segunda-feira, 25 de setembro de 2017

Thomaz José da Annunciação (3 de 3)

Vivia — em 1846 — em Lisboa, um artista suisso, de quem Raczynski [Les arts en Portugal, 1847] falla com louvor: chamava-se Augusto Roquemont.

Educado em Itália, compellido talvez pela fortuna adversa, veiu em 1830, estabelecer-se em Portugal onde adquiriu nomeada e clientela entre a classe mais opulenta da nossa sociedade. Citavam-se com louvor os seus retratos do conde e da condessa de Farrobo, de Mr. Woodhouse, do Porto, do coronel Sarmento, depois visconde do mesmo nome, do barão e baroneza Lemercier, e dos quatro filhos do negociante inglez Hodgson, que por esses, que eram de corpo inteiro, e por mais dois de menores dimensões, lhe deu 95 moedas — 456$000 reis. Além dos retratos Roquemont também cultivava a pintura de género — os costumes populares.


Chafariz de Guimarães, Augusto Roquemont, 1847.
Imagem: Desde o tempo do barroco

Travar conhecimento com o pintor suisso, ser admittido a visital-o, e a frequentar-lhe o atelier, foi o sonho doirado de Annunciação, que estudava entregue a si — um sonho que elle nunca poude realisar. Roquemont não queria discipulos, nem desejava crear e educar rivaes, e, portanto, defendia os seus segredos, como o dragão das Hespérides os pomos dos seus jardins! Annunciação conseguiu ser recebido em sua casa, mas nunca o viu pintar!

Um dia, um morgado Lacerda, a quem o nosso artista dera em tempo lições de desenho, e que era admittido no templo do artista forasteiro, que lhe conhecia as posses, e por isso não o temia, veiu, enthusiasmado, contar maravilhas de um novo quadro que acabava de vêr — talvez um com camponezes do Minho, cantando e dançando ao som da musica — uma scena das populares e pittorescas romarias d'aquella nossa província, e de que o erudito critico allemão, já citado, falla também com grande louvor, dizendo, no artigo "Roquemont" do seu Diccionario, que é um excellente quadro de género, e o melhor que vira d'este artista. Na opinião de Lacerda era, pois, uma jóia d'arte, e Roquemont nunca fizera nada tão perfeito. Annunciação, ouvindo isto, largou-o, e partiu direito a casa do suisso, onde, apenas chegado, trocados os cumprimentos do estylo, abordou intrepidamente a grande questão do famoso quadro.

Roquemont escutou-o, sorrindo, e disse-lhe:

— Lacerda esteve brincando com o senhor. Deixe-o fallar. O senhor vae vêr o que eu fiz — levantando-se foi ao atelier, d'onde trouxe um quadro, que poz sobre uma cadeira.

A pintura era na verdade insignificante, e indigna dos elogios que lhe haviam feito. Annunciação não acreditou, todavia, nas palavras de Roquemont, e ficou convencido de que elle lhe occultava a sua obra, e que d'alli não tinha nada a esperar.

Paisagem e Animais, Tomás da Anunciação, 1851.
Imagem: MNAC

Tempos depois Lacerda disse-lhe que tinha em casa o quadro para o copiar, e prometteu deixar-lh'o vêr; porém, quando chegou o momento de cumprir a sua palavra, o que Annunciação viu foi a detestável copia que elle fizera; — o original, esse, Roquemont prohibira formalmente a Lacerda, sob pena de rompimento, que o mostrasse, fosse a quem fosse!

Esta anecdota, que ouvimos ao próprio Annunciação, pinta bem o estado da sociedade portugueza d'aquelle tempo, no que respeita a cultura artistica : parece que nos transportámos á Edade-media, em que os segredos da arte e da sciencia se conquistavam e se defendiam, ás vezes, a golpes de punhal!

