sábado, 16 de setembro de 2017

Velhas lembranças, François d'Orléans, 1842 (5 de 5)

Regressámos a Lisboa por outros caminhos, caminhos assustadores, mal traçados através de um país de charnecas e pinheiros, paisagens pitorescas, mas selvagens e desertas onde encontramos em pleno dia lobos enormes, rondando à volta de rebanhos de cabras que os cabreiros juntam como nos tempos primitivos, ao som de conchas.

A series of views of the Principal Occurrences of the Campaigns..., City of Coimbra.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Dois dias de marcha levam-nos à vista da pequena cidade de Tomar, e à noite chegamos ao nosso alojamento, uma hospedaria espantosa onde, enregelados e moídos, nos instalámos na cozinha. 

Aumale embala as crianças à lareira e faz-se adorar enquanto eu me esforço por conquistar a mestra da casa, uma mulher gorda com alguma literatura, que jura em todas as linguas, "Thomar! Conheceis Thomar? Alguma vez ouvisteis falar? Que viagens entretanto emprehendidas, que penas havidas para ir ver monumentos bem inferiores!"

Views in Spain and Portugal taking during the campaigns..., Tomar.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O objecto da minha admiração é um convento, infelizmente! saqueado,  pilhado, avizinhando a destruição, mas o edifício mais original que se possa conceber. O núcleo deste convento é uma mesquita redonda com pilares coloridos, com o seu mirabe, onde a minha imaginação vê ainda muçulmanos em longas vestes e turbantes a meditar gravemente.

De mesquita, com a conquista, o templo tornou-se cristão, o mirabe central, altar-mór; os santos de pedra elevam-se por toda a parte e instalaram os seus nichos; as esculturas de madeira, admiráveis de delicadeza, rodeavam o altar-mór.


Depois dos Mouros vieram os Templários, depois os Cavaleiros de Cristo que defenderam valentemente o convento contra um regresso ofensivo dos Mouros; mostra-se ainda hoje uma porta chamada a Porta do Sangue por causa da carnificina que ela testemunhou. Templários e Cavaleiros de Cristo, uns e outros, marcaram com o seus caracteres o monumento.

Leitura Nova da Estremadura, Tomo IV, Folio 35 (detalhe).
Imagem: Viajar con el arte

D. Manuel veio depois, e com ele o estilo rico e sedutor da sua época. Juntaram um côro e uma porta admirável à antiga mesquita; os claustros alongaram-se, salas charmosas ergueram-se.

Janella da igreja do Convento de Christo em Thomar do lado do claustro de St.a Barbara.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Por fim os Filipes de Espanha, durante a sua soberania sobre Portugal, residiram em Tomar e trouxeram-lhe, por acréscimo de novos claustros, a pesada e severa arquitectura posta em voga pelo sombrio carácter de Filipe II.

Este convento é ao mesmo tempo um museu arquitectural, um museu histórico e um monumeto religioso dos mais surpreendentes. O silêncio destes vastos claustros — tem seis ou sete — deixa uma impressão profunda. Não podia desligar-me, descobrindo em cada instante qualquer detalhe impressionante.

Fui puxado dos meus sonhos, da minha admiração e trazido à realidade por um guia voluntário que me acompanhava e que, vendo-me parado diante de uma deslumbrante estatueta, me disse: "Vou arrancá-la, e vós a levareis," acrescentando, quando protestei: "Mas toda a gente aqui leva o que quer."

Sinto-me feliz por poder acrescentar que, chegados a Lisboa, denunciamos este vandalismo, ao mesmo tempo que inflamamos o espirito tão artista do rei Fernando com as nossas descrições. Ele fez por sua vez a viagem a Tomar, e graças a ele, a conservação deste edifício, foi daí em diante assegurada [v. Álvaro José Barbosa, Habitar o património: o caso do Convento de Cristo].

Charmosa viagem de Tomar a Lisboa, por Abrantes, onde vi vir a mim um senhor velho vestido com um uniforme antediluviano, com uma espada de través, como os marqueses de comédia, que se lança aos meus joelhos envolvendo-me as pernas com os seus braços, gritando: "Abraço o condutor de Napoleão," alusão ao regresso de Santa-Helena que me surpreendeu um pouco.

Historical military picturesque..., George Landmann,  Abrantes.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Regressado a Lisboa, tive o desgosto de me separar de Aumale, que um navio a vapor levaria à Argélia. Foi aí entrepreender a brilhante campanha que terminou na tomada de Abd-el-Kader, o resplandescente feito de armas do qual o belo quadro de Horace Vernet, no museu de Versailles, perpétua a recordação.

Tomada da smalah de Abd-El-Kader em Taguin, 16 de maio de 1843, Horace Vernet, 1844.
Imagem: Wikipédia

Sabemos que, lançado na perseguição dessa "smala", meu irmão conseguiu-a só com a sua cavalaria, e longe de todo o apoio, depois de várias marchas nocturnas que ele conseguiu furtar ao inimigo. "Eles são bem numerosos", ocorreu dizer-lhe o coronel Yusuf que marchava na frente, e que era um valente. "— Um principe  da minha raça jamais recuou," foi a resposta. "Avante! "E a pequena tropa avança sem hesitação, general à cabeça, sobre a imensa aglomeração guerreira, que tinha diante de si. O sucesso justificaria esta audácia.

Sur l'île de Gorée. Un dîner en Guinée, François d'Orléans, prince de Joinville.
Imagem: Sotheby's

Quanto a mim, enquanto que Aumale se dirigia à Argélia, fazia os adeus a estes excelentes amigos e parentes, a rainha D. Maria e o rei Fernando, e metia vela ao Senegal e à Costa da Guiné, onde faria a volta dos nossos estabelecimentos coloniais. (1)


(1) François d'Orléans, prince de Joinville, Vieux souvenirs: 1818-1848, Paris, C. Lévi, 1894

Versão inglesa:
François d'Orléans..., Memoirs..., London, W. Heinemann, 1895

Leitura adicional:
Outros escritos de François d'Orléans


Mais informação:
J. A. Santos, Monumentos das ordens militares do Templo e de Christo em Thomar, 1879
J. M. Sousa, Noticia descriptiva e historica da cidade de Thomar, 1903
Vieira Guimarães, A missão de Portugal e o Monumento de Thomar, 1905
Círculo de Estudos de Thomar (fb)

Sem comentários: