segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Petiscos de Lisboa por Eduardo Fernandes, o Esculápio (3 de 3)

[Feiras de Lisboa]

A êste livro vou buscar ainda alguns pormenores sôbre as feiras de Lisboa, que começavam antigamente pela das Amoreiras, tanto da minha mocidade, e seguiam com a feira de Alcântara e de Belem, para acabarem na feira do Campo Grande, tendo socumbido depois que a feira foi para a Rotunda, inaugurada com a popular "feira de Agôsto", de saudosa memória, que se estabeleceu ali ao comemorar-se o centenário da Descoberta da Índia.

Eduardo Fernandes (1870-1945) Esculápio.


Não vou descrevê·las, porque seria prolixo nesta ocasião e quásl dão assunto para outra palestra, mas referir-me-ei aos petiscos ali confeccionados, como já disse, pelos célebres barraqueiros "Pincha", pelo "Carapelino", pelo "Machadinho" e pela "Maria Botas", a companheira do "António Wenceslau" que perdeu a sua reputação ao descobrirem que vendia gato por coelho.

O "Pincha" era sogro do "Araujo Pécoré", que foi depois empresário da barraca da rua dos Condes, que sucedeu ao velho teatro, onde se representaram o "Microbio", a "Sombra do Rei" e o "Duque de Visela", peças de Jacobety, enriquecendo o empresário, que fundou na rua da Palma, um guarda-roupa, o qual foi depois pertença do "costumier" Castelo Branco, seu empregado, já falecido.

No calão das feiras, um bife era um "apoquentado"; a galinha, uma "penosa"; o coelho com feijão carrapato, "pulinhos com tirantes"; costeletas, "mariquinhas"; chispe com hortaliça, "rachado com ervas"; lulas, "provocadoras"; pescadinhas, "arrelampadas"; peixe espada, "chanfalho"; linguado, "espalmado"; sardinhas, "fraldiqueiras"; carapaus, "pencudos"; alface, "pinoia"; pimentos, "pimpões"; azeitonas, "caganitas"; pepino, "S. Gregorio"; mexilhão, "cabidela marítima"; ameijoas, "lambisgoias"; bananas, "sobremesa de macacos"; palitos, "sobremesa de cacete"; uma garrafa de vinho e copos, "uma viuva e fihos"; um litro de vinho, "um caiado"; um pão, "um susto".

Mas havia nas feiras outros petiscos, como as queijadas e as cavacas, as nozes na feira do Campo Grande, e, sobretudo, as "farturas", embréchados de farinha com assúcar, acompanhados de um vinho especial, nas barracas próprias, que mais não são do que os "churros" ou "buñuelos" que fregem todas as manhãs, para o primeiro almôço, nas terras espanholas, nas praças públicas, distinguindo-se na sua confecção os ciganos da feira de Sevilha.

A farinha, devidamente amassada, é expelida sôbre uma negra e larga frigideira com azeite, por um aparelho especial de fôlha que o cosinheiro oprime junto ao peito, fazendo sair pelo bico como que um enorme reptil que, muito amarelo, na frigideira se enrosca.

Referir-me-ei, agora, às modernas casas de mariscos que se abriram na cidade, em S. Domingos, no Jardim do Regedor, na rua Eugénio dos Santos e outros pontos, sucessoras da vendedeira que andava pelas hortas, com uma celha de fôlha, a apregoar:

— Vá lá Camarões! onde, com cerveja e vinho, vendem as santolas, as lagostas, os camarões, os pecebes, os búsios, as ostras, e outras especialidades, a peso, mas sem as balanças especiais e pequenas de que usava a vendedeira, à compita com a venda do salmão e da lampreia do Minho, que, com os ananazes, agora em crise por causa da guerra, se apresentam à cubiça dos gourmands nas lojas e nos armazéns de víveres dos sítios mais concorridos. Em S. Pedro de Alcântara, na casa onde esteve o "restaurant" de que atrás falámos, abriu recentemente um "bar" modêlo, propriedade da fruteira e vendedeira de mariscos e primores da rua Eugénio dos Santos. 