Como havemos, então, de acceitar por boas e justas, comparações disparatadas entre os nossos artistas, que luctavam com todas as difficuldades accumuladas contra elles por uma civilisação atrazada e rachitica e os estrangeiros que já possuiam todos os elementos necessários para a sua educação, escolas, collecções, museus, amadores opulentos, estadistas apreciadores das artes, uma nação illustrada para publico, e uma imprensa jornalística competente, para lhes apontar os erros e para lhes apregoar os triumphos?

Arte Pintura Tomás da Anunciação Vista da Penha de França 1857.jpg

Foi em 1867 que Annunciação sahiu pela primeira vez de Portugal e visitou, á sua custa, a Exposição Universal de Paris. Acompanhou-o n'esta excursão o seu amigo e apreciado pintor de marinhas, o snr. Luiz Tomasini.

A viagem artistica, que elle estivera para levar a eífeito trinta annos antes, quando tudo lhe sorria, o amor da arte e o amor da vida, fel-a agora, quando os annos — ia entrar nos cincoenta — os trabalhos, e os desgostos, lhe tinham já anuveado e entenebrecido o horisonte, alquebrado o corpo e o espirito, transformando-lhe n'um presente melancholico e sombrio aquelle futuro, tão illuminado de resplendores e de glorias, que elle sonhara nos já saudosos dias da sua mocidade!

Eram passados os tempos. Não lhe fora concedido a elle — artista de raça — o que outros mais felizes, embora menos bem dotados, têem conseguido, — não poderá ir frequentar as escolas estrangeiras: vira-se conderanado a uma atmosphera sem luz, n'uma sociedade sem vida, mas onde se lhe deparavam, a todo o momento, os que voltavam de França, da Inglaterra, da Allemanha, da Itália, cheios de pretenções, mas tão vasios e desacompanhados de sciencia, que alguns até vinham mendigar penna alheia, que lhes historiasse as scientificas peregrinações!

Em Paris, cercado de todas as jóias da arte antiga e moderna, nos museus e nas salas da Exposição, sentiu elle bater o coração d'esse grande povo, que se chama a França; ali, quem lhe penetrasse no intimo, havia de o vêr contorcer-se n'essa angustia dolorosissima, oue as almas cheias d'aspirações soffrem, quando se sentem condemnadas á immobilidade ; ali viu quanto tinha perdido, quantas lições, quantos conselhos, quantos incitamentos, e quanta gloria podia alcançar n'esse vasto campo, onde elle então diria, como o Correggio, deante dos grandes mestres — Anch'io sono pittore.

Retrato de Tomás José da Anunciação por João Cristino da Silva, 1860.
Imagem: MatrizNet

Apresentado no mundo artístico, Annunciação frequentou o atelier de Yvon, o pintor de batalhas, então em todo o esplendor de artista cezáreo, e do notável animalista Palizzi, onde pintou um quadro, que nos dizem pertencer hoje á familia Palha. A despedida Yvon offereceu-lhe um magnifico desenho, representando um soldado ferido, que nós vimos no atelier do nosso artista na academia.

No Louvre, em Versalhes, e no palácio da Exposição, os artistas que elle mais estudou, foram os da especialidade que elle cultivava — os paizagistas ef os animalistas — Paulo Potter e todos os grandes pintores hollandezes, e os iniciadores da escola moderna — francezes e inglezes, Constable, Bonnington, Paulo Huet, Dupré, Theodoro Rousseau, Daubigny, Rosa Bonheur, Corot, Millet, não esquecendo os pintores bavaros, que tão brilhantemente se apresentaram n'aquelle certamen, onde não foram dos menos admirados.

Kaulbach com o seu grande cartão — A Época da Reforma — impressionou-o profundamente pelo grandioso da composição, e pelo desenho argo e firme das suas figuras. Ali o seduziu e prendeu o famoso Meissonier com os seus magistraes quadrinhos — umas figuras minusculas, acabadas com a largueza do toque, que se nota em todas as obras do famigerado pintor, e em frente das quaes a multidão dos visitantes se agglomerava, ávida de contemplar as maravilhas d'aquelle pincel privilegiado. Tudo elle viu, e de todos fallava, á volta, não sobranceiramente, mas, ao contrario, com grande respeito, e como excellente juiz, que era, em matéria d'arte ; mas entre todos foi Troyon o que elle mais admirou, Troyon, a quem a morte prostrara no meio da sua gloriosa carreira.

