quarta-feira, 13 de maio de 2020

Fado VI (recolha em História do Fado)

Os lisboetas de 1792 — principalmente a caixeirada de mercadores e capellistas — acompanhados de rascòas, batiam de sege para os festins bem pagodeados na casa de pasto de Bellas e para as bambochatas nos retiros de Sete Rios e das Larangeiras, onde se batoteava forte, principalmente com os "ofliciaes de gaveta" conforme os arrieiros alcunhavam os caixeiros que sizavam os patrões.

O fado, José Malhoa, 1910.
Wikipédia

Mas a guitarra não tinha logar n'essas pandegas descabelladas. 

Os lisboetas de 1807 continuaram a tradição das patuscadas em Bellas; e os de 1820 limitavam as suas diversões campestres ás batidas de tipóia para esta localidade — que frequentavam em com panhia das michelas de jozésinho de baetão verde, vestido de chita riscada e leuço branco na cabeça e ás burricadas na Oulra-Banda ou para Loures e Lumiar, onde iam vêr a quinta do marquez de Angeja, (hoje propiiedade dos duques de Palmella). 

A guitarra, porém, continuava a brilhar pela ausência. Nas frescatas e nas hortas dos arredores da Lisboa de 1833, guilarreavam-se modinhas [...]

Repetimos que, entre o fadista de 1848, o de 1860 e o de hoje. ha apenas differenças superficiaes, porque a sua fadislite aguda, o seu nervosismo feroz, têem resistido obstinadamente ás investidas tenazes da civilisação. E se o falante de 1848 cantava todo ancho:

O fadista que é fadista,
A geito o ferro manobra,
Mettendo mào aos arames
Dá facada como cobra,

o da actualidade ainda nos vem dizer com uma insondável expressão de guapice: 

Tenho sina de morrer
Na ponta d'uma navalha,
Toda a vida ouvi dizer:
— Morra o homem na batalha!

...

Entre as quadras attribuidas ao estro da Severa, havia as seguintes: 

A Chicória do Sarmento, 
Que bate o fado tão bem, 
Quando "toureia" o Sedvem, 
Chora de contentamento.

Ó D. José cavalleiro, 
Toma sentido na bolla! 
Pode fazer te em patola 
Qualquer fino boi matreiro! 

P'ra mim, o supiemo gozo 
É bater o fado liró, 
E vêr combater c'um boi só 
O conde do Vimioso.

...

N'este manuscripto lia uma decima anonyma dirigida a versas personalidades da epocha.

Voluntária ao Voluntário 
A Ratinha se apegou, 
Dircea aos esses tornou 
Do seu antigo fadario.
A Sal ma ao Secretario 
Deixa pelo Picador, 
D. Izabel, seu amor,
Muda do Papinha ao Papa,
D. Ritta os olhos tapa, 
Villanova faz furor.

...

O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
Le Portugais, Georges Braque, 1911.
Wikipédia; WikiArt
A guitarra, dizem os methodos de ensino, admitte cinco afinações: a afinação natural, a afinação natural com quarta (muito empregada para acompanhamentos), a afinação do fado, a afinação transportada (afinação mais baixa meio tom) e a afinação do violão. 

Mas as afinações que propriamente lhe competem são a natural e a do fado, sendo preferivel a ultima. Os tocadores antigos, os tocadores do lidimo fado, executavam-n'o em ré menor. E, circumstancia a notar, antigamente o cantador não se acompanhava a si mesmo, mas fazia se sempre acompanhar de um guitarrista. 

Os dedos ágeis do tocador corriam rapidamente sobre as cardas da guitarra e davam vôo ao pensamento harmonioso dos auctores dos fados, emquanto as rimas do cantador batiam azas. Hoje, quasi sempre o cantador se acompanha a si proprio.

A voz para cantar o fado é uma voz inclassificável, sui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao jugo lyrannico dos methodos de canto, uma voz que não se subordina aos dietames cathedraticos dos professores do Conservatório. 

E ahi está o motivo porque o Tamagno ou a Palli poderiam fazer fiasco cantando o fado ao pé do Serrano ou da Albertina. E eis ahi a razão por que um interprete de uma partitura deliquescente de Puccini ou de uma partitura descriptiva de Wagner pregaria um estenderete raso, se quizesse antar o fado da Severa ou o fado do João Black.

As primeiras trovas do fado, devidas á mechanina espiritual do povo, eram em quadras; depois usaram-se em quadras glosadas e em decimas; e ultimamente, com o fado modernista, empregam se de novo as quadras e também as quintilhas. Ofado principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, impro- visados à la va comme je te polisse, de que damos as amostras seguintes:

Ulysses era brejeiro,
Era o pae da brejeirada 
Era um bom sapateiro, 
Trabalhava n'uma escada. 

Encontrei Frei João
N'uma manhã de geada,
Com um instrumento na mão, 
Vinha a ser uma guitarra. 

O coelho é manhoso,
Dorme c'os olhos abertos,
Eu durmo c'os meus fechados, 
Porque tenho amores certos.

Na cabana do Zé do Sacho 
Ha uma cruz de madeira,
E n'ella um Christo pregado, 
Feito de pau de gingeira.

Muitos me chamam Antonio, 
E eu Antonio não sou,
O meu nome não é este,
Foi alguém que m'o trocou.

...

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
WikiArt; Wikipédia
O fado mais antigo é o fado do marinheiro. Segue-se-lhe o fado corrido, que parece ter sido o primeiro modelado por aquelle, e que se cifra na execução do acompanhamento, sem variações. 

Quando o fado não é tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bordam sobre elle os arabescos da sua phantasia musical, arrancam ao instrumento variações que percorrem toda a gamma chromatira dos extases amorosos, das idealidades scismadoras, dos affectos jubilatorios. 

A primeira mulher que tocou o fado corrido na guitarra foi a Manasinha, catraia da Madragòa em 1850. Foi ella que o ensinou ao cantador Paixão, o primeiro também que tocou o fado corrido na guitarra. 

Ao fado corrido segue-se o fado da Cotovia, cuja lettra desconhecemos. Depois, vem o primeiro fado de Pedrouços, original de A Branco, composto em 1849, e o fado choradinho, anterior a 1850, que serviu de modelo a outros fados. Este fado canta-se com os versos seguintes: 

Quem tiver filhas no mundo 
Não fale das desgraçadas. 
Porque as filhas da desgraça 
Também nasceram honradas. 

Não sei que quer a desgraça 
Que atraz de mim corre tanto; 
Hei de parar e mostrar-lhe 
Que de vêl-a não me espanto.

Fui encontrar a desgraça 
Onde os mais acham prazer; 
Amor, que dá vida a tantos, 
Só a mim me faz morrer. 

Das filhas da desventura 
Devemos ter compaixão, 
São mulheres como as mais, 
Filhas de Eva e de Adão. 

Eu quero bem á desgraça, 
Que sempre me acompanhou, 
Mão pcsso amar a ventura, 
Que irem cedo me deixou. 

Eu fui a mais desgraçada 
Das filhas da minha mãe, 
Todas tem a quem se cheguem,' 
Só eu não tenho ninguém. 

Debaixo do frio chão, 
Onde o sol não tem entrada, 
Abra se uma sepultura, 
Finde o fado a desgraçada. 

E Deus que tudo perdoa, 
E a VIrgem Nossa Senhora, 
Hão de ouvir a alma que implora 
Salvação á peccadora.

...

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
WikiArt
Depois d'esles fados, apparece o fado da Severa, que remonta aos meiados do século xix, porque foi com posto em tempo da mulher que llhe deu o titulo, e que, como vimos, morreu anleriormenle a 1850. 

Attribuem a paternidade d'este fado ao Sousa do Casarão. Os collectors do Cancioneiro de musicas populares consideram-n'o como o lypo primordial dos fados populares lamentosos. 

