sábado, 23 de setembro de 2017

Thomaz José da Annunciação (1 de 3)

Aos vinte e um de Outubro de 1837 se matriculou na Academia de Bellas Artes de Lisboa um rapaz de dezoito annos, inquieto, vivo, de olho scintillante: a Academia fazia um anno de idade e a sua existencia parecia-lhe a ella um sonho inexplicavel.

Vista de uma parte da feira do Campo Grande, Tomás da Anunciação, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Manoel da Silva Passos querendo instituir o ensino da arte, colleccionou todos os que recebiam do Estado a titulo de artistas, quer o fossem quer não, pregou com elles em S. Francisco e cuidou innocentemente que na intelligencia e amor da arte, que rasoavelmente lhes suppoz, brotaria o fructo que com o seu incontestavel patriotismo antevia da sua obra.

Deixemos os academicos que não comprehenderam o fim para que os asylaram no convento e digamos o que fez o novo alumno, que pela pintura que fizemos d'elle tem já as sympathias do leitor, que certamente quer já saber quem é, e se chegou, a conseguir, apesar da Academia, alguma eminente posição artistica. 

Diremos primeiro que, segundo o costume, começou os seus estudos graphicos enchendo resmas de papel de bonecos com fórmas ideaes que se dão aos principiantes como primeiro leite da arte do desenho.

Thomaz José da Annunciação (1818-1879) correu tudo aquillo rapidamente e passou á Aula do gesso, graduação importante n'aquella altura, em que se navega cheio de fé e enthusiasmo, qualidades que ao nosso artista só uma vez faltaram.

Tomás José da Anunciação, Cinco artistas em Sintra (detalhe), João Cristino da Silva, 1855.
Imagem: MNAC

Na aula do gesso, permitiam-me a expressão, uma caqueirada informe constituia o objecto a que se devia dedicar o culto do desenhador a claro-escuro, o qual procurando conseguir á força de imitação fazer tão hedionda a copia como o original, chega ao apogéo do contentamento e começa a ser gloriosamete invejado dos menos felizes. 

Annunciação passou tudo ao papel, e como prova de que lhe não restava em pouco tempo coisa que não tivesse já desenhado por trinta fórmas, foi-lhe proposto por um dos professores que desenhasse uma triste cabeça d'Antino que lá havia, de um ponto de vista novo, nunca lembrado a nenhum artista; a cabeça era oca e do lado em que o pescoço apresentava um boraco, por onde se via o interior, é que o professor a mandou desenhar, a cabeça não, o buraco: dizia o mestre "tudo o que mostra claro e escuro é aproveitar para o estudo, seja o que for."

Vejam o caso que aquelle fazia da belleza das fórmas.

Com estes bellos estudos não seria Thomaz Annunciação professor da Academia passados quinze annos, se não possuisse uma vocação verdadeira. Conquistou o logar de que foi provido por força de talento e estudo: lástima foi não lh'o disputar ninguem, para ser mais brilhante a victoria, mas a Academia durante quinze annos não lhe tinha preparado nenhum competidor: a Academia aprendeu então na sua historia a reconhecer Annunciação como um homem superior: a Academia honra-se com ser elle seu professor. 

Apontamentos biográficos de Tomás da Anunciação por Manuel de Macedo.
Imagem: ANTT

A inclinação pelas artes do desenho não principiou a manifestar-se quando o nosso artista viu pela primeira vez o labyrintho das estampas e gessos da aula de desenho: ao começar a adolescencia tinha já um passado artistico.

Apontamentos biográficos de Tomás da Anunciação por Manuel de Macedo.
Imagem: ANTT

Thomaz Annunciação nasceu na freguezia da Ajuda, seu pae Manoel Joaquim da Annunciação, honradissimo empregado da Patriarchal, deu-lhe segundo o uso a primeira educação, mas todo o enlêvo do pequeno era pintar soldados, lavadeiras, camponezas, vaccas, burricos, etc., e tambem seu retratinho, obra mais durinha, mas que lhe grangeava seus applausos, principalmente quando eram adevinhaveis os retratados, Manoel Antonio da Silva empregado ás ordens do Dr. Brotero no Jardim Botanico era a victima marcada pelo destino.para fornecer ao joven esperançoso as tintas e pinceis cujo destino valia mais que um paraizo.

As decepções repetidas conduzem ao conhecimento da verdade, do mundo real: não o pode apreciar o que ainda não andou aos encontrões á machina social; mas a gente moça gosa da suprema ventura de viver no mundo que lhe pinta a imaginação, em harmonia com os seus desejos: essa ventura embriaga no verdor dos annos, comtudo a recordação d'ella faz depois acido o caminho do resto da vida. 