[Hortas e retiros]

É tempo de lhes falar de outra modalidade que houve em Lisboa para comer à tripa fôrra e saborear bons petiscos, entre os quais avultava o rico peixe frito, carapaus, peixe espada, llnguado e outros, acompanhados de bom vinho do Termo ou do Cartaxo, com a competente salada de alface, que se ia buscar, fresqulnha, à beira do pôço, onde escorria, e que se temperava com bom azeite e vinagre, pimpinela, cuentros e outros cheiros.

Lembro-me da quadra que se cantava numa paródia minha, o "José João", e que se tornou popular:

O vinho fóra de portas 
Tem um sabor exquislto, 
Sabe a galinha, nas hortas, 
A posta de peixe frito. 

Para se ir ás hortas, metia-se a gente num carrão ou "char-á-bancs" que, às tardes, se postava em S. Domingos, junto às grades, com a sua imperial de bancos em anfiteatro, por cima do veículo, três muares derrancadas que a puxavam, cocheiro e condutor de grandes melenas.

Pagava-se um pataco pelo transporte até à estrada de Sacavém, onde os principais retiros eram a "Perna de Pau" e o "Zé dos Pacatos", o primeiro onde trabalhavam de cosinheira a tia Gertrudes e a gorda Basalisa, que teve, mais tarde, um retiro com o seu nome e acabou em costureira do Teatro do Príncipe Real, e o segundo, onde havia um criado galego, baixo, pançudo, nariz arrebitado, tipo de gnomo, conhecido pelo "Bitoque", que acabou em criado da "Floresta".

O "Bitoque", que era popularíssimo, tinha imensa graça e descompunha os fregueses. Se lhe pediam qualquer vianda que demorava, respondla imediatamente:

— Espere! Vá você buscá-la! Eu não sou seu criado, sou criado do patrão!

Uma tarde, fui jantar ao "Zé dos Pacatos" com Fialho de Almeida, grande amador dos petiscos das hortas, e D. João da Câmara, que, a convite nosso, ia fazer a sua iniciação. Veiu a sopa, trazida pelo "Bitoque", cuja biografia contámos ao grande dramaturgo, e êste, metendo a colher à bôca e queimando-se, gritou:

— Ó "Bitoque"! Olha que esta sopa está quente!

O gnomo aproximou-se do prato de D. João da Câmare, meteu-lhe dentro o rechonchudo "fura-bolos", levou-o à bôca e chupou, declarando logo, com um enorme descaramento:  

— Não acho!

Foram canas e canetas para o mimoso poeta não lhe partir a cara, custando a convencê-lo de que todos davam ao "Bitoque" a maior liberdade.

O galego apressou-se em trazer nova sopa e tais artes teve de se insinuar no ânimo de D. João da Câmara, que êste, quando ia ao "Zé dos Pacatos", não queria outro servo.

O "Zé das Hortas" ou freqüentador dos retiros campestres, era, no meu tempo de rapaz, um tipo especial, calça estreitinha e afeiçoada à perna, chapeu de côco de aba direita e bengala de muleta angular de ôsso ou de marfim.

Nas hortas, eram sempre certos os actores, com as suas grandes trunfas e casacos originais, e os cantadores de fado como o Manuel Serrano, o irmão do popular José Augusto; o Roldão e outros e outras, cujo nome não cito para não me desviar do meu tema.

Nas hortas, havia sempre cães famintos, pedintes, hortelões e cavadores, e o indispensável cego da guitarra, acompanhado pela mulher da viola e outros músicos, que entoavam canções de gultarredo fácil e dedilhavam e esganiçavam o fado com um estilo especial e inconfundível, indo de mesa para mesa, onde o peixe fumegava e os canjirões do roxo ferviam.

De quando em quando, a sua desordem, que as patrulhas da Municipal acalmavam, com a indispensável "comida de urso", também petisco lisboeta, e a retirada ao lusco fusco, todos mais ou menos "etilisados", como se diz à moderna, os rapazes cavalgando enormes canas e as mulheres cantando e transportando os farneis e os maridos.