A versão coimbrã do fado da Severa, recolhida e publicada pelo sr. Theophilo Braga a paginas 140 do seu Cancioneiro Popular, é como se segue:

Chorae, fadistas, chorae,
Que uma fadista morreu;
Hoje mesmo faz um anno,
Que a Severa falleceu.

O Conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
A tua Severa morreu.

Corre á sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
"Adeos, oh minha Severa,
Bôa sorte Deos te dê!

Lá n’esse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos Anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.

Até o proprio Sam Pedro
Á porta do céo sentado,
Ao ver entrar a Severa,
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um signal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O fado perdeu seu rumo.

Morreu, já faz hoje um anno
Das fadistas a rainha,
Com ella o fado perdeu
O gosto que o fado tinha.

Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou.

Mas o Cancioneiro de musicas populares insere este:

Quando lhe foram dizer: 
Maria Severa morreu! 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que a Severa já morreu, 
Fadista como ella 
Nunca o fado couheceu! 

Conhecemos mais uma quadra com variantes, publicada pelo sr. Visconde de Castilho na Lisboa Antiga:

Ponde no braço da banza 
Um laço de negro fumo,
E este signal diga a todos: 
Que o fado perdeu o rumo!

A Severa — cuja memoria fulge atravez dos annos com o tremor luminoso de um astro — excitou a veia poética popular, ha ainda mais as dez quadras seguintes, abusivas á Severa, sendo as duas primeiras publicadas pelo sr. visconde de Castilho na Lisboa Antiga e as oito ultimas recolhidas da tradiç-ão oral:

Assim como as flores vivem 
Minha Severa viveu,
Assim eoino as flores morrem 
Minha Severa morreu.

Levantae lhe um mausoléu 
Co'um negro cypreste ao lado, 
E o epitaphio que diga: 
"Aqui jaz quem soube o fado" 

Quando a Severa falleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lagrimas:
Morreu o mimo do fado!

Severa, linda Severa,
Foste a princeza do fado,
Foi o que Vimioso ouviu 
'ma manhã quando sergueu. 

Eu vou cantar a Severa 
N'esta bella occasião;
O seu fado é d'encantar 
Vae direito ao coração. 

O fado da Severa tem outro que o completa, o fado do Vimioso. Este pertence, evidentemente, a época posterior, mas inserimil-o aqui por ser o complemento d'aquelle. É formado de dezoito quadras: 

Quem lhe vê a fãce morena, 
Quem vê seus olhos tyrannos, 
Nada vê que mais captive, 
Ainda que viva mil annos. (1)


(1) Historia do fado

Leitura relacionada:
Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga

domingo, 10 de maio de 2020

Fado V (recolha em História da poesia e Cancioneiro popular)

Em Portugal é outra a causa; pobre nacionalidade morta, é a túnica sobre que pairam os dados. Triste presentimento, tristíssimo, tanto mais, quanto se apossa de uma alma ainda crente no meio da corrupção deste pequeno Baixo Império. Colligir a poesia popular portugueza agora, no momento do transe, é como a garrafa ao mar que se atirava nos naufrágios: é para que se saiba que existiu este povo que também soffreu e cantou [...]  (1)

Fado, como a xacara moderna, em que a acção senão tira da vida heróica, é uma narração detalhada e plangente dos successos vulgares, que entretecem o existir das classes mais baixas da sociedade. 

Ha o "fado do marujo", "da Severa", "do Soldado", e o "do Degradado" que se despede das moças da vida. 

Tem o fado a continuidade do descante, seguindo fielmente uma longa narrativa, entremeada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade com uma forma dolorosa, observação profunda na descripção dos feitos, graça despretenciosa, com uma monotonia de metro e de canto, que infunde pesar, principalmente na mudez ou no ruido da noite, quando os sons sáeim confusos do fundo das espeluncas, ou misturados com os risos dos lupanares. rythmo do canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros; a dança e a poesia auxiliam-se no que se chama bater o fado. 

Dos caracteres que temos apontado, principalmente do narrativo, é que vem o nome a esta forma, de Fado ou "facto"; a canção de gesta da edade media, acompanhando as transformações sociaes tornou-se o Fado moderno. Da côr sensível de fatallidade, que ha na poesia do povo, pareceria talvez provir o nome á forma que mais se inspira d'esse sentimento. É uma analogia falsa. 

Chama-se "fadista" ao vagabundo nocturno que anda modulando essas cantigas; nome que vem do velho francez "Fatiste", poeta, que Edelestand du Méril pretende que tivesse vindo do islandez "fata", vestir, em vez do grego phatisein, que suppõe tradição erudita de mais para se tornar popular. (2)

Caricatura do typo fadista no cortejo
com que os estudantes da Escola Polytechnica de Lisboa
celebraram a publicação do "Decreto do cuspo".
cf. Alberto Pimentel, A triste canção do Sul, 1904.
Fadistas

Tudo quanto o fado inspira
E o que só me entretem; 

Pois quem do fado se tira 
Não sabe o que é viver bem. 

Eu heide morrer no fado, 
Seguir os destinos seus; 
O chinfrim será meu brado, 
A banza será meu Deos. 

Se o padre santo soubesse 
O gosto que o fado tem, 
Viera de Roma aqui 
Bater o fado também. 

Fado da Severa 
(Versão de Coimbra) 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que uma fadista morreu; 
Hoje mesmo faz um anno, 
Que a Severa falleceu.

O Conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
A tua Severa morreu.

Corre á sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
"Adeos, oh minha Severa,
Bôa sorte Deos te dê!

Lá n’esse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos Anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.

Até o proprio Sam Pedro
Á porta do céo sentado,
Ao ver entrar a Severa,
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um signal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O fado perdeu seu rumo."

Morreu, já faz hoje um anno
Das fadistas a rainha,
Com ella o fado perdeu
O gosto que o fado tinha.

Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou.

Fado do marujo
(Versão de Coimbra)

Triste vida a do marujo,
Qual d’ellas a mais cansada;
Por uma triste soldada
Passa tormentos! [Bis]

Andar á chuva e aos ventos
Quer de verão, quer de inverno;
Parecem o proprio inferno
As tempestades!

As nossas necessidades
Obrigam a navegar,
E a passar tempos no mar,
E aguaceiros.

Passam-se dias inteiros
Sem se poder cosinhar;
Nem tão pouco mal assar
Nossa comida!

Arrenego de tal vida,
Que nos dá tanta canseira!
Sem a nossa bebedeira
Nós não passamos!

Quando socegado estamos
No rancho a descansar,
Então é que ouço gritar:
Oh leva arriba!

O mestre logo se estriba,
Bradando d esta maneira :
"Moços, ferra a cevadeira
E o joanete."

Também dá o seu falsete
Não podendo mais gritar:
"Cada qual ao seu logar
Até ver isto!"

Mais me valera ser visto
Á porta de um botequim,
Do que vêr agora o tim
Da minha vida!

Quando parece comprida
A noite p’ra descançar,
Então é que ouço tocar
Certa matraca.

O somno logo se atraca,
Meu coração logo treme,
Em cuidar que heide ir ao leme
Estar duas horas.

Lembram-me certas senhoras
Com quem eu tratei em terra.
Que me estão fazendo guerra
Ao meu dinheiro.

Foi um velho marinheiro,
Que inventou esta cantiga;
Embarcado toda a vida
Sem ter dinheiro. (3)


(1) Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga
(2) História da poesia popular portuguesa por Theophilo Braga
(3) Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga

sábado, 9 de maio de 2020

Fado IV (recolha em Folhas cahidas, Almeida Garrett)

Garrett, que parecia de animo desanuviado, deu largas á fecunda palavra. 

Retrato de Almeida Garrett (detalhe), Manuel Araujo Porto-Alegre, 1833.
Instituto Camões

Ao café appareceu José Maria Grande, que vinha convidar-nos a passar a tarde no Jardim Botânico, onde tinha ido ser sua hospeda uma familia da nossa primeira sociedade. 