D'aquelle prazer que Thomaz gosava nasceu o desejo de o communicar, fez-se ambicioso de gloria, os mirificos bonecos iam já resplandecendo em casa dos ex.mos condes dos Arcos, onde sempre foi mui acceito.

Com que alegria não ouvia elle celebrar os seus triumphos sobre a rebeldia do natural, e sobre a teima dos pinceis em não pintar o que elle queria, quantas reminiscencias saudosas não deverá elle ainda hoje ao bom acolhimento d'essas tentativas em que o genio nascente o encaminhava a contemplar espontaneamente o natural, eterna e unica fonte dos modêlos da arte; apaixonado desde os primeiros annos da verdade nas fórmas e na expressão hoje, que o pincel lhe obedece com rapidez, trabalha violentado se não tem o modêlo á vista: os grandes mestres nunca se presaram de inventar figuras mas de reproduzil-as bem.

Retrato de Tomás José da Anunciação por Joaquim Pedro de Sousa.
Imagem: Hemeroteca Digital

Onde estará hoje a primitiva galeria do nosso artista? onde estão e bem todas as do mesmo genero. Pelo seu desinteresse fazia presente das obras, pela avidez com que procurava a perfeição desempenhava-as seriamente, estas tendencias denunciavam as feições provenientes do seu caracter e do seu talento.

Agora que o leitor viu como Thomaz Annunciação nasceu para as artes, consentiremos que a Academia tenha pretenções á paternidade artistica do seu eminente professor?

Não. Nós só diremos á Academia, se elle é filho dos vossos methodos de ensino, dos vossos exemplos mostrae-nos outro, que tenhaes creado similhantemente em vinte e tres annos, que tantos ha que tendes escola aberta.

O antecessor de Thomaz Annunciação na pintura de paizagem foi André Monteiro da Cruz, mestre dos pintores de ornato no palacio da Ajuda, homem de letras gordas e poucas, mas dotado de uma penetração e sagacidade admiraveis, tinha engenho e no palacio teve largas para estudar, attenta a espantosa prodigalidade com que se dispendia nas obras, e o vagar com que n'ellas se procedia; mas André Monteiro pouco aproveitou d'aquelle remanso e conseguindo fabricar apenas alguma paizagem toleravel, quanto a figuras e gados nem se póde occupar a critica em mencional-os; lá estão na Academia algumas, para as quaes se valeu de pessimas gravuras, que copiou sem a mínima alteração.

Este não foi de certo o que ensinou ao nosso artista os segredos da arte. A quem com justiça se deve mencionar como dando direcção aos estudos, que pelos fins de 1839 foi fazer na aula de gravura de paizagem, é ao digno professor d'ella Benjamim Comte [Benjamin], de quem foi melhor discipulo e a quem sempre mereceu particular estima.

Comte deu-lhe noções do desenho de paizagem a lapis e a sepia, mas os estudos de gados que Thomaz fez depois, sem outro mestre mais que o natural e a sua rara percepção da cor e do contorno, a que distancia ficam dos trabalhos que fez na aula de gravura.

Sem fazer offensa a nenhum dos professores da Academia, affiançamos que foi sempre de todos o mais bondoso e bemquisto Joaquim Raphael que regia a aula de desenho, Annunciação frequentou-a quatro annos, e foi em todos quatro premiado com o primeiro premio.

Tomás da Anunciação.
Desenho premiado no concurso da Aula de Desenho Histórico do ano de 1840-41.
Imagem: belas artes ulisboa

Em 1841, concluido o curso da aula, como lá lhe chamam, passou ao curso da aula de pintura historica, dirigida pelos srs. Antonio Manoel da Fonseca e Norberto José Ribeiro, homem de uma probidade escrupulosissima e o mais digno que restava dos representantes da pintura, da época da Ajuda: colorista soffrivel, pincel timido resentia-se de uma educação artistica capaz de apagar o fogo divino ao proprio Miguel Angelo, este homem (aliás respeitavel), pouco vulto fazia na aula. 

Rebanho, Arte Pintura Tomás da Anunciação, 1841.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Thomaz Annunciação, que suppunha acabado o seu curso de desenho, continuou a fazer desenhos na aula de pintura historica e ahi consumiu tres ou quatro annos, copiando cabeças e prégas dos quadros quinhentistas que possue a Academia, e pintando do gesso o claro-escuro: esta vida enfastiou o artista e no armo de 1844, considerando todos os discipulos que o tempo assim empregado era uma verdadeira dissipação; accordaram em abandonar a aula; Annunciação retirou-se com os seus collegas.

