quinta-feira, 8 de abril de 2021

GRAND HOTEL DU MATTA

Quem não conhece o Matta? Ou com mais verdade, quem ha em Lisboa que não tenha uma ou outra vez saboreado os seus acepipes culinários, as suas gulodices de copa? Matta é um nome que se não pronuncia sem que instinctivamente se leve a lingua ao céu da boca e se sinta no estomago, ao ouvir da ultima syllaba, o appetite voraz por um bom jantar, ou por uma succulenta e opipara ceia.

Hotel du Matta, Largo das Duas Egrejas
Diário Illustrado, 23 de outubro de 1874

Donde veio o Matta, onde nasceu, o que era antes de ser cosinheiro? São perguntas a que ninguém saberá responder já hoje; e a posteridade, quando tiver de registar o nome do Brillat Savarin português, encontrar-se-ha comcerteza em graves difficuldades para preencher taes lacunas.

O Matta para a geração actual nasceu no primeiro dia em que pegou na cassarola que mais tarde o devia tornar immortal, e que lhe abria o caminho para o Olympo ao lado dos semi-deuses. Conhecemol-o pela primeira vez no Restaurant á la Carte estabelecido no Caes do Sodré, esquina da rua do Alecrim ["... predio que torneja da praça dos Remolares para a rua do Alecrim, encontra-se o modernissimo café Royal, no 1.º andar do qual predio existiu, em 1854, o restaurant de João da Matta" cf. revista Serões, 1909].

Que almoços e que jantares aquelles! Finura de manjares, delicadeza no desert, luxo no serviço, aceio e ordem, etc. etc. e tudo a troco do já hoje legendário cruzado novo. Um pinto! Que milagre aquelle, de nos encher o estomago, de nos entreter o espirito, visto que o moral anda de braço sempre com o physico, e tudo por uma quantia minima, que se dava sem se sentir! Saudosos tempos de então, em que se jantava por tal quantia e em que se sentavam comnosco á meza vinte annos de menos!

Arte de cosinha, João da Matta, 1876.
Portal Guará

Porque acabou o Restaurant á la Carte do Caes do Sodré? não o sabemos também, mas o caso é que acabou e que mais tarde tornámos a encontrar o Matta estabelecido na rua do Ouro, na antiga casa Chapelier onde é hoje o Monte Pio Geral. Como se vê, aquella casa era predestinada a encher alguma coisa a humanidade. Dantes enchia-lhe o estomago; presentemente enche-lhe a algibeira. É verdade que antigamente era a troco do alguns cruzados novos apenas, e agora só pendurando ali o relogio, o annel, ou coisa parecida de prata ou oiro. Decorreram os annos e João da Matta enfastiou-se um dia de ali mentar o papinho á humanidade.

Atirou para longe o barrete branco que lhe fora por muito tempo coroa de carvalho e retirou-se á vida burgueza, começando a viver do sseus rendimentos. Foi esse um periodo de verdadeira decadencia para a arte culinaria em Portugal. Todos andavam amarellos, as digestões faziam-se difficilmente, e os rostos dos bons-vivants mostravam-se tristes e pesarosos. Não sabemos se a parte de policia registou durante esse periodo algum caso de suicídio por effeito do spleen. Não temos á mão a respeitável folha incolor para nos elucidar.

Matta pelo seu lado não andava menos triste do que os seus antigos freguezes. A sua actividade não se coadunava com a vida sedentaria que abraçara. Procurava distrair-se e não o podia conseguir. Por toda a parte por onde transitava via cassarolas a fazerem-lhe negaças; se saia para o campo em vez do perfume das boninas só respirava o aroma adocicado dos almis e o acre cheiro do molho de villão frio. Tentava dormir e não podia conciliar o somno. As facas da cosinha eram o seu pezadello habitual.

Uma madrugada, depois de ter sonhado toda a noite com a galantine e com a charlote-russe, saltou para fora da cama, tirou da cabeça o barrete de dormir e collocou em seu logar o bonnet branco que por tantos annos fora a sua gloria. A arte culinaria ia entrar numa brilhante phase. Os Gargantuas e os Pantagrueis podiam folgar, porque os antigos almoços e jantares iam reviver.

João da Matta então não se poupou  a despezas e fadigas para dar todo o lustre e esplendor á arte pela qual se suicidara Vatel e pela qual também elle estivera a ponto de morrer de saudade.

O Restaurant a la Carte do largo das Duas Egrejas, o Grande Hotel Matta da rua do Chiado  e o Grand Hotel du Matta no antigo palacio dos srs. Ferreiras Pintos, foram creações suas e instalaram-se a curtos intervallos. E só assim, só com essas tres casas, o rei dos cosinheiros poude dar guarida e satisfazer os estomagos das innumeras famílias que o procuravam, quer da província, quer da Hespanha, quer do Brazil. João da Matta sustenta ainda hoje essas tres casas e qualquer d'ellas ahi está para attestar pelo seu luxo o bom gosto e renome do seu proprietário.