Quando, á noite, nos reunimos na casa do Jardim Botânico, entre outras pessoas, éramos — as que havíamos jantado na Ajuda, e a mais o conde de Belmonte, e D. João e D. Gastão da Gamara. Restam vivos Carvalhal, D. Gastão e eu. 

Animando a sala havia duas senhoras; uma casada, outra solteira. Ambas também já não pertencem ao numero dos vivos! A solteira era alta, delgada ; a cinta estreita; o pé andaluz; as mãos finas; a cabeça pequena, o cabello loiro, com reflexos de fogo, e ás ondas.

Caricatura de Garrett defronte da viscondessa da Luz, A Matraca, 1848.
Por largo campo, indómita e fremente
Corre a revolução,
Da vossa Luz a rápida torrente
Me alegra o coração
Cartas de amor à viscondessa da Luz

A bocca, pequena e vermelha, sorrindo, juvenil e alegre, deixava entrever duas renques de pérolas. Os olhos azues, e via-se n'elles o azul crystalino e ethereo da sua alma angélica!

Amava cegamente, e tinha deante dos olhos aquelle, a quem, d'alli a quatro annos contados, havia de entregar o seu apaixonado coração de amante e de esposa.

Esta senhora chamava-se: Mathilde Montufar [Rosa Montufar]. Oh! que dias de luz ha no mundo! Luz intensa, scintillante, deslumbradora, que, na tre- menda e immutavel antithese da vida, tem de ser contrastada pelas sombras caliginosas e profundas!

Rosa de Montufar, Viscondessa da Luz.
Cartas de amor à viscondessa da Luz

A meio da noite pediram, com viva instancia, versos. Recitei o Adeus das Folhas caídas, então inéditas. A disposição dos espiritos, a novidade e extraordinária belleza d'aquelles versos, a presença do auctor, tudo concorreu, para que a sensação produzida fosse grande. Garrett sabia dominar-se; porém a muito custo conteve a commoção. 

Piquenique na Quinta do Palheiro Ferreiro, Tomás da Anunciação, 1865.
D. António Leandro da Câmara Carvalhal Esmeraldo Atouguia Bettencourt de Sá Machado, 2.º Conde de Carvalhal, grande proprietário, nascido em 1834, casado em 1854 com D. Matilde Montufar Infante, filha dos Marqueses de Selva Alegre em Espanha. Desse casamento nasceram duas filhas, D. Maria da Câmara, Condessa de Resende e D. Teresa da Câmara, Condessa de Ribeiro Real
[Bulhão Pato confundo os nomes de Rosa e Matilde].
Imagem: Museu Quinta das Cruzes

N'este momento, mais do que nunca, a imagem serena e resignada, que se invocava n'aquelles versos, devia pungil-o no centro do coração, e na fibra do remorso!

Oh! vae-te, vae, longe, embora! 
Que te lembre sempre e agora 
Que não te amei nunca... 
Ai! não; E que pude, a sangue frio, 
Covarde, infame, villão, 
Gosar-te — mentir sem brio. 
Sem alma, sem dó, sem pejo, 
Commettendo em cada beijo 
Um crime... Ai! triste, não chores, 
Nâo chores, anjo do ceu, 
Que o deshonrado sou eu.
[v. o texto integral]

No resto d'essa noite, nos bellos olhos, e no rosto do poeta, serenavam, a custo, as ondas de uma tempestade!


FOLHAS CAHIDAS

Dos editores

Cumpre se a promessa feita no primeiro volume desta collecção reunindo aqui, em segunda edição muito augmentada e correcta, as Folhas cahidas. 

Apezar de estarem no prelo desde 1851, o auctor tinha descuidado na primeira edição o seu habitual escrúpulo de rever e corrigir; e não teve paciência para as augmentar com muitas peças que agora vão, e que então não estavam postas a limpo. Trabalhos mais sérios o distrahiram durante os dois annos que levaram a imprimir tam poucas paginas. 

Julgou-se agora melhor dividir em dois livros o que, assim augmentado, ficaria demasiado para um só. 

Maio — 1853.

Advertência (do auctor na primeira edição)

Antes que venha o inverno e disperse ao vento essas folhas de poesia que por ahi cahiram, vamos escolher uma ou outra que valha a pena conservar, ainda que não seja senão para memoria. 

A outros versos chamei eu já as ultimas recordações de minha vida poetica. Enganei o publico, mas de boa fé, porque me enganei primeiro a mim. Protestos de poetas que sempre estão a dizer adeus ao mundo, e morrera abraçados com o louro — ás vezes imaginário, porque ninguém os coroa. 

Eu pouco mais tinha de vinte annos quando publiquei certo poema, e jurei que eram os últimos versos que fazia. Que juramentos! 

Se dos meus se rirem, têem razão; mas saibam que eu também primeiro me ri d'elles. Poeta na primavera, no estio e no outomno da vida, heide sel-o no inverno se lá chegar, e heide sei o em ludo. Mas dantes cuidava que não, e n'isso ia o erro. 

Os cantos que formam esta pequena collecção pertencem todos a uma epocha de vida intima e recolhida que nada tem com as minhas outras colleções.

Essas mais ou menos mostram o poeta que canta deante do publico. Das Folhas Cahidas ninguém tal dirá, ou bem pouco entende de stylos e modos de cantar.

Não sei se são bons ou maus estes versos; sei que gosto mais d'elles do que de nenhuns outros que fizesse. Porque? É impossivel dizel o, mas é verdade. E como nada são por elle nem para elle, é provável que o publico sinta bem diversamente do auctor. Que importa?

Apezar de sempre se dizer e escrever ha cem mil annos o contrario, parece me que o melhor e mais recto juiz que pôde ter um escriptor, é elle próprio, quando o não cega o amor próprio. Eu sei que tenho os olhos abertos, ao menos agora.

Custa-lhe a uma pessoa, como custava ao Tasso, e ainda sem ser Tasso, a queimar os seus versos, que são seus filhos; mas o sentimento paterno não impede de vêr os defeitos das crianças.

Emfim, eu não queimo estes consagrei os "Ignolo deo". E o deus que os inspirou que os anniquille se quizer: não me julgo com direito de o fazer eu. 

Ainda assim, no "Ignolo deo" não imaginem alguma divindade meia-velada com cendal transparente, que o devoto está morrendo que lhe caia para que todos a vejam bem clara. O meu deus desconhecido é realmente aquelle mysterioso, occulto e não definido sentimento d'alma que a leva ás aspirações de uma felicidade ideal, o sonho de oiro do poeta. 

Imaginação que porventura se não realisa nunca. E d'ahi quem sabe? A culpa é talvez da palavra, que é abstracta de mais. Saúde, riqueza, miséria, pobreza, e ainda coisas mais materiaes, como o frio e o calor, não são se não estados comparativos, approximativos. Ao infinito não se chega, porque deixava de o ser em se chegando a elle. 

Logo o poeta é louco, porque aspira sempre ao impossivei. Não sei. Essa é uma disputação mais longa. 

Mas sei que as presentes "Folhas cahidas" representam o estado d'alma do poeta nas variadas, incertas e vacillantes oscillaçóes do espirito que, tendendo ao seu fim único, a posse do "ideal", ora pensa tel o alcançado, ora estar a ponto de chegar a elle, ora ri amargamente porque reconhece o seu engano ora se desespera de raiva impotente por sua credulidade van. 

Deixae o passar, gente do mundo, devotos do poder, da riqueza, do mando, ou da gloria. Elle não entende bem d'isso, e vós não entendeis nada d'elle. 

Deixae o passar, porque elle vae onde vós não ides; vae, ainda que zombeis d'elle, que o calumnieis, que o assassineis. Vae. porque é espirito, e vós sois matéria. 

E vós morrereis, elle não. Ou só morrerá d'elle aquillo em que se pareceu e se uniu comvosco. E essa falta que é a mesma de Adão, também será punida com a morte. 

Mas não triumphais, porque a morte não passa do corpo, que é tudo em vós, e nada ou quasi nada no poeta.