Nos arrabaldes de Lisboa, pelo Arieiro, Campo Grande, Campolide, Xabregas e muitos outros sítios, eram inúmeros os retiros campestres, onde se comia, bebia, cantava e jogava o chinquilho em mangas de camisa.

Desapareceram já quási todos, uns porque a urbanização da cidade os sacrificou, outros porque passou de moda "ir ds hortas", o cego da guitarra eclipsou-se por ordem das autoridades e foi-se o ambiente "alfacinha" daquelas diversões.

Só na estrada de Sacavém, além dos que citámos, havia o "Papagaio", a "Quinta da Assunção", o "Gungunhana", o "Retiro da Montanha", a "Fonte do Louro", o "Camba", o "Cabaços" e o "Coimbra", todos em quintarolas onde se ouvia o chiar da nora e se podia, antes ou depois da refeição, ir dar um salutar passeio pelos rêgos das couves e outras hortaliças, ou vêr o boisinho que fazia andar os alcatruzes e visitar os estábulos e as barracas dos trabalhadores.

Havia, ainda, o "José dos Caracois", no Arielro; o "Faustino" e o "Guerra", em Cabo Ruivo, donde se viam passar, lá em baixo, os tramways de Vila Franca e se comia um delícioso pudim fabricado pelas recolhidas de Chelas; o "Ferro de Engomar", na estrada de Bemfica, bem como o "Bacalhau", o "Charquinho", que foi do "Paco", da rua das Gaveas; as "Pedralvas"; o" Caliça", todos em azinhagas próximas; o "Perú"; o "Quintalinho", as "Córtes", a Santa Marta; a "Horta das Tripas" e a "Horta Navia", aquela na Estefânia e esta em Alcântara; o "Manuel dos Passarinhos" e o "Retiro do Poço dos Mouros", hoje substituídos pela rua Morais Soares, que se abriu na direcção da azinhaga que levava ao cemítérlo, onde aquele se pavoneava com o conhecido letreiro: "Na volta cá os espero"; a "Quinta das Varandas" e outros retiros a Xabregas; as casas do Campo Grande e da Calçada de Caniche, que já citei e que se prolongavam com as do Senhor Roubado e de Odivelas, terra dos esquecidos e da marmelada, hoje representados pela "Tia Joaquina", locanda que se abre à direita do caminho de Loures, numa casa saloia, havendo em Loures também várias casas de vinhos e petiscos; os restaurantes afamados de Algés e do Dafundo; as tabernas do Ginjal, onde se petiscam excelentes caldeiradas, à beira do Tejo; o "Joaquim dos Melões", "Joaquina dos Caniços" e outros na Cova da Piedade e em Almada; o "Arte Nova" em Palhavã; o "Sossêgo", na Buraca; o antigo "Retiro da Torrinha", na Rotunda; o da "Rabicha", em Campolide [v. artigos dedicados: Romantismo e Patuleia na Quinta da Rabicha e Geração de 70 e Quinta da Rabicha], junto aos arcos das Águas Livres; o "Pedro dos Coelhos", na velha Porcalhota, onde guisavam um coelho enquanto o diabo esfregava  um ôlho.


Aqueduto de Alcântara, vista a montante dos arcos, século XIX.
Cabral Moncada Leilões


Em quarta feira de Cinzas, as hortas abarrotavam. Os actores e a gente de teatro eram os seus principais frequentadores. E por isso se chamava a essa reunião extraordinária e animadissima O "Carnaval dos actores".

E ainda aqui estaria por largo tempo a citar locandas que desapareceram. Quero, se não se aborrecerem, pregar-lhes uma pançada de petiscos para que comam à "labordaça" e possam agora, satisfeito o apetite, transitar para as bebidas que também dão prazer ao físico.