O Grand Hotel du Matta, que a nossa estampa hoje representa, e que é situado no largo das Duas Egrejas, é sem questão alguma a casa mais bem collocada de Lisboa para um hotel. A sua construcção elegante, o espaçoso das salas e dos quartos, a luz e o ar que a circumdam por toda a parte, o largo pateo da entrada, pateo onde podem estar três a quatro carruagens, são outras tantas condições que recommendam o edifício.

O hotel do Chiado não é menos sumptuoso, nem menos elegante.

O Restaurant á la Carte é uma casa mais modesta, mas que não offerce um menor numero de commodidades aos seus habitues. Esta casa admiravelmente administrada e servida, está aberta durante toda a noite e offerece portanto ao tresnoitado a qualquer hora o conforto de um caldo, de uma costelleta, ou de um filete de vitella.

Podia-se ainda dizer muito do Matta e dos seus hotéis*, fallar dos seus jantares de encommenda, dos pratos que tem inventado ,da consciência com que trata todos os assumptos de cosinha, mas o espaço aperta comnosco e forçoso é acabar.

Acabemos portanto, não sem notar que se o nome de José Ostise ligou para sempre ao fogo de vistas, o nome de João da Matta não se vincula menos ao fogo sagrado da cassarola.

Se para um a bicha de rabear foi o ideal, para o outro a eiró grelhada não deixa de ser o sonho dilecto. (1)


(1) Diário Illustrado, 23 de outubro de 1874

* ... também estabelecido com restaurantes no Cais do Sodré e na Rua do Oiteiro, e hoteis na Rua do Ouro, na loja e 1.° andar do actual edifício do Montepio Geral; no prédio da Avenida da Liberdade n.° 65, onde foi o Teatro do Infante e é hoje, no 1.° andar, a Ordem dos Médicos; na Rua Garrett 74, 1.°, palácio que foi do Marquês de Nisa, em que está presentemente o Turf Club; e no palácio do  Calhariz, hoje Administração Central da Caixa Geral de Depósitos [cf. revista Olisipo n° 79, 1957].

Artigos relacionados:
À Bulhão Pato

Mais informação:
A Illustração Portuguesa n° 37, 1886
Mário Costa, O palácio do Loreto, Olisipo n° 79, 1957


Leitura relacionada:
Mme. Aglae Adanson, A arte do cosinheiro e do copeiro, 1845
O cozinheiro completo, 1849

Arte de cosinha, João da Matta

João da Matta, nos tempos áureos, quando se cobria com o seu gorro, punha o avental em forma de coiraça, commandando elle próprio o fogo das baterias, era um cabo de guerra eminente! (1)

Arte de cosinha, João da Matta, 1876.
Portal Guará

Lembra-me perfeitamente um episodio da minha viagem a Alcácer. Vou transcrevel-o do prologo com que precedi a Arte de cosinha de João da Matta, o nosso Vatel no século XIX.

"A mais celebre e a mais apetitosa caldeirada que jamais comi foi-me servida sobre o rio Sado, no barco de mestre Casimiro, de Setúbal para Alcácer do Sal. Era o dia 26 de abril de 1875, esplendido de luz e de effluvios da primavera."

"O Sado ia desdobrando a meus olhos a sua formosa vastidão inteiramente desconhecida a quem desde pequeno se familiarisára com a suave estreiteza dos rios do norte. Acompanhavam-me dois amigos — um d'elles o primeiro, o maior da minha vida — que porfiavam em dissipar da minha alma os dois grandes pesadellos que a acobardavam: o receio de ter de passar dois dias em Alcácer do Sal, de que Lisboa conta horrores sezonaticos, e o de ter de visitar, por ordem do ministério do reino, escolas primarias, quer dizer, escolas a que anda jungido o mais irónico, o mais pungente, o mais falso adjectivo d'este mundo."

Canoas (Setubal), Silva Porto 1883.
wikiart

"Ao passo que falávamos, e nos interrompiamos de vez emquando para admirar a placidez voluptuosa com que algum pescador fumava dentro do seu barquinho emquanto a rede lhe ia ganhando a vida, mestre Casimiro cozinhava á popa, sobre um taboleiro de areia, a nossa caldeirada de linguados, salmonetes e rodovalhos. "

Elle havia-se arremangado, e banhado primorosamente no Sado os seus braços musculosos e trigueiros. Deitara na caldeira o azeite, o sal, a pimenta, a salsa picada. Depois lavara escrupulosamente no rio os peixes, e, mal enxutos, os deitara á caldeira, que lançava sobre nós, sentados á proa, uma columna de fumo impregnada do agreste mas agradável aroma do cozinhado.

Canoa abicando à praia, João Vaz, 1886.
Obra de João Vaz, no Facebook

"Pouco tempo corrido, abríamos as nossas cestas de lunch, e mestre Casimiro servia a caldeirada, emquanto o nosso barco ia rasgando listrões de espuma, levado rapidamente pela grande vela enfunada." (2)


(1) Bulhão Pato, Memórias I, 1894
(2) Alberto Pimentel, A estremadura portuguesa, 1908

Artigos relacionados:
À Bulhão Pato

Leitura relacionada:
Mme. Aglae Adanson, A arte do cosinheiro e do copeiro, 1845
O cozinheiro completo, 1849
Paulo Plantier, O
Cozinheiro dos Cozinheiro
, Lisboa, P. Plantier, 1905