Janeiro — 1853. (1)


Garrett preguiçava, mas aquellas horas de preguiça eram como as de Byron. De quando em quando do "dolce far niente", que os italianos entendem por fazer aquillo de que se gosta, saia uma flor delicada e perfumadíssima, que iria enlaçar-se na graciosa grinalda das "Folhas Caídas". Garrett, n'essa época, estava na força da vida, tinha quarenta e oito annos, mas havia muito que lhe chamavam velho.



(1) Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume I, 1904

Referências externas:
Obras de Almeida Garrett na Biblioteca Nacional de Portugal  
Obras de Almeida Garrett em archive.org  
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. I (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)  
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. II (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)

Leitura relacionada:
Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume I (pesquisa: fado)
Almeida Garrett e a fundação do Romantismo português
Intertextualidades entre a Balada romântica portuguesa e o Fado oitocentista
O Fado e a questão da identidade

Artigos relacionados:
Almeida Garrett (notas biográficas)
Almeida Garrett por Bulhão Pato: no eremitério
Almeida Garrett por Bulhão Pato: na vida íntima
Almeida Garrett por Bulhão Pato: o jantar ao poeta...

Almeida Garrett por Bulhão Pato: as Folhas caídas
O partido setembrista, Lisboa 1836
Manoel da Silva Passos, Lisboa 1836
O retiro de um velho romântico
Almeida Garrett
Garretismo
Os pincéis do Neogarretismo prévio



Internet Archive (referências biográficas):
Domingos Manuel Fernandes, Biographia politico-litteraria..., 1873
Teophilo Braga, Historia do romantismo em Portugal... Garrett, Herculano, Castilho, 1880
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo I, 1881
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo II, 1884
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo III, 1884
Alberto Bessa, Almeida Garrett no Pantheon dos Jeronymos, 1902
Alfredo de Pratt, O divino poeta, 1903
Latino Coelho, Garrett e Castilho, estudos biográficos, 1917

Internet Archive:(bibliografia):
Catão [1821], 2.a ed. 1830
Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume I, 1904
Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume II, 1904
...

Biblioteca Nacional de Portugal:
Bicentenário de Almeida Garrett
Roteiro bio-bibliográfico
Obras em formato digital
A Enciclopédia de Garrett Enciclopedista
Modernidade e Romantismo em Almeida Garrett
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A Question of Timing: Madalena's role as 'uma mulher à beira duma crise de nervos'
Catão em Plymouth
O Camões garrettiano
Um Auto de Gil Vicente and the Tradition of Comedy
Iconografia

Biblioteca Nacional de Portugal (bibliografia):
Hino Patriótico (poema), Porto 1820, folheto impresso [Recuper. por Teófilo Braga, in Garrett e os Dramas Românticos, Porto 1905]
Proclamações Académicos, Coimbra 1820, folhetos mss. [Reprod. in O Patriota, nº 67 (15 Dez.), Coimbra 1820]
Ao corpo académico (poema), in Colecção de Poesias Recitadas na Sala dos Actos Grandes da Universidade [...], Coimbra 1821 [Recuper. por Martins de Carvalho, in O Conimbricense, Ano XXVII, nº 2823 (14 Ag.), Coimbra 1874]
O Dia Vinte e Quatro de Agosto (ensaio político), Lisboa Ano I (1821)
O Retrato de Vénus (poema), Coimbra Ano I (1821) [Incl.: Ensaio sobre a História da Pintura]
Catão. Tragédia, Lisboa Ano II (1822) [Incl.: O Corcunda por Amor, farsa, co-autoria de Paulo Midosi]
Aos Mortos no Campo da Honra de Madrid. Epicédio, folheto [reprod. do Jornal da Sociedade Literária Patriótica, 2º trim., nº 18 (13 Set.), Lisboa 1822, vol. II, pp. 420-423]
Oração Fúnebre de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1822, opúsculo [Colig. in Discursos e Poesias Fúnebres [...], Celebradas para Prantear a Dor e Orfandade dos Portugueses, na Morte de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1823]
Camões. Poema, Paris 1825
Dona Branca, ou A Conquista do Algarve (poema), Paris 1826
Da Europa e da América e de Sua Mútua Influência na Causa da Civilização e da Liberdade (ensaio político), in O Popular, jornal político, literário e comercial, vol. IV, nº XIX (Mai.), Londres 1826, pp. 25-81
Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa, in Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos, vol. I, Paris 1826 [Incl.: introdução A Quem Ler]
Carta de Guia para Eleitores, em Que se Trata da Opinião Pública, das Qualidades para Deputado e do Modo de as Conhecer (ensaio político), Lisboa 1826, opúsculo Adozinda. Romance (poema), Londres 1828 [Incl.: Bernal Francês]
Lírica de João Mínimo, Londres 1829
Lealdade, ou a Vitória da Terceira (canção), Londres 1829, folheto Da Educação. Livro Primeiro. Educação Doméstica ou Paternal, Londres 1829
Portugal na Balança da Europa. Do Que Tem Sido e do Que Ora Lhe Convém Ser na Nova Ordem de Coisas do Mundo Civilizado (ensaio político), Londres 1830
Elogio Fúnebre de Carlos Infante de Lacerda, Barão de Sabroso, Londres 1830, folheto Carta de M. Cévola, ao futuro editor do primeiro jornal liberal que em português se publicar (panfleto político), Londres 1830 [Pseud.: Múcio Cévola, 2ª ed. transcrita in O Pelourinho, nº V, Angra [1831?, com o título Carta de M. Cévola, oferecida à contemplação da Rainha, a senhora Dona Maria segunnda]
Relatório dos decretos nº 22, 23 e 24 [reorganização da fazenda, administração pública e justiça], Lisboa 1832, folheto [Reprod. in Colecção de Decretos e Regulamentos [...], Lisboa 1836]
Manifesto das Cortes Constituintes à Nação, Lisboa 1837, folheto [Reprod. in Diário do Governo, nº199 (24 de Ag.), Lisboa 1837]
Da Formação da Segunda Câmara das Cortes. Discursos Pronunciados nas Sessões de 9 e 12 de Outubro, Lisboa 1837
Necrologia [do conselheiro Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato], in O Constitucional, nº 272 (13 Dez.), Lisboa 1838 [Relatório ao] Projecto de lei sobre a propriedade literária e artística, in Diário da Câmara dos Deputados, Vol. II, nº 35 (18 Mai.), Lisboa 1839
Discurso do Sr. Deputado pela Terceira, J. B. de Almeida Garrett, na Discussão da Resposta ao Discurso da Coroa, Lisboa 1840 [Discurso dito do Porto Pireu, em resposta a José Estevão] Mérope, tragédia.
Um Auto de Gil Vicente, drama, Lisboa 1841.
Discurso do Sr. Deputado por Lisboa J. B. de Almeida Garrett na Discussão da Lei da Décima , Lisboa 1841, folheto
O Alfageme de Santarém, ou a Espada do Condestável, Lisboa 1842
Elogio Histórico do Sócio Barão da Ribeira de Saborosa, in Memórias do Conservatório Real de Lisboa, Tomo II (8), Lisboa 1843
Memória Histórica do Conselheiro A. M. L. Vieira de Castro, biografia, Lisboa 1843, folheto [Anón., sobre o ministro setembrista António Manuel Lopes Vieira de Castro]
Romanceiro e Cancioneiro Geral, Lisboa 1843 [Incl.: Adozinda (2ª ed.) e outros «romances reconstruídos»]
Miragaia, Lisboa 1844, folheto impresso [de Jornal das Belas Artes] Frei Luís de Sousa, drama, Lisboa 1844 [Incl.: Memória. Ao Conservatório Real, lida na representação do drama no teatro da Quinta do Pinheiro em 4 de Julho 1843]
O conselheiro J. B. de Almeida Garrett [Autobiografia], in Universo Pitoresco, nº 19-21, Lisboa 1844 [Carta sobre a origem da língua portuguesa], ensaio literário, in Opúsculo Acerca da Origem da Língua Portuguesa [...] por dois sócios do Conservatório Real de Lisboa, Lisboa 1844
O Arco de Santana. Crónica portuense, romance, vol. I, Lisboa 1845 [Anón.]
Os Exilados, À Senhora Rossi Caccia, poesia, Lisboa 1845, folheto [Reprod. in Revolução de Setembro, nº 1197 (31 Mar.), Lisboa 1845, p. 2, anónimo e título A Madame Rossi Caccia, cantando no baile de subscrição a favor dos emigrados]
Memória Histórica do Conde de Avilez, biografia, in Revolução de Setembro, nº 1210 (15 Abr.), Lisboa 1845
Flores Sem Fruto (poesia), Lisboa 1845
Da Poesia Popular em Portugal, ensaio literário, in Revista Universal Lisbonense, Tomo V, nº 37 (5 Mar.) – 41 (2 Abr.), Lisboa 1846; [cont. sob título:]
Da Antiga Poesia Portuguesa, in id., Tomo VI, nº 9 (23 Jul.), 13 (20 Ag.), Lisboa 1846
Viagens na Minha Terra, romance, 2 vols., Lisboa 1846
Filipa de Vilhena, comédia, Lisboa 1846 [incl.: Tio Simplício, comédia, e Falar Verdade a Mentir, comédia]
Parecer da Comissão sobre a Unidade Literária, in Revista Universal Lisbonense, nº 16 (10 Set.), Lisboa 1846, vol. VI, sér. II, pp. 188-189 [dito Parecer sobre a Neutralidade Literária, da Associação Protectora da Imprensa Portuguesa, assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Visconde de Juromenha, A. Herculano e João Baptista de A. Garrett]
Sermão pregado na dedicação da capela de Nª Srª da Bonança, folheto, Lisboa 1847 [raro, reproduzido com o título Dedicação da Capela dos Srs. Marqueses de Viana (...) in Escritos Diversos, Lisboa 1899,
Obras Completas, vol. XXIV, pp. 281-284, redac.: Lisboa 1846]
Memória Histórica da Excelentíssima Duquesa de Palmela, Lisboa 1848 [folheto]
Memória Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, Lisboa 1849 [separ., reprod. de A Época. Jornal de indústria, ciências, literatura, e belas-artes, nº 52, tom. II, pp. 387-394]
O Arco de Santana. Crónica Portuense, romance, vol. II, Lisboa 1850
Protesto Contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa, abaixo-assinado, folheto, Lisboa 1850 [Subscrito, à cabeça, por Herculano e mais cinquenta personalidades, contra o projecto de «lei das rolhas» apresentado pelo governo]
Necrologia de D.ª Maria Teresa Midosi, in Diário do Governo, nº 221 (19 Set.), Lisboa 1950
Romanceiro, vols. II e III, Lisboa 1851
Cópia de uma Carta Dirigida ao Sr. Encarregado de Negócios da França em Lisboa, Lisboa (19 Agosto) 1852 [litogr., sobre o tratado de comércio e navegação com o governo francês, que assinou como ministro dos negócios estrangeiros]
O Camões do Rossio, comédia, Lisboa 1852 [co-autoria de Inácio Feijó]
Folhas Caídas, poesia, Lisboa 1853
Fábulas – Folhas Caídas, poesia, 2ª ed., Lisboa 1853