[A ginginha]

Falemos, em primeiro lugar, da ginginha, o licor ou infusão de ginjas em boa aguardente, tanto do agrado do portuguesinho, que, ao saboreá-la, lê, estarrecido, êste pequeno poema pintado à porta da ginginha de Santo Antão:

É mais fácil co'uma mão 
Dez estrêlas arrancar, 
Fazer o sol esfriar 
E reduzir o mundo a grude; 
(éste verso estd propositadamente errado para acentuar mais o fenómeno) 
Mas ginja com tal virtude 
É difícil de encontrar. 
27 — Portas de Santo Antão — 27 

Ou então: 

Em ginga nlnguem me engana, 
Sou deveras amador; 
A derrota é de uma cana; 
Por causa de tal licor, 
Rompi êste quarteirão 
Da rua de Santo Antão 
Ao Pateo do Regedor. (n.° 12)

A primitiva "ginginha", situada no largo de S. Domingos, no gaveto do quarteirão do Rossio, tem duas meias portas, nas quais, com umas pinturas do actor Alexandre de Azevedo, antigo pintor de tabuletas, estão inscritos os seguintes versos, pelos quais o galego dono da casa me deu, em bons tempos de penúria e quando o dinheiro era dinheiro, a soma de 5.000 reis:

Dona Prudência da Costa, 
Delambida e magrisela, 
Fez de ser tola uma aposta, 
Diz que ginginha nem vê-la 
Porque, coitada, não gosta. 

E a ama de um reverendo 
Que é das bandas da Barquinha 
Tem um aspecto tremendo, 
Bebe aos litros da ginginha 
E é isto que se está vendo. 

A pintura representa duas tipas a escorropichar copinhos, vendo-se, na outra meia porta e na mesma atitude, dois tipos, num dos quais o artista me quiz representar, mas com grande infelicidade.

O Mateus é um chóchinha 
Mais feio que um camafeu, 
Magro, tísico, um fuinha, 
Nunca na vida bebeu 
Nem um copo de ginginha.

O irmão, que sabe a virtude 
Desta divina ambrozia, 
É gordo como um almude, 
Bebe seis copos por dia, 
Por isso goza saúde. 

Muitas casas de venda da "ginginha" há na cidade, mas só uma imitou as primeiras nas tabuletas em verso, juntando o alcool à poesia. É situada na actual rua de Barros Queiroz, não longe das outras, e tem à porta um painel com o seguinte:

Matei tigres e leões, 
Leopardos mais panteras, 
Eu já matei tantas feras 
Que calculo em dez milhões, 
Matei perdizes, faisões, 
O veado, o javali 
Minha sanha acaba aqui, 
Mato agora por capricho 
Todas as manhãs o bicho 
Com a ginginha Rubi.

As casas da ginginlza foram as sucessoras dos velhos alambiques, que muitos havia por Lisboa, um que eu conheci no Largo do Rato, outro na Rua do Prlncipe, antes da construção da estação do Rossio, e, ainda, outro no Loreto, esquina da rua da Emenda, o último a desaparecer.

Eram casas de venda de cafés e bebidas alcoolicas ao balcão, com o licor de amendoa amarga, o licor de rosa, e a "mistura"; o "meio curto", ou café com aguardente; a "carocha", ou café com vinho; a "pintada" e outros "mata-bichos", semelhantes à "cana do Brasil" ou "Paraty", que se ia beber aos botequlns "rascas" da Ribeira Nova.

Era no tempo em que se cantava no final das cantigas de fado:

Torradinhas com manteiga, 
Por cima café limão...

Na travessa de Santa Justa, esquina da Rua da Prata, certo aldabrão manipulava o "cacharolete", ou conjunto de quantas bebidas havia na loja, em maior ou menor quantidade, segundo o preço, e constituindo uma bebida, antecessora do actual "coklail", e dos "piratas", vendidos numa tabacaria aos Restauradores, que produzia pela garganta abaixo os mais originais cambiantes do paladar.

A "ginginha" bebe-se em pequenos copos, onde o taberneiro, com o gargalo da garrafa sufocado pela rôlha, deita uma ou duas ginjas, cujos caroços os fregueses veem roendo pela rua fora, depois de saborearem a polpa do fruto.

