quarta-feira, 15 de abril de 2020

Chanfana (2 de 2)

— Querem ir ceiar ao Isidro?
— Vá feito! 
— Elle hoje ha de ter chanfana fresca.
— Á chanfana! á chanfana!

E largaram por ali fora, em grupo, para a casa de pasto do Isidro.

A ceia da chanfana
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904

O leitor quer decerto saber o que era a chanfana. Nao admira, porque um jovem príncipe, que teria então 11 annos de idade, e fora baptisado com o mesmo nome de seu augusto avô el-rei D. José, também por aquelle tempo perguntou o que era essa famosa chanfana, de que tanto ouvia fallar.

Creança intelligente, parecendo fadada para altos destinos, tinha a aguda curiosidade que é própria de todas as creanças intelligentes. A pergunta do príncipe constou na cidade, e não só deu assumpto a varias composições poéticas, mas também poz em maior voga a chanfana, que desde essa hora passou das choças da Ribeira para as casas de pasto mais notáveis. 

É que também constou que o joven príncipe D. José não se contentara apenas com a resposta que lhe deram, e quiz avalial-a praticamente, dignando-se comer chanfana no Paço. António Lobo foi um dos poetas que promptamente acudi- ram á curiosidade do neto de el-rei. Compoz um soneto, que transcrevo textualmente com a rubrica que o antecede: 

Perguntando o Príncipe do Brasil D. José — Que cousa era chanfana? 

D'alto barrete, á laia de turbante, 
Os braços nus, a faca na cintura,
Co'um pano por timão á dependura,
Trabalha o Isidro, a turco similhante:

Do elastico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacanle!

Esta, príncipe augusto, é que eu approvo,
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o vosso povo:

O peor é, que lambe d'estocada
Aos peraltas o seu cruzado novo.
Menos a mim, que nunca paguei nada!

Isto era já no período de aristocratisação da chanfana, em seguida á pergunta do príncipe, quando tanto o Isidro como o Almeida e o Talaveira levavam aos peraltas um cruzado novo por essa indigesta petisqueira. 

Mas António Lobo, aproveitando o assumpto e a opportunidade, também descreveu a chanfana na sua primitiva feição popular, entrançando uma reste de sonetos, de que vamos arrancar alguns: 

Lá onde d'antes era situada
Essa antiga Ribeira, em negras choças
Estão vendendo enlabuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada

Soccos nos pés, as pernas sem ter nada,
Roupinhas de bacta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co'o feijão, com a isca, e co'a canada:

Alli de humilde boi já esfolado
O molle bofe se lhe vai frigindo,
E em prato o põem, que nunca foi lavado:

Toda a plebe á chanfana vai surgindo;
Mas depois sáem d'este coe damnado
Ora dando encontrão, ora caindo.

Lobo não se contentou com descrever o aspecto sujo das choças da Ribeira Velha, e das moças que preparavam a chanfana. Accentuou a pintura do interior das tascas n'outro soneto, que é um bello quadro da vida plebêa de Lisboa no seu tempo: 

Em casa terrea com dous bancos sujos,
Meza de pinho a quem um dos pés falha, 
D'estopa em cima sordida toalha,
E de roda fumando alguns marujos:

A porta sempre cheia de sabujos,
E defronte sentada sobre palha
De Guiné, e d'Angola essa canalha,
Vendendo mexilhões, e caramujos:

De louro á porta um grande molho atado,
Cortina rota, e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado:

Pois quem vir isto assim fuja do cheiro,
Que se entrar por querer d'este guisado
Sairá sem comer, e sem dinheiro.

Nicolau Tolentino também interveio no assumpto, e por um triz se não accendeu outra guerra entre os poetas como tinha acontecido a respeito da Zamperini e do padre Macedo. Fallar da chanfana entrara em moda, e o que é certo é que o publico, dando maior attenção aos poetas do que hoje, se mostrava interessado pelo assumpto... apesar de indigesto. 

O soneto de Tolentino vae servir-nos para um duplo fim: como contribuição para a historia da chanfana e como parallelo de caracter entre o seu auctor e António Lobo. Diz Tolentino:

Comprada em asqueroso matadoiro 
Sanguinosa forçura, quente, e inteira, 
E cortada por gorda taverneira, 
Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro; 

Cabeças de alho com vinagre e loiro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira,
C'os indigestos figados de touro;

Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;

Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;
Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.