Fado III (recolha em Flores sem fructo, Almeida Garrett)

O poeta havia levado mais um revez, dos muitos da sua combatida e aventurosa existência.

Retrato de Almeida Garrett (detalhe), Manuel Araujo Porto-Alegre, 1833.
Instituto Camões

Estava n'um momento análogo áquelle, que lhe inspirara — n'umas paginas de prosa, que vêm nas "Flores sem fructo" — esta apostrophe á solidão:

"Solidão, eu te saúdo! Silencio dos bosques, salve!
A ti venho, ó natureza: abre-me o teu seio.
Venho depor n'elle o peso aborrecido da existência; venho despir as fadigas da vida."


Suppunha, illudido pela dor, que poderia prescindir do mundo, elle, o mais mundano de todos os artistas; elle, para quem os fastígios do poder, as pompas do luxo, os máximos requintes do gosto; as pérolas, as saphiras, as esmeraldas e os diamantes, rutilando no seio, nas mãos, nos cabellos negros retintos, ou loiros acendrados, da mulher apetecida — ou adorada — se tornavam impreteriveis!

Mas, no momento, a sua dor era intensa e sincera; por isso, confirmando o preceito de Horácio, ao descrevel-a, a todos nos commovia. Grandes foram as provações, porque passou aquelle desmesurado espirito! 

Para quem o lidou de perto, sobretudo nos últimos tempos, pelos seus versos — "Flores sem fructo", e "Folhas caídas" — é fácil determinar quaes foram as crises, os accessos dolorosos, no drama d'aquelle coração, que teve mais de um affecto, que facilmente se deixava seduzir, mas que tão profunda, tão arrebatadamente se apaixonava! 

Depois de grandes desgostos domésticos, que as dicacidades brutaes e malévolas de ânimos corrompidos vinham ainda envenenar, o poeta parecia succumbir aos revezes da má fortuna.


Uns versos das "Flores sem fructo" explicam o estado da alma do auctor do "Camões", n'esse periodo. Não é a dor acerba, é o desalento supremo; tédio, fastio moral, o mais requintado tormento, que pode cruciar o homem!

Quando uma luz imprevista, serena e penetrante, o veiu arrancar áquella apathia moral, o poeta disse: 

Eu caminhava só, e sem destino,
No deserto da vida;
N'alma apagada a luz, e o desatino
Na vista esmorecida:
E afastava de mim, que me impeciam
No caminhar adeante,
Os prazeres dos homens, que sorriam,
E a turba delirante
De seus empenhos vãos. — Aos que gemiam
Sorria eu de inveja...
Quem podéra gemer!... mas arredava
Esses também: não seja
Traição a sua dor! — Eu caminhava
Só, triste, só, sem luz e sem destino,
A vista esmorecida,
A alma gasta, apagada, e ao desatino.
No deserto da vida.

Quem não atravessou uma crise funesta não escreve assim. A vida do homem tem d'estes momentos psychologicos; mas é preciso ser um grande artista, para lhe acertar com a nota verdadeira, propriamente humana!

Mais adeante, appellando para o suicídio, o poeta exclama:

E sentei-me, cansado, n'um rochedo, 
Triste como eu, e só, 
No meio d'este valle de degredo, 
De lagrimas e dó. 
Caíu-me a fronte sobre as mãos pesada, 
E meditei commigo: 
— Nâo é melhor pôr fim a esta jornada, 
E poisar no jazigo?...

Do céo, morno e pesado, as nuvens rarefazem-se, e elle diz: 

Olhei... e vi o azul do firmamento 
Só, sem nenhum brilhar 
De estrellas, ou de lua...
Mas logo se inundava, n'um momento, 
De uma luz alva, doce e resplandente, 
Que me entrou toda n'alma!...

Esta luz, esta nova estrella do poeta, era de certo a singular creança de dezoito annos, cheia de talento, primorosamente educada, bella, e, sobretudo, fina, que se enamorara perdidamente do génio e da viuvez de coração de Almeida Garrett, cujo nome era saudado nos jornaes, applaudido no theatro, coroado no parlamento, e nas academias!

Elle emprestou-lhe a "Nova Heloísa" do apaixonado João Jacques [Rousseau, Jean-Jacques, Julie ou la Nouvelle Héloïse]. O livro levava, a lápis, umas notas intencionaes. 

Adelaide respondeu a ellas, e um dia, cega, arrebatada, perdida, pungido o coração que exhaurira, na anciã de amar, as derradeiras notas do prazer, deixou tudo, tudo... o enleio das suas phantasias virginaes, o ambicionado futuro de uma união santa, o mundo, e a fama e o seio materno, para refugiar-se, transportada, nos braços do genial poeta!