Quem conversou então com o nosso artista notou decerto que Annunciação, n'essa assembléa illustre dos reis da arte, não se achava indigno de figurar também, se melhores auras tivessem bafejado a sua vida.

Espirito progressivo foi-lhe lição o espectáculo, a que acabava de assistir, e de volta a Lisboa modificou o seu estylo, acompanhando assim a revolução, que se eífectuara em França no modo de reproduzir a natureza.

Surprehendeu a todos a rapidez com que elle operou esta transformação, e a perfeição magistral que desde logo attingiu nos seus primeiros ensaios, empregando um estylo muito mais largo, e em tudo conforme ao que observara nas obras dos primeiros pintores francezes.

Annunciação, conhecedor de todos os segredos da technica da sua arte, não precisava de tactear muito para acertar com a nova senda, e conquistar o primeiro logar entre os pintores animalistas da península. O Extraviado do rebanho, enviado á Exposição de Madrid, representa a ultima maneira do artista. As distincções com que ali o acolheram não foram de favor, foram justiça.

O Extraviado do rebanho, Tomás da Anunciação, 1871.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

O estudo que Annunciação fez para esse quadro tornámos a vêl-o, ha tempos, no atelier do nosso Raphael Bordallo Pinheiro. Que frescura e que vigor! É quasi acabado como o trabalho definitivo, tanto foi o amor, o afinco com que o artista o executou! Esta tela, uma das ultimas producções do mestre, e que alguns preferem ao próprio quadro, vale, a olhos fechados, cincoenta libras. Pois bem, Bordallo comprou-a no leilão das obras de Annunciação por... — custa-me até dizel-o — por oito libras !!

Assistimos a esse leilão. Frio — poucos amadores. — Quadros, esboços, desenhos, tudo arrastado.

Uma serie preciosa de estudos, que elle fizera na sua ultima veranagem em Caneças, e que o snr. conde de Almedina tanto ambicionava possuir, mas que o artista não quiz nunca deixar sahir do seu atelier, esses também lá foram, insultados pelo preço vilipendioso por que os venderam. Uma vergonha nacional, como o leilão de Lupi — outra vergonha também!

Ninguém sabia — dirão. Sabiam, porque o leilão fora annunciado nos jornaes, mas o artista estava morto... e os mortos ainda morrem mais depressa entre nós do que nos paizes estrangeiros! Ils vont encore plus vite! Oh! se vão!

O vitelo, Tomás da Anunciação, 1873.
Imagem: MNAC

Morto e portuguez!

— Que se quede em paz! disseram. E os ricos e as elegantes — os que o importunavam com pedidos, e os que o lisongeavam com cortezias — foram-se tomar sol, que também é grande artista, e dá os seus quadros de graça.

Este sol parece-me, ás vezes, que é o nosso maior inimigo! Se não, vejam a Inglaterra, a Allemanha, a Hollanda. Mais frio — mas incomparavelmente mais actividade, mais industria, mais riqueza, e mais amor ás artes, e casas mais confortáveis, e população mais civilisada! Tudo isto apesar, ou por causa dos nevoeiros!

Chega a gente a não gostar do sol!

Varinas com criança, Tomás da Anunciação.
Imagem: invaluable

Annunciação morreu em 1879: é, portanto, um contemporâneo nosso. Estão vivos a maior parte dos seus amigos, dos seus admiradores, dos seus discípulos; a sociedade em que elle viveu póde-se dizer que pessoalmente é ainda a mesma, e todavia é innegavel que, sob o ponto de vista artístico, ella soffreu uma transformação enorme. Se o mestre resuscitasse, veria com grande jubilo que os seus esforços e os da geração de artistas que o acompanhou, não foram perdidos; a semente lançada á terra germinou e produziu bom fructo, e o exemplo que elles deram de constância, a despeito das decepções, e muitas vezes dos aggravos, tem sido seguido pelos que os substituíram nas fileiras dos cultores e defensores da arte, tão rareadas pela morte.