[O vinho]

E passemos da aguardente para o vinho, que é sempre de apurado gôsto e aprazimento dos beberrões nos carvoeiros, não sei porquê, talvez pelas emanações próximas do carvão e das bolas de cisco.

Já fecharam há muito os grandes armazéns de vinhos do "Quintão" e do "Mesquita", pai do chorado dramaturgo Marcelino Mesquita, do Cartaxo, a S. Domingos, onde hoje está uma oficina de desmancha de porcos e fabricação de enchidos. O primeiro era situado ao Loreto, no prédio que pertence à antiga Associação da Imprensa, onde está hoje um cinema multo freqüentado pela garotada.

Eram vastos casarões, com uma atmosfera especial, onde se acumulavam os piteirelros em frente do copo e de uma fila interminável de pipas, numa barulhada infrene e atroadora.

No "Quintão", que tinha à porta uns colchões, porque o proprietário fôra em tempos colchoeiro, chegavla a vender·se uma pipa por dia, aos domingos e dias de festa, fazendo bôca ao vinho os petiscos do Bal, a quem já nos referimos, e as castanhas assadas da Carolina, uma moçoila espadaúda, bonita e desenxovalhada, que abanava, entre portas, o assador e misturava, por vezes, Bacho com Cupido.

De entre as vendas de vinho da capital, tem particular fama a "Tendinha" do Rossio, junto ao Arco de Bandeira, sôbre cuja porta se vê ainda hoje um quadro alusivo ao que foi a locanda em 1840. Na loja guardam-se e estão à vista na montra as enormes chaves do primitivo estab.elecimento à mistura com garrafas de vinho daquele tempo. Continua a ser muito frequentada, bem como a casa do "Zé Dieguez", na Rua Paiva de Andrade, onde se reuniam os "oficiais do copo", os marialvas e decilitreiros do século passado, e a adega do "Mendonça", dos vinhos da Arruda, no largo da Guia, hoje de Martim Moniz.

Novas casas vão aparecendo para substituir as antigas, como uma que se abriu no Arco de Bandeira para "distribüição" — é o têrmo que se emprega na tabuleta — dos mais famosos vinhos verdes.

O "pastel de bacalhau", que é petisco preferido dos amadores da pinga, a que no Pôrto chamam "bolo de bacalhau", desempenhou sempre um grande papel na vida citadina. Ainda me lembro de ter sido presidente de um júri num concurso de pasteis de bacalhau que houve no antigo teatro D. Amélia. Tive de comer uns trinta e tantos pasteis para conferir o prémio — já se sabe e segundo o costume, por empenhos — a uma corista das minhas relações.

O "José Maria dos Santos", o "Val do Rio" e o "Abel Pereira da Fonseca", grandes produtores e comerciantes de vinho, abriram para a sua venda, muitos estabelecimentos na cidade, rivais do famoso barracão de Campolide e congéneres casas de Alcântara, onde o vendiam a quatro vintens o litro, abarrotando de amadores do roxo sumo.

Chamavam-lhe, então, o vinho barato, mal prevendo que se havia ainda de vender o litro a quási dois escudos, com grande desespêro dos "rechinchas" e dos "arrenegas". Não havia ainda as cosinhas económicas onde os pobres petiscavam por pouco dinheiro.

[Outras bebidas]

Não eram, porém, só o vinho e a aguardente as bebidas preferidas. O chocolate, que se vendia nos chocolateiros, como um que houve no Largo do Carmo; o que funcionava na loja, onde depois abriu o "Tavares Pobre"; e o do comêço da rua do Carvalho, hoje de Luz Soriano, tinha os seus adeptos para o primeiro almôço, por entre o bater do chocolate do operário que estava à porta, a batucar sõbre uma pedra.

E era também vendido pela manhã nos botequins do "Refilão", da Mouraria; no "Café Bom", de S. Domingos; no "Contente", no "Marcial", da Carreirinha do Socorro; no "café Piolho", em frente da Politécnica, nos cafés da Rua da Betesga e em outros botequlns semelhantes, onde, às noites, tocavam piano e outros instrumentos para atrair os bebedores de café e de bebidas generosas. Tiveram fraca existência os "cafés de camareiras", como um que houve na rua Ivens, onde Alfredo Tinoco, com o pé de uma mesa, pôs tudo em alvorôço.