Quem lhe não havia de perdoar o seu erro, o seu crime — se crime foi — redimido por tamanho amor!

cf. Bulhão Pato, Memórias I, 1894


FLORES SEM FRUCTO

Em quanto fui poeta affrontei-me que m'o chamassem; hoje tenho pena e saudade de o não poder já ser. Era uma viciosa vergonha a que eu tinha, porque não ha melhores nem mais nobres almas que as dos poetas: agora o conheço bem, desde que o não sou, e que sinto as picadas das más paixões e dos acres sentimentos da baixeza humana avisarem-me que está commigo a edade da prosa; como ao que teve folgazan e solta mocidade o avisam os primeiros latejos da gotta de que lhe está a velhice a entrar em casa. 

Dieta, regularidade e moderação prolongam a juventude do corpo; mas quando a alma chegou a enrugar-se, não ha hygiene que a desfranza. A minha está velha; e a todos os achaques da velhice, junta essa fatal e matadora saudade do passado. Quanto dera eu por ver e sentir como via e sentia quando pensava pouco e sentia muito! Quem me dera ser o louco, o doido, o poeta que eu tinha vergonha de ser! E de que me serve a reflexão, a experiência, a razão como lhe chamam, senão é para ver de outro modo as illusóes da vida, para as ver do lado feio, torpe, baixo e vulgar, quando eu as via d'antes esmaltadas de todas as cores do íris, bellas de toda a poesia que estava na minha alma, grandes de todas as virtudes que eram no meu coração! 

Ora pois! não sou já poeta: podem-me fazer "almotacé do meu bairro", quando quizerem. Forte semsaborão ganhou a pátria! E custou: que levaram muito tempo e muito trabalho para me despoetizarem  foram precisos annos de rudes luctas, centos de desenganos, milhares de desapontamentos para me fazerem conhecer o mundo tal como elle é, os homens, como elles são. Cheguei emfim a isso, e deixei portanto de ser poeta. O meu horto de flores tam queridas e mimosas, que não davam fructo, mas alimentavam a vida com seus aromas de benéfica e nutriente exhalação, que eram como aquelloutras flores de que disse Camões: 

Contam certos auctores 
Que, junto da clara fonte 
Do Nilo os moradores 
Vivem do cheiro das flores 
Que nascem n'aquelle monte.

o meu horto vou plantal-o de luzerna e betarrabas. E arranquemos estas "flores sem fructo", não as veja algum utilitário que me condemne de relapso, a ir, de carocha e sambenito poético, arder n'algum auto da fé que por ahi celebrem em honra de Adam-Smith ou de João Baptista Say, ou dos outros grandes homens cuja sciencia é como a do Horatio de Shakespeare que não vê "mais coisa nenhuma entre o céu e a terra do que as que sonha a sua philosophia." 

Não as colhi pois, arranquei as, estas pobres flores que aqui enfeixo n'uma triste e última capella para deixar dependurada na minha cruz; e ahi murche e seque ao suão ardente do deserto em que fica, até que me venham enterrar ao pé della, aqui onde eu quero jazer junto das ultimas recordações poéticas da minha vida, dos últimos sonhos que sonhei acordado, e que valem mais do que todas as realidades que depois tenho visto.

E não cuides, amigo leitor, que eu quero dizer n'isto que não fiz senão versos atégora, que não farei senão prosas daqui em deante. Por meus peccados, fiz mais prosas que versos, e ajudei a gastar com ellas a mocidade da minha alma e a frescura do meu coração; baixei de sobejo ao mundo das realidades, quando tinha azas para me remontar ao ideal, e pairar-me pelas regiões onde viçam as eternas floras do génio. Fiz, quando não devia, fiz prosa em annos de versos. Quem sabe se a stulta vaidade que m'o fez fazer então, me não levará também para o diante a fazer versos em annos de prosa?

Não é minha tenção, mas não o juro; que isto de ser poeta é como ser embarcadiço; um dia aperta a vontade, comem os desejos por tal modo que se vae um homem por esses mares fora, e só no meio do temporal se lembra de que já não é para similhantes folias.

Isto porém que nasce espontâneo d'alma, que vem, como ejaculação involuntária de dentro, quando trasborda o coração de jubilo ou de pena ou de admiração; isto que é o falar do homem para Deus n'aquellas phrases incoherentes, inanalysaveis pelas grammaticas humanas, porque são reminiscências da lingua dos anjos que elle soube antes de nascer, isto que se entoa e se canta no coração, antes e muito mais bello do que o repita a lingua, d'esses versos não tornarei eu a fazer, porque não posso, porque era mister que Deus fizesse o milagre de me remoçar a alma: e não o fará.

São pois estas quasi absolutamente as últimas coisas lyricas que, por vontade e auctorisação minha, se publicarão dentre tantissimas que fiz e que, pela maior parte, tenho destruido. Não faltará quem diga talvez que melhor fora que o fizesse a todas. Mas não é essa a opinião nem a vontade das maiorias que consultei. E já se vê que, segundo a moda dos tempos, eu consultei as minhas maiorias, e não fiz caso das outras: ás quaes todavia — e não á moda do tempo — deixo o direito salvo para ralhar livremente e como quizerem.

Já se vê bem assim o porque ponho este titulo de "Flores sem fructo" á pequena collecção de poesias que aqui vae. Nem todas são de primavera estas flores; ha de várias estações: fructo é que nenhuma deu. Deixariam de ser flores poéticas se o dessem.

O nosso Miguel Leitão chamou á sua "Miscelanea", "Ensalada de várias hervas" — e esse príncipe allemão que é tanto moda, e que escreve com tam desgarrada elegância, pôs a uma das suas collecções de rhapsodias criticas o titulo italiano de "Tutti-frutti", que significa o mesmo quasi. E não cuidem que este príncipe que cito com ser príncipe prussiano também, é o aventureiro que aqui andou ha dous annos a rabiscar semsaborias a respeito da nossa terra, mettendo para o sacco toda quanta calumnia e mentira lhe deram os estrangeiros e estrangeirados que nos devoram e detestam, para as espalhar depois pela Europa, afim de que o mundo diga: "Muito favor lhe fazem os oppressores daquelle bruto e estúpido Portugal em o governarem a pontapés e lhe tirarem o último cruzado novo de que elle não sabe usar!"

Bemdita seja a nobre e generosa princeza que tratou o bandoleiro como elle merecia, e que não tolerou deante de si o calumniador de sua família e da nação que a adoptara! Assim fizessem os outros! Não senhor "Semi-lasso", auctor de "Tutti-frutti", é outra casta de principe: talvez o tratassem mal aqui se elle cá viesse. E não me peja de seguir o seu exemplo de longe, escolhendo o titulo que escolhi para esta miscelânea de reminiscências poéticas.

Mas nem somente são de várias estações, são também de várias e mui desvairadas espécies estas flores. Ao pé do acantho da lyra antiga, vae o trevo e o goivo que enramavam o alahude romântico; o nardo, a mangerona e a mesma rosa da Palestina ousaram crescer entre o loto e os myrtos da Attica: e não em jardim simetrico, riscado a régua e compasso como os do século passado, mas de paizagem livre em que se aproveitaram os descuidos e accidentes da natureza e do terreno.

Algumas poucas peças politicas leva esta collecção; e dellas ha que nem eu já entendo bem; tanto mudaram em tam poucos annos, circumstancías e pessoas que a inspiraram. Mas não as podia tirar de um livro em que vae consignada a maior ou melhor parte das minhas sensações poéticas em toda uma época, e essa a mais aventurosa, a mais cheia e mais importante da minha vida.

