segunda-feira, 11 de setembro de 2017

Velhas lembranças, François d'Orléans, 1842 (2 de 5)

Por fim, o rei Fernando leva-nos a uma caçada em Mafra, nas montanhas pouco elevadas, mas acidentadas com cumes verdes de vegetação retorcida, que se estente do lado de Torres Vedras. Muito pitoresca esta caçada em lugares montanhosos, frequentemente muito belos, e onde temos sob os nosso olhar quadros que parecem cenas de guerrilhas, uma guerra de "partisans".

Mafra, François d'Orléans, prince de Joinville, 1843.
Imagem: artnet

Centenas de batedores, em roupa brilhante, calções, lenços ao redor da cabeça, capa dobrada sobre o ombro, uma espingarda ou um bastão na mão, subiam os desfiladeiros, seguiam com rapidez ao longos das veredas e batiam sobre os caçadores uma multidão de gamos, veados, javalis, raposas.

Já o sol se tinha posto e o tiroteio ainda continuava.

Mas nós, Aumale e eu, estávamos ansiosos por ver algo diferente de Lisboa, dos seus prazeres, da sua vida oficial e política de Portugal; no regresso desta caçada, fizemo-nos à estrada numa excursão caprichosa em que contávamos chegar até Coimbra, a antiga e celebre cidade universitária.

Sendo ainda primitivas no país as vias de comunicação, viajamos a cavalo, escoltados por um ex-capitão do Estado-Maior francês, ajudante de campo do duque de Raguse em 1830, que foi, por parte seu tio, [Jean-Guillaume] Hyde de Neuville, marquês de Bemposta em Portugal e, finalmente, ajudante de campo do rei Fernando.

Formamos uma caravana em que um almocreve nativo empreendeu o transporte. 

Ilustração: Vieux souvenirs.

No primeiro dia, atravessamos uma espécie de deserto com má reputação coberto de charnecas a perder de vista; são os últimos contrafortes da Serra da Estrela [sistema Montejunto-Estrela], uma longa cadeia de montanhas que começa em Espanha, perto de Segóvia e Avila.

Creek of Maceira, Sketches of the Country, character, and Costume William Beckford, 1808-1809.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Ao atravessar um desfiladeiro selvagem num lugar chamado Mecheira [Maceira], encontramos um bando de gente de má cara que pareciam caçar descuidadamente, com as espingardas ao ombro; nós éramos numerosos e estávamos bem armados; suponho que nos consideraram uma caça demasiado grossa.

Ilustração: Vieux souvenirs.

Suponho tanto mais porque, um pouco mais adiante encontramos patrulhas de cavalaria, enviadas apressadamente, já que alguns viajantes tinham sido roubados em Mecheira [Maceira] nessa manhã.

Dois dias de marcha levam-nos a Alcobaça [Batalha], Aljubarota. 

Observem todos esses nomes em "al", os mouros passaram por aí. Aljubarota é celebre pela batalha que, em 1385 [14 de agosto], fundou a autonomia da monarquia portuguesa. O exército do grande Mestre da Avis, Dom João, teve que lidar com um exército espanhol que usava artilharia (a espingarda de agulha daquela tempo), algo desconhecido para os portugueses.

Estes tinham o vento, o sol, a poeira contra eles, mas apoiados pelo espírito nacional, o exemplo de Dom João e o bispo de Braga [D. Lourenço Vicente], que percorria as fileiras de elmo na cabeça e lança em punho, puseram em fuga o exército da Espanha, cujo rei apenas parou em Sevilha.

Batalha de Aljubarrota, 14 de agosto de 1385.
Imagem: História de Portugal

Quanto ao grande mestre de Avis, que se tornou rei, fundou, em memória de sua vitória, o convento e a igreja da Batalha, que visitamos.

Vista do Convento da Batalha, Henri l'Évêque, 1812.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Não sei descrever monumentos, não sou arquiteto, mas as grandes coisas impressionam-me sempre, e a Batalha é incontestavelmente grande, simples, severa, com esse carácter religioso que procuro em vão nas igrejas do nosso tempo.

Mosteiro da Batalha, Capela do Fundador Túmulos dos Infantes.
Plans Elevations Sections and Views of the Church of Batalha, Frei Luis de Sousa, James Murphy, 1795.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O portal delicado e maravilhosamente conservado representa o paraíso terrestre, e todas as estátuas dos santos são também pequenas obras de arte. Atrás da igreja, uma capela começada por Dom Manuel não pôde ser concluída, e é uma grande pena ao julgar por aquilo que existe. Há aí esculturas de uma finura inaudita, quase confundiriamos quase com teias de aranha.

Mosteiro da Batalha, Alçado Poente (detalhe, porta lateral).
Plans Elevations Sections and Views of the Church of Batalha, Frei Luis de Sousa, James Murphy, 1795.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Infelizmente, os vândalos vieram; os vitrais desapareceram, uma multidão de estatuetas deixaram os seus nichos, oferecidas aos amadores ou aos turistas de passagem. Ao lado da igreja é o convento, semelhante no estilo do claustro ao de Belém.

Batalha, Book of paintings made in Portugal John Millington Synge (1871-1909)..
Imagem: Europeana

Aí vemos uma sala gótica gigantesca que achei soberba. Diz-se que três vezes a abóbada desabou e que, reconstruída pela quarta vez, o arquitecto colocou-se por debaixo no momento em que o andaime era derrubado. 

Mosteiro da Batalha, Interior da Igreja.
Plans Elevations Sections and Views of the Church of Batalha, Frei Luis de Sousa, James Murphy, 1795.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A abóboda resistiu, então ele mandou esculpir a sua figura sobre um dos pendentes das ogivas, e não é uma das estatuetas menos bonitas que contém este admirável monumento, que ainda é mais admirável a meus olhos, porque é