O "café quente" que os "pirilampos", ou vendedores ambulantes dessa bebida, traziam em grandes cafeteiras de folha, com lume nos baixos a aquecer o líquido, tinha muitos fregueses durante a noite e a madrugada, impingindo os vendilhões, clandestinamente, aos notívagos o seu copinho da "rija".

E lá estava no Campo Grande, às portas, o "café dos Espelhos", posto de café multo conhecido dos boémios, similar de outros armados em diversos sítios, como um que esteve largo tempo ao cimo da Calçada da Glória.

O leite, que hoje se vende nas leitarias, era dantes vendido pelas ruas, e mungido das tetas das burras, ou das vacas que os leiteiros conduziam a pé, distribuindo-o largamente por tôda a parte. Ainda há de haver quem se lembre do velho pregão noturno do "i i ú à leite" e daquele saloio que, tangendo as pobres e escanzeladas ruminantes, gritava, cantando:

Ó menina, venha depressa, 
Que o leite esfria cá na travessa! 

O "capilé", ou xarope de avenca, também se vendia em abundância, ou na conhecida casa de Santo Antão, em frente do Coliseu, cheia de avencas no tecto, hoje transformada em botequim, ou nos demolidos quiosques do Camões, e, ainda, pelos vendilhões de água fresca e do "capilé de cavalinho", chupado pelos rapazes em canudos de folha, sôbre os quais bailarinas, toiros e toireiros giravam.

O "prémier marchand d'eau", velhote vestido de branco, com chapeu de palha, fez época no Rossio, e a "tia Maria", multo lavadaça e cheia de toalhas brancas, a bilha com os três caniças na rôlha, era indispensável na Avenida. Também eram vulgares os vendedores de limonada, à moda do norte, com os seus barris de cortiça, enramados de hervas.

[A fava-rica e o mexilhão]

Dois petiscos há em Lisboa, porém, de remotos tempos, que ainda hoje perduram: a "fava rica" pela manhã e o "mexilhão" à noite.

A primeira vem em panelas de folha à cabeça de asseadas provincianas que cobrem a vasilha com um pano branco, dentro de um enorme cesto retirando a fava ainda fumegante para o prato da freguesa e borrifando-a com uma almotolia de azeite; o segundo vem em dois tachos, um com mexilhão e o outro com o môlho de azeite, alho e rodas de cebola, os tachos também em cestos, e cobertos de panos brancos, pendurados da extremidade de um pau que o vendilhão coloca ao ombro, gritando:

Iérre, iérre, mexilhão 
Com seu dente de "aio", 
Seu "zaragataio",
Seu azeite de Santarém, 
Que êle é pouco e sabe bem.

E em outro tom: 

Traz o môlho feito à espanhola.

Este vendilhão noturno é o sucessor da "Marisqueira das Trindades", dos tempos de Tolentino, e da "preta do mexilhão", da minha infância, que também vendia "gergelim" e "alcomonla", espécie de bolos feitos com mel, amendoas e pinhões, rivais da "alféola", ou canudo de açúcar em ponto, passado na fieira das mãos, que os rapazes chupavam com delicia, lambusando-se todos, a extremidade segura com um papel.

Esta "alféola" era vendida por homens que traziam caixas, com os canudos armados em papeis, a tiracolo, encarregando-se mulheres, especialmente velhas, de vender, pelas ruas ou à porta dos estabelecimentos, os tremoços, as pevides, o amendoim, a fava torradinha, a alfarroba, os figos passados, o torrão de Alicante e outras gulodices. Também era multo procurada a raiz de "alcaçuz", ou "pau cachucho", espectante e emoliente, que os rapazes chupavam com delicia.

Uma vendedeira especial apregoava as belas arrufadas, muito fofinhas, que desapareceram, gritando:

Vá lá boas arrufadas!

