhias Reünidas Gás e Electricidade, que trazem o edifício de renda. Noutra parte do mesmo prédio, mais ao norte, estão instaladas a tipografia Maurício & Monteiro e vários armazéns e estabelecimentos comerciais.

28 - Paços dos Duques de Bragança, que eram situados no local do prédio que esquina da rua António Maria Cardoso, n.os 2 a 16, para a rua Vítor Córdon. Entre os edifícios 28 e 29 avístam-se, no último plano, as mura-lhas do recinto interior ou castelejo do castelo de S. Jorge, com três paus de bandeira, num dos quais, o da tôrre onde depois se instalou o observatório, flutua a bandeira com as armas reais.

29 - Paredão sul da igreja do convento de S. Francisco da Cidade, metido hoje no maciço dos prédios da rua Vítor Córdon, que tornejam para a rua Serpa Pinto.

30 - Igreja antiga dos Mártires, junta ao convento de S. Francisco, que dêsse sítio foi mudada, na reconstrução da cidade depois de 1755, para o lado sul do meio da rua Garrett.

31 - Palácio dos condes da Ribeira; por ocasião do terremoto, dependências do paço real da Ribeira; e actualmente do Dr. Pedro de Carvalho Monteiro, no tôpo superior da calçada de S. Francisco.

32 - Palácio dos Côrte-Reais, arruinado e depois demolido, que ficava no sítio das desaparecidas oficinas do Arsenal de Marinha, contíguas ao largo do Corpo Santo.

33 - Dependências do palácio anterior, picadeiro, cavalariças, palheiro e outras oficinas. no sítio da Sala do Risco do Arsenal de Marinha. A vista mostra que êste corpo de edifício resistiu ao terremoto de 1755, e que conserva exactamente a disposição arquitectónica, com janelas grandes nas fachadas e mezaninos sôbre as mesmas, sendo três na fachada voltada ao sul, que hoje ainda podemos observar na dita ala.

Pelo desenho da vista que estamos estudando reconhece-se que a arquitectura e alturas da a Sala do Risco serviram de norma e foram adaptadas, depois do terremoto de 1755, na edificação da parte restante do Arsenal até à praça do Comércio, assim corno da Alfândega.

Da conservação dêste edifício resultou a orientação oblíqua que forma a ala da Sala do Risco, relativa ment e à linha geral do corpo principal do Arsenal.

Reconhece-se que a presente vista panorâmica, que até agora se tem conservado inédita, apresenta alguns pormenores topográficos e aspectos de uma parte de Lisboa na época do ter-remoto de 1755, que eram ignorados, o que a torna preciosa para o conhecimento da cidade naquele período de transição e de urbanização que o terremoto veio provocar. (1)


(1) A. Vieira da Silva, Hemeroteca Digital de Lisboa

Artigo relacionado:
Panorâmica de Lisboa em 1763
Panorâmica de Lisboa nos finais do séc. XVIII