Novembro 3 — 1843. (1)


(1) Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume I, 1904


Referências externas:  
Obras de Almeida Garrett na Biblioteca Nacional de Portugal  
Obras de Almeida Garrett em archive.org 
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. I (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)  
Almeida Garrett, Obras Completas, Vol. II (com ilustrações de Joaquim Manuel de Macedo)

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O partido setembrista, Lisboa 1836
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Os pincéis do Neogarretismo prévio



Internet Archive (referências biográficas):
Domingos Manuel Fernandes, Biographia politico-litteraria..., 1873
Teophilo Braga, Historia do romantismo em Portugal... Garrett, Herculano, Castilho, 1880
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo I, 1881
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo II, 1884
Francisco Gomes de Amorim, Garrett, memórias biográficas, Tomo III, 1884
Alberto Bessa, Almeida Garrett no Pantheon dos Jeronymos, 1902
Alfredo de Pratt, O divino poeta, 1903
Latino Coelho, Garrett e Castilho, estudos biográficos, 1917

Internet Archive:(bibliografia):
Catão [1821], 2.a ed. 1830
Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume I, 1904
Teophilo Braga, Obras completas de Almeida Garrett, Volume II, 1904
...

Biblioteca Nacional de Portugal:
Bicentenário de Almeida Garrett
Roteiro bio-bibliográfico
Obras em formato digital
A Enciclopédia de Garrett Enciclopedista
Modernidade e Romantismo em Almeida Garrett
Viagens na Minha Terra: caminhos para a leitura de uma "embaraçada meada"
Modos de cooperação interpretativa na leitura escolar do Frei Luís de Sousa
A Question of Timing: Madalena's role as 'uma mulher à beira duma crise de nervos'
Catão em Plymouth
O Camões garrettiano
Um Auto de Gil Vicente and the Tradition of Comedy
Iconografia

Biblioteca Nacional de Portugal (bibliografia):
Hino Patriótico (poema), Porto 1820, folheto impresso [Recuper. por Teófilo Braga, in Garrett e os Dramas Românticos, Porto 1905]
Proclamações Académicos, Coimbra 1820, folhetos mss. [Reprod. in O Patriota, nº 67 (15 Dez.), Coimbra 1820]
Ao corpo académico (poema), in Colecção de Poesias Recitadas na Sala dos Actos Grandes da Universidade [...], Coimbra 1821 [Recuper. por Martins de Carvalho, in O Conimbricense, Ano XXVII, nº 2823 (14 Ag.), Coimbra 1874]
O Dia Vinte e Quatro de Agosto (ensaio político), Lisboa Ano I (1821)
O Retrato de Vénus (poema), Coimbra Ano I (1821) [Incl.: Ensaio sobre a História da Pintura]
Catão. Tragédia, Lisboa Ano II (1822) [Incl.: O Corcunda por Amor, farsa, co-autoria de Paulo Midosi]
Aos Mortos no Campo da Honra de Madrid. Epicédio, folheto [reprod. do Jornal da Sociedade Literária Patriótica, 2º trim., nº 18 (13 Set.), Lisboa 1822, vol. II, pp. 420-423]
Oração Fúnebre de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1822, opúsculo [Colig. in Discursos e Poesias Fúnebres [...], Celebradas para Prantear a Dor e Orfandade dos Portugueses, na Morte de Manuel Fernandes Tomás, Lisboa 1823]
Camões. Poema, Paris 1825
Dona Branca, ou A Conquista do Algarve (poema), Paris 1826
Da Europa e da América e de Sua Mútua Influência na Causa da Civilização e da Liberdade (ensaio político), in O Popular, jornal político, literário e comercial, vol. IV, nº XIX (Mai.), Londres 1826, pp. 25-81
Bosquejo da História da Poesia e da Língua Portuguesa, in Parnaso Lusitano ou Poesias Selectas dos Autores Portugueses Antigos e Modernos, vol. I, Paris 1826 [Incl.: introdução A Quem Ler]
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Memória Histórica do Conselheiro A. M. L. Vieira de Castro, biografia, Lisboa 1843, folheto [Anón., sobre o ministro setembrista António Manuel Lopes Vieira de Castro]
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Os Exilados, À Senhora Rossi Caccia, poesia, Lisboa 1845, folheto [Reprod. in Revolução de Setembro, nº 1197 (31 Mar.), Lisboa 1845, p. 2, anónimo e título A Madame Rossi Caccia, cantando no baile de subscrição a favor dos emigrados]
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Da Antiga Poesia Portuguesa, in id., Tomo VI, nº 9 (23 Jul.), 13 (20 Ag.), Lisboa 1846
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Filipa de Vilhena, comédia, Lisboa 1846 [incl.: Tio Simplício, comédia, e Falar Verdade a Mentir, comédia]
Parecer da Comissão sobre a Unidade Literária, in Revista Universal Lisbonense, nº 16 (10 Set.), Lisboa 1846, vol. VI, sér. II, pp. 188-189 [dito Parecer sobre a Neutralidade Literária, da Associação Protectora da Imprensa Portuguesa, assinado por Rodrigo da Fonseca Magalhães, Visconde de Juromenha, A. Herculano e João Baptista de A. Garrett]
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Memória Histórica de J. Xavier Mouzinho da Silveira, Lisboa 1849 [separ., reprod. de A Época. Jornal de indústria, ciências, literatura, e belas-artes, nº 52, tom. II, pp. 387-394]
O Arco de Santana. Crónica Portuense, romance, vol. II, Lisboa 1850
Protesto Contra a Proposta sobre a Liberdade de Imprensa, abaixo-assinado, folheto, Lisboa 1850 [Subscrito, à cabeça, por Herculano e mais cinquenta personalidades, contra o projecto de «lei das rolhas» apresentado pelo governo]
Necrologia de D.ª Maria Teresa Midosi, in Diário do Governo, nº 221 (19 Set.), Lisboa 1950
Romanceiro, vols. II e III, Lisboa 1851
Cópia de uma Carta Dirigida ao Sr. Encarregado de Negócios da França em Lisboa, Lisboa (19 Agosto) 1852 [litogr., sobre o tratado de comércio e navegação com o governo francês, que assinou como ministro dos negócios estrangeiros]
O Camões do Rossio, comédia, Lisboa 1852 [co-autoria de Inácio Feijó]
Folhas Caídas, poesia, Lisboa 1853
Fábulas – Folhas Caídas, poesia, 2ª ed., Lisboa 1853

quarta-feira, 6 de maio de 2020

Fado II (recolha em Quadras glosadas, Antonio Bersane Leite, 1804)

Dedicatória à Illma. e Ex.ma Senhora Condeça de Oyenhausen

Marquesa d'Alorna, Franz Joseph Pitschmann, Viena, 1780
Wikipédia
Se o Sol não mandasse ás Plantas 
Amorosos resplendores, 
Pobres Plantas, morrerião
Sem jámais brotarem fiores.

Debil planta he minha Musa,
Tu és o Sol bem feitor,
Que póde, benigna Alcipe,
Dar-lhe alento, e dar-lhe flor.

Tu, que do Monte sagrado
As sagradas Filhas reges,
Que do Téjo os almos Cysnes
Ouves, inspiras, proteges,

Que nas Virtudes és Grande,
Que és das Sciencias o escudo,
Que para gloria de Lysia
Já nasceste Grande em tudo:

Celeste Alcipe, agrilhôa
Os meus Destinos adversos,
Aos pés do teu aureo throno
Acolhe meus rudes versos.

Otoni, e Bocage, ricos…
Do ethéreo Febêo thesouro,
Os seus versos te, oferecêrão
Em brilhantes Aras de ouro:

Bresane he pobre, e mais pobres
Ainda os seus versos são:
Para oferecer-tos formou,
Puro altar do coração,

Mas se Benigna os recebes,
Ao teu escudo seguros,
Hirão á Posteridade,
Calcando os Fados escuros.

Cheios d'Apollo, e de Ti,
Rompendo bravas procellas,
Hirão colocar teu Nome
Muito acima das Estrellas.