O rapaslo, pelas ruas, fazia-a desesperar, imitando:lhe o pregão:  

— Já lá vou bater o fado!

[As romarias]

Lisboa delirava sempre com as bresundelas que fazia nas romarias dos arredores: o "Senhor da Serra", em Belas, com o leitão assado; a "Senhora da Atalaia", ao pé do Montijo, com a festança dos círios ; a "feira da Luz", cêrca de Carnide, onde também havia vários retiros; a "feira das Mercês", com o seu "muro do derrete", as peras assadas e as frituras de carne de porco, à saloia, com muito colorau; a "festa de Santo Amaro", com as suas enfiadas de pinhões e a gaita de foles dos galegos.

Muitas destas festas perderam já os seus encantos e outras desapareceram ou tendem a desaparecer.

[Os doces]

Com respeito a doces — e descansem que não vou enumerar-lhes as confeitarias e pastelarias que tem havido na cidade, desde o célebre pasteleiro da Rua da Rosa — consultem, ainda, o livro de Forjaz de Sampaio, que traz dêles uma longa lista, o que não quere dizer que não lhes lembre o "jesuita", bolo do feitio do chapeu da seita, multo estimado antes da República; a "brôa do Natal", a "amendoa", e o "folar da Páscoa"; o "Bolo Rei", do princípio do ano; o "Bolo de Noiva", a "lampreia" e as "trouxas de ovos", o "bom bocado", as "rabanadas", ou "fatias de parida" da noite do Natal, os "rebuçados", ou "matacões", o "doce de côco", o "pão de ló", o "bolo de arroz", os "coscorões", os "onhos" e as "filhós do Entrudo", o rico "arroz doc"e e o "leite de creme", o "bolo de leite", os "pastéis de Belém", a "bola de Berlim", os "especiones", os "biscoitos", as "linguas de gato", as "barriguinhas de freira" e o "toicinho do ceu", as "orelhas de abade", os "palitos de Oeiras", a "bolacha fina" e a "Maria Pia", que, nos meus tempos de rapaz, se vendiam numa loja às Trinas e em algumas das barracas, que, junto do Lagoia, o cangalheiro, foram demolidas para edificar o Politeama.

Todos estes doces são multo nossos, ou, por outra, muito Vossos, porque eu sou diabético e tenho de me contentar com um pão negro que por ar \lendem e que é o meu constante petisco. Nem sequer posso regalar-me com um "bolo de trigo", em forma de ferradura, que as saloias, com os seus burros, por \lezes vêm vender à cidade e que hão de ter visto e provado, com certeza. Nem sequer como uma fatia do antigo e saboroso "pão saloio de Maleças"!

As casas de comida que enumerei podia acrescentar os hoteis e pensões — não tenham medo que não vou fazer a sua lista — onde se janta bem e por bom preço. Ricos tempos em que, no "Francfort", do Rossio, se jantava por seis tostões, com muitos pratos, vinho, doce, fruta e café!

Pela cidade, abundam, ainda, os vendilhões com coisas boas — sem alusão aos vendedores das farturas que gritam: "Isso é que elas são boas! E que culpa tenho eu de que elas sejam boas"?

E a "pera assada" no forno, quando entra o outono, vendlda em cestos transportados por duas pessoas, homens ou mulheres, com uma lanterna acesa; a "pera de Santo António", em Junho; as "uvas", os "melões" e as "melancias cortadas à faca"; os outros mimosos frutos, muitos dos nossos pomares, sem escapar a "romã", cujos bagos se comem em dia de Reis; "figos de capa rôta, quem quer figos, quem quer almoçar?"; as "castanhas assadas no forno", que os homens da Beira trazem em cestos vindlmos a tiracolo, apregoando em bons tempos: "dez reis vinte! Quentes e boas! Elas estão a escaldar!" ou então cosidas, em panelas de folha, no regaço das varinas, que apregoavam: "Quentinhas de erva doce!"