No final d'este soneto, Nicolau Tolentino não pôde, a propósito da chanfana, reprimir a sua bossa de adulador de pessoas gradas. Mette memorial, como sempre. Dá a entender que foi creado com a chanfana e que terá de morrer n'esse mesmo regimen culinário se lhe não acudir a mão generosa do príncipe D. José. 

Retrato de Nicolau Tolentino, Giuseppe Trono.
Agostinho Araújo, Tipologia votiva e lição literária: o caso Tolentino

Para conseguir o effeito da sua habitual pedinchice, não duvida dizer que na infância se alimentou a chanfana, o que nao deve ter sido inteiramente verdade, porque o pae de Tolentino era advogado de causas forenses, e vivia decerto menos mal, a ponto de poder mandar o filho para Coimbra.

Por sua parte, António Lobo, no final de um dos sonetos, revela-se o bohemio que sempre fora, declarando que o Isidro nunca lhe apanhou dinheiro pela chanfana. Quando elle a comia, eram sempre os outros que pagavam. Tolentino só quer dinheiro; Lobo até se gaba de o não ter. 

Vejamos, porém, como foi que esteve para rebentar nova guerra entre os poetas. O soneto de Tolentino não passou sem contestação; sahiu a contradictal-o um sujeito chamado Caetano Pinto de Moraes Sarmento.

O leitor não ouviu nunca fallar d'este poeta, certamente. E o que eu mesmo sei da sua vida é apenas o que António Lobo nos deixou escripto acerca d'elle. Era filho de um barbeiro, e parece que vaidoso, aperalvilhado, velhaco, com fumos de poeta e de fidalguia. Lobo chama-lhe "ôdre de vento". 

Da familia dos Pintos o morgado, 
Primeiro tolo sem contrariedade. 

Está bem de ver que eram inimigos, e que Pinto temia o Lobo, o que zoologicamente parece natural. Mettendo-se na questão da chanfana, não é com o Lobo que o Pinto investe; mas com Tolentino, sem respeito algum, porque lhe chama desdenhosamente — o tal Tolentino. 

Não é esta, senhor, a de que fala, 
Á chanfana do fígado do touro, 
Nem se aduba com alhos, nem com louro, 
Como o tal Tolentino quiz pintal-a:

Uma carne, que deixam de sangral-a, 
Mais ascorosa que a do matadouro, 
Com toucinho, que o ranço fez cor d'ouro, 
E pedregoso arroz, que o dente estala:

Carneiro resequido, e não assado, 
Galinha, que mais couta que anno e dia, 
Com os seccos pasteis sem ter picado:

Eis aqui de que fala a fidalguia; 
Isto é chanfana, insípido bocado, 
Que forjam os cyclopes da ucharia,

Vem mais um poeta, também obscuro, Luiz Joaquim da Frota, e envolve-se na contenda, passando em revista o que os outros disseram sobre a chanfana:

Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:

Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:

Pinto toma os pinceis da phantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Foi colorir as fezes da ucharia: 

Seu quadro é bom; seria consumado,
Se a sua tão creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado

Esta ultima estocada ao Caetano Pinto de Moraes Sarmento confirma as prosapias de fidalguia, que Lobo lhe attribue. Frota também lhe ferra a unha, dando a entender que, sendo o pai barbeiro, a nobreza da família, começando no filho, era apenas recemnascida. Felizmente, este rompimento de hostilidades não se azedou mais, nem continuou. 

Mas veja-se o mau sestro que teem os poetas de estar sempre em divergência uns com outros. Pelo que elles disseram, o príncipe D. José ficaria sem perceber o que era chanfana, se os criados da real ucharia [despensa] lho nao tivessem dito a preceito. 

Retrato de D. José, príncipe do Brasil (1761-1788),
por Miguel António do Amaral.
Cabral Moncada Leilões

O leitor, á falta de leccionista profissional, também de certo ficou sem uma nitida idéa do assumpto, mas isso nâo é coisa que lhe deva causar grande desgosto. O que convém saber é que António Lobo e os outros sucios foram, effectivamente, ceiar chanfana ao Isidro e que o poeta, sem vintém na algibeira, acceitára contente a ceia [...] (1)


(1) Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904

Leitura relacionada:
António Lobo de Carvalho, Poesias joviaes e satyricas, Cadix, 1852
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.

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