Epístola ao Senhor António Bersane Leite [pseud. Tionio, ]

Os Amores ha muito, ha muito as Graças, 
E a Deosa, delles Mái, Mái de teus versos 
Instao que á Patria os dês, que os à Fama.
Tarde cedeu Tionio á voz divina [...]


Manuel Maria de Barbosa de Bocage (detalhe), Henrique Joze da Silva del. Francisco Bartolozzi R. A. sculp.
belas-artes ulisboa

Folguem de Fébo Espíritos mimosos, 
Folga, Tionio, seu querido Alumno: 
"D'entre as Furnas da inveja ou tarde ou cedo
Surge a Gloria em triunfo, e nunca morre".

Bocage



Quadrina I.

Não temo a cruenta Sorte,
Nem imploro o seu favor;
Á Ventura, e á Desgraça
Tenho huma alma superior.

Glosa

Qual zomba do Nóto iroso
Marpesio rochedo duro,
Assim eu firme, e seguro
Zombo do Fado horroroso:
Ou veja o Ceo tenebroso,
Ou em calma, sempre forte,
Tomando a Razão por norte,
E tendo a Virtude ao lado,
Não receio o negro Fado,
Não temo a cruenta Sorte.

Que são Desgraça, e Ventura?
nada são, pois seus efeitos
Durão só em nossos peitos
Quanto a debil vida dura:
Que entorne a Desgraça escura
Sobre mim o pranto, e dor,
Que a Fortuna superior
Dons me prometta a milhares:
Nem me curvo a seus altares,
Nem imploro o seu favor.

Tu me mandas, sã Virtude,
Que eu não mude desta empreza;
Bem qual manda a Natureza
Ao rochedo se não mude:
Já por ti quebrar eu pude
Os laços, que a paixão traça;
Sim, Virtude a tua graça
Faz, por influxo brilhante,
Que eu já mostre igual semblante
Á Ventura, e á Desgraça,

Filosofia, ao clarão
De tuas brilhantes luzes,
Tu me guias, e introduzes,
Nas moradas da Razão:
Alli de meu coração
Me mostras que sou senhor;
Já, graças ao teu favor!
Com hum escudo tão forte,
A Desgraça, ao Fado, á Morte
Tenho huma alma superior.

[...]

IX.

Subi a teu pensamento,
Nunca tão alto subi;
Decahi da tua graça, 
Outro subio, eu desci.

Glosa

Quando ó Marcia, eu suspirava,
Altos bens me promettias,
Quantas vezes me dizias:
Que em teu pensamento estava?
Que alli mesmo Amor formava
Para mim eterno assento?
Que desde o feliz momento,
Em que te jurei fé pura,
Sobre as azas da Ventura
Subi a teu pensamento?

Em lugar tão superiorEu era o mimo do Fado;
Ninguem tão afortunado
Beijou os grilhões de Amor:
Já me esquecia o rigor
Dos tormentos que soffri!
Com que gloria a Amor ouvi
Dizer a Vénus zeloso:
"Mãi nunca fui tão ditoso,
Nunca tão alto subi!"

Tão ufano, ó Nize bella,
Com teus favores me via,
Que os revezes não temia
Da minha inimiga estrella:
Eis que horrísona procella
De improviso o Fado traça!
Fulmina. a mão da Desgraça
Sobre mim ó raio ardente; 
Emfim, Nize , de repente
Decahi da tua graça.

Sim, cruel , me abandonaste;
E com fera tyrannia
Ao lugar, que eu possuia,
Outro feliz elevaste
Mas Amor, a quem faltaste,
Ha de me vingar de ti!
Sentirás, como eu senti,
Entre chammas palpitando,
Os zelos, que soffri, quando
Outro subia, e eu desci.

X.

Esses momentos gostosos,
Que condigo, já passei,
Delles te esquece, tyranna,
Que eu também me esquecerei. (1)


(1) Antonio Bersane Leite, Quadras glosadas, Lisboa, Simão Thaddeo Ferreira, 1804

Informação relacionada:
Historia da litteratura portugueza (Bocage)
A casa onde nasceu Bocage e outras verdades que não pegam

Fado I (recolha em Obras poéticas de Bocage)

Manuel Maria de Barbosa de Bocage (detalhe), Henrique Joze da Silva del. Francisco Bartolozzi R. A. sculp.
belas-artes ulisboa

A ESTANCIA DO FADO 

Para celebrar o dia uatalicio da Sereníssima Princeza D. Maria Theresa 
(Representado no Theatro de S. Carlos, em 29 de Abril de 1797)
__________________

Actores : — O Fado — O Génio Lusitano — Lysia 

A scena se figura na estancia do Fado. 
__________________ 

SCENA I 

O Fado e o Génio Lusitano 

Génio 

Oh tu, que já severo, e já benigno 
Ou prostras, ou manténs, ou dás, ou tiras, 
Despótico senhor da Natureza, 
Ente, de cujas leis é tudo escravo,
Hoje desenrugada a fronte augusta 
Affavel te promette ás preces minhas. 
Ministro pontual dos teus decretos. 
Eu, que ha tantas edades velo, oh Fado, 
Na gloria, no esplendor da egrégia Lysia, 
De brilhantes heróes origem pura, 
Eu por ella te invoco: ako interesse 
A dirige, a conduz ante o supremo 
Throno, onde reinas, adorável throno, 
Escorado na inimensa eternidade. 
Dá que a teu gran poder curvando a frente, 
Honrada ha muito de apoUinea rama, 
Lysia teus dons benéficos implore. 
De tudo quanto abrange a louga terra 
Nada tão digno de encarar seu sólio. 

Fado 

Magnânima, fiel, constante, invicta,
Lysia, qual a formei, dá lustre ao mundo;
Ante o seu gosto minlias leis se torcem:
Tens influxo, oh Virtude, até no Fado.
Venha, merece olhar-me, ouvir merece
A voz, que ao próprio Jove o throno abala;
Toque a vedada, sempiterna Estancia
Por onde em turbilhões mysterios fervem:
Gloria, aos mortaes defesa, a Lysia cabe [...] (1)



Que eu fosse em fim desgraçado
Escreveu do Fado a mão;
Lei do Fado não se muda;
Triste do meu coração!

Glosa

Tres vezes sobre mens lares
Vozeou, quando eu nascia.
Ave, que aborrece o dia,
Que prevê cruéis azares:
Amor dividira os ares
De seus tormentos cercado;
A funda estancia do Fado
O vôo havia abatido,
E ambos tinham resolvido
Que eu fosse em fim desgraçado.

— Esse, que os primeiros ai
Vai soltar triste^ e choroso,
Seja á Fortuna odioso,
Seja pezado aos inortaes:
Dos mimos de Amor jamais
Desfructe a consolação;
Ame, porém ame em vão,
Ferva-lhe n'alma o ciúme.
Isto no horrendo volume
Escreveu do Fado a mão.

Cresci, cresceram commigo 
Meus damnos, e n'um transporte 
Curva maga a ler-me a sorte 
Com roucas preces obrigo: 
Eis que toma um livro antigo, 
Abre, vê, folhôa, estuda, 
Té que me diz carrancuda: a 
"Nos caracteres que olhei 
Fim ao teu mal não achei; "
Lei do Fado não se muda.

Absorto, convulso, e frio.
Deixo de erriçada grenha
A Fúria em concava penha.
Seu lar medonho, e sombrio:
Debalde lucto, e porfio
Contra a Sorte desde então;
Céos! Não achar compaixão!

Céos! Amar sem ser amado!
Barbara lei do meu fado !
Triste do meu coração! (2)


(1) Vol 4-5: Obras poéticas de Bocage
(2) Vol 3: Obras poéticas de Bocage

Informação relacionada:
Vol 1: Obras poéticas de Bocage
Vol 2: Obras poéticas de Bocage
Vol 3: Obras poéticas de Bocage
Vol 4-5: Obras poéticas de Bocage
Vol 6: Obras poéticas de Bocage
Vol 7-8: Obras poéticas de Bocage