Isto sem falar nas castanhas assadas que se vendem à porta das tabernas, como aperitivo, o assador de barro a fumegar, e nas castanhas piladas que se vendem nas mercearias. 

Lembram-se do vendedor de pasteis, que os trazia de bracado numa condessa forrada de oleado, e gritava: "vá lá pastelinhos"? Contava-se que, por 10 reis, preço de cada pastel, deixava aos rapazes lamber os que estavam por cima.

E o "queijo saloio"? E a "amora da horta"? que os garotos vendiam em cabazes muito lambuzados de roxo, com um garfo de três dentes? E o "burrié cosido", o marisco saboroso de que se faz uma rica salada com alho, pimenta e môlho de vilão?

E, entre os petiscos "puxavantes" à morraça, os rissoes, os pasteis de folhado e de massa tenra, os "pregos", ou pequenos bifes dentro de um "papo sêco", com presunto; o ovo cosido e machucado em sal e pimenta; os passarinhos fritos, rivais dos aperitivos com que dantes se bebiam os penachos, vasos esguios de vinho branco, numa adega subterrânea do Chiado; o "Champagne Saloio", feito com vinho branco, assúcar e soda; o vinho do Alto Douro, em uma tenda da rua do Príncipe; o Pôrto, na loja da Vinícola, aos Restauradores; o "abafado" e o "moscatel" nas tabernas; o Carcavelos e o Madeira nas confeitarias.

E que bem me sabiam, nos meus tempos de estudante, os pãesinhos com chouriço que o "Oportuno", antigo oficial de ourives, que depois deu em droga e passava as noites nas Duas Igrejas, sucessor do "Mangerico", envolvido em missões suspeitas, vendia no liceu!

Já notaram uma coisa, as pessoas que são viajadas? Nos restaurantes de Paris tudo o que leva pimentos é à espanhola e tudo o que leva tomates é a portuguesa. Talvez por essa razão, dantes, no Entrudo, quem ia cear ao "Barracão", da Rua da Trindade, tinha de comer tudo com môlho de tomate.

Ainda lhes quero falar da açorda, que essa é verdadeiramente um petisco de Lisboa, a boa açorda de alho, fervida, à portuguesa, petisco que há anos não provo por causa da dieta. E as sardinhas, sardas e carapaus de conserva e as ostras que, com o "sobriquet de portugaises", tão abundantes são em França, escasseando entre nós! E a carne de cavalo e de baleia que, em tempos, esteve à venda em Lisboa e de que tanta gente gostava, tendo-se actualizado a primeira!

Mais uma coisa a recordar tempos idos, para os que frequentam agora a cervejaria de Trindade e a "Portugália": a cerveja fermentada, que vinha numa botija de barro refractário, cuja rôlha rebentava com grande estrépito, o que fez dizer ao saloio, ao levar o copo à boca, carregando com a sinistra na moleirinha:

— Bem! Seja o que Deus quizer! 

E, agora, para a socega, depois de se ter saboreado uma castanha do Maranhão ou uma roda de banana, com bom queijo, vá lá um café num estabelecimento "chic", contraste dos velhos botequlns da cidade, tão modestos e tão populares.

Há, porém, que pedir o café numa gíria especial, ou seja um "carioca", ou um "garoto", ou um "galão", ou um "abatanado", ou um "pingado", ou um "negus", ou uma "mosca", para meter também aguardente.

O café vende-se modernamente, moído e pronto, em estabelecimentos próprios, como a "Mariasinha", a "Moreninha", o "Moinho de Oiro", ou a "Africanista".

De um dêles há-de ter vindo certamente aqueles que vocelênclas vão ingerir depois da palestra ou ceia que eu, com esta minha pantagruélica pançada, tão demorada e meudamente lhes impingi, para um dos quais — há-de haver Mecenas no auditório — desde já me convido.

Não me obriguem a ter de ir toma-lo a casa do Esculápio.

Minhas senhoras e meus senhores, muito bom apetite.

Lisboa, 16 de Fevreiro de 1941 (1)


(1)  Olisipo n.° 17, janeiro de 1942

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Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
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etc.