Os dois capítulos da vida do illustre artista portuguez synthetisam-a, por assim dizer, porque abrangem o principio e o fim da sua carreira. Vemol-o primeiro, ávido de sciencia, procurar infructuosamente, na pratica da vida, surprehender, descobrir os segredos da arte que elle ignorava e sem os quaes não poderia progredir; e depois — passados vinte annos — já mestre respeitado, professor da primeira escola do paiz, rico da experiência adquirida com aturado estudo dos livros, das obras dos mestres que poderá aqui observar, e desse grande mestre, que se chama a natureza, vemol-o, pondo de parte vaidades estéreis, e orgulhos mal entendidos, acompanhar a escola franceza na senda em que ella se illustrou e em que conquistou com as suas obras immortaôs o primeiro logar na arte moderna.

O artista evolucionou, mas a sociedade portugueza, cujo amor á arte não tinha os mesmos finos quilates, essa não o acompanhou logo, chegando alguns a censurar o que, talvez n'elle, julgavam uma apostasia!

São passados vinte e quatro annos, e o gosto do publico, muito mais lento, também, finalmente, evolucionou. Na imprensa é raro o dia em que não se faz alguma referencia á arte e aos nossos artistas; formam-se e reformam-se associações, cujo fim é divulgar e dirigir o gosto, proteger os artistas, abrindo-lhes mercados, e convocando o publico a admirar as suas obras.

Esta renovação, esta resurreição da arte em Portugal, que oxalá seja uma data, que marque o inicio d'uma época, e se prolongue pelos séculos futuros, devemol-a aos esforços da primeira geração de artistas, que sahiu das Academias fundadas pelo grande estadista Passos Manoel em 1837, e o acto ofíicial que mais contribuiu para os resultados obtidos, foi a creação dos pensionistas, subsidiados pelo Estado em Paris e em Roma, para ahi completarem os seus estudos. Esta lei foi votada, se bem nos recordamos, quando o marquez de Sousa Holstein exercia o cargo de vice-inspector da Academia, e cremos que para a sua promulgação concorreram efficazmente as instancias e a influencia d'aquelle benemérito e illustrado funccionario. Foram esses pensionistas que nos emprazaram para os irmos encontrar nas salas da Escola de Bellas-Artes de Lisboa. Como nos antigos torneios ali achamos muitos artistas de todos os pontos do reino, e os que estavam em Paris também de lá enviaram as suas obras, para que o seu nome fosse representado n'este certamen.

Paisagem com figura e gado junto ao Castelo de Palmela, Tomás da Anunciação, 1865.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Era costume, nas justas da antiga cavallaria, que os que vinham manter o campo, e quebrar lanças pela gloria e pelo nome da sua dama, trouxessem divisas que os tornassem conhecidos. Entre os quadros que figuraram n'esta primeira exposição do Grémio Artistico, houve um onde lemos uma divisa celebre na nossa historia, divisa immortahsada pelo primeiro que entre nós a usou, e que foi o grande iniciador dos nossos descobrimentos e navegações — o infante D. Henrique. Apesar de redigida em francez, é portugueza, é nacional.

Quatro palavras apenas, que encerram um programma, uma aspiração de todos os grandes espiritos — Talent de bien faire!

Esta é, e esperamos que continue a ser a divisa da sympathica e brilhante Ala dos Namorados da arte, que já conquistou os nossos applausos, e que ha de inflorar o seu estandarte com as coroas de muitos outros triumphos! (1)


(1) Zacharias d'Aça, Lisboa moderna, Lisboa, Viuva Tavares Cardoso, 1907

Museu Nacional de Arte Contemporânea:
Tomás da Anunciação

Biblioteca Nacional de Portugal:
Obras digitalizadas de Anunciação, Tomás José da

museu virtual ulisboa:
ficha de autor
coleção de desenho
coleção de gravura

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