Onde o artista julgára que a sua carreira seria mais veloz ahi encontrou tropeços que não imaginava: os ímpetos de enthusiasmo pela arte foram-se-lhe amortecendo .com as contrariedades do que chamam vida real. 

Por estes tempos o ministro da Prussia conde de Rakzinsky [Les arts en Portugal, 1847], singular amador de artes, escrevia aqui, sobre a nossa historia artistica, duas obras mui conhecidas e estimadas, e animado de um vivo interesse pelas nossas coisas communicava para Allemanha o que aqui via de notavel e precioso em quadros antigos.

Não sendo facil enviar desenhos d'elles, pediu a Thomaz Annunciação que lhe desenhasse algumas das cabeças mais caracteristicas, afim de as mandar como amostra ao seu paiz: n'isto houve-se Annunciação com tal felicidade que, esta circumstancia junta a outras de não menos peso levou o conde, de accordo com dois dos mais intelligentes fidalgos de Portugal, a escolhel-o para ir estudar fóra do paiz de companhia com outro moço de não menor merecimento, hoje fallecido.

Esse projecto posto repentinamente em esquecimento, foi mais uma das dóres com que a adversidade experimentou a fortalesa do nosso artista.

Thomaz não era tão abastado que podesse proseguir desassombrado de cuidados no seu caminho: affigurou-se-lhe um descampado o terreno que tinha a andar; o encanto dos campos que sonhára conhecia que era sentido só por elle, os outros via-os andar e desandar, cuidando na vida e ignorando mesmo que haja além d'isso alguma outra coisa de que se possa cuidar; elle via n'elles uma felicidade, mas tal que o não podia seduzir.

Não espere nunca o leitor encontrar o desenganado artista ao balcão de uma casa de commercio, de penna na orelha, alliciando os freguezes com uma eloquencia meliflua, recheada de disparates e de affirmativas absurdas ou visivelmente falsas, não espere que, alcançado algum posto de oficial para o ultrámar, o encontra satisfeitíssimo com a sua nova, carreira, cheio de esperança e fé, na figura brilhante que pôde fazer um dia.

Propostas de uma e outra especie se lhe tinham feito em 1837 e a resposta a ellas foi a sua matricula na Academia das Bellas Artes de Lisboa. 

Forçava-o a buscar modo de vida a sua demissão de praticante no Museu de Historia Natural e Jardim Botanico, cujo director o dr. Francisco d'Assis, era n'essa occasião exonerado, não sei sob que pretexto, mas com o fim de se operar no establecimento uma reforma. 

Ajuda, Tomás José da Anunciação, c. 1860.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Irá pois agora o desanimado artista manejar o covado ou a espada, deixando o pincel ao abandono? não váe, não lh'o consente a indole. Dois annos lhe durou o enfado e a casa dos ex.mos condes dos Arcos lhe deu abrigo, com affeição verdadeira, e tanta que Thomaz da Annunciaçào não a esquece nunca: o seu reconhecimento aos ex.mo D. Nuno e D. Pedro d'Arcos não precisa de quem o avive.

Quem restituirá á sua musa o fugitivo pintor? haveria alguem a quem afligisse a obscuridade a que se condemnou no desalento? Thomaz terá ainda um amigo, animado da fé no futuro, na fé que lhe faltou a elle?

João Anastacio Rosa, o actor Rosa, conhece a superioridade do talento de Thomaz Annunciação e antevê a brilhante posição que elle pôde alcançar como artista, visita-o, aconselha-o, força-o a tomar os pinceis; n'estas importunações amigaveis, Rosa acompanhado do sr. Hermano Moser, grande apreciador de Bellas Artes.

Dissipa-se rapidamente a nevoa que encobria a Thomaz Annunciação os seus horisontes refulgentes, a altivez dos seus novilhos, as ovelhinhas, os regatos: parece-lhe sentir a fresquidão das madrugadas, começa a ouvir a melodia dos campos, presente já uma soberba eira, um soberbo. quadro, urna soberba exposição d'elle; Annunciação determina resolutamente ser artista, falta estudar.

Vista da ponte e da ribeira da Rabicha e do Aqueduto das Águas Livres, Tomás da Anunciação, c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O pintor não improvisa as formas dos objectos de que faz a sua composição, e uma das qualidades principaes de um quadro é sem duvida a fidelidade na imitação da natureza, n'alguns é mesmo a qualidade essencial.

Annunciação applicou-se pertinazmente ao estudo severo dos seus modélos, e com tal persistencia proseguiu n'estes exercicios que a elles devemos o ser o prefessor da Academia o melhor e o primeiro pintor de gados conhecido em Portugal: o seu modélo foi a natureza, o seu mestre a propria experiencia, guiada pelo seu genio.

Rosa, como excellente amigo, não parou vendo ateado o enthusiasmo do artista, çonstituiu-se seu corrector, lançava-lhe mão dos quadros que acabava de pintar, apregoava-lhes o merito, vendia-os; e Thomaz cuidava só do seu estudo, ignorava até estes passos de Rosa.

São as premicias d'estes novos trabalhos quatro quadrinhos representando gados, que se acham em Cintra, na galeria d'El-rei o Sr. D. Fernando: expostos na loja do dourador Margotteau por diligencias do Rosa, soou no Paço noticia d'elles, El-rei, para quem um novo elogio é hoje a repetição de alguma verdade mil vezes affirmada por todos, quiz vel-os e tendo-lhe agradado, fez d.'elles immediata acquisição. Foi isto ali por 1848, ha dose annos que a protecção do Sr. D. Fernando não desampara o artista.

Ornam as galerias de S. M. numerosas producções de Annunciação [v. A dispersão dos quadros da herança do rei D. Fernando]. 

A volta do trabalho, Arte Pintura Tomás da Anunciação.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

São notaveis — "Uma vista da praia de Pedroiços com pescadores" — Outra tirada de um ponto do jardim das Necessidades — Duas de pastagens com vaccas — Tres com patos, gallinhas, etc. — "A ida para o trabalho" — "A volta do trabalho", duas joias da collecção, "O repouso dos pastores" — e a perola das suas composições: "Os amores d'Aldeia". 

A volta do trabalho, Tomás da Anunciação, 1857.
Imagem: belas artes ulisboa

O Ex.mo Sr. Antonio Xavier de Brederode, a quem o paiz deve notaveis serviços em favor da arte, possue do nosso artista — Um interior de bellissimo efreito de luz — Duas paizagens — Um tocador de viola.

O Ill.mo Sr. Palha (João) — "Um grupo de rapazes jogando o jogo das cinco pedrinhas", o "astragalo" dos antigos.

O Ex.mo Sr. Estevão Palha possue nada menos de sete dos mais recentes — "A partida do gado" — "Uma pastagem" — Um representando uns patos — O retrato de um soberbo mastim, tamanho natural — O velho dos amores d'aldêa, repetição — "A torre e praia de Belem", longes bellissimos — Um quadro de flores e fructos, estréa de novo genero, em que se manifestam os prodigiosos recursos da sua palheta.

O exm.° sr. Luiz Augusto Rebello da Silva, possue tambem alguns quadros d'Annunciação, o nosso poeta Gomes d'Amorim, tres de gados — O sr. João Baptista Ferreira, seis: — "Uma vista da Praça da Figueira" — "Um sendeiro" — Dois de mulheres d'Ovar — Dois de gados.

Lord Seymour fez tambem acquisição de dois quadros representando o pittoresco trajar das varinas.

O negociante Jorge Hancock — alguns de pescadores, gados, trajos nacionaes, etc.

Foi um d'elles vendido em Inglaterra por preço correspondente a uma alta estima: este facto merece particular menção por se dar entre os compatriotas de Turner e Landseer.

Seria quasi impossivel e de certo fastidioso dar aqui relação de todas as producções de Annunciação, calculado o seu numero em mais de cem: o leitor que tiver a ventura de contemplar as que apontámos approvará certamente a menção que d'ellas fizemos.

A descripção minuciosa de um quadro é sempre uma coisa incompleta e quasi sempre inutil para se formar d'elle idéa.

Oliveiras em Azeitão, óleo s metal, Tomás da Anunciação, 1860.
Imagem: Diamantino Vasconcelos

Passaremos em silencio sobre os desenhos, litographias, gravuras que tem produzido, quasi todas conhecidas dos amadores. (1)


(1) Revista contemporanea de Portugal e Brazil n.º 11, fevereiro de 1860


Museu Nacional de Arte Contemporânea:
Tomás da Anunciação

Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras digitalizadas de Anunciação, Tomás José da

museu virtual ulisboa:
ficha de autor
coleção de desenho
coleção de gravura

Artigos relacionados:
O fim do Romantismo
A dispersão dos quadros da herança do rei D. Fernando

Mais informação:
Biografia do pintor Tomás José da Anunciação

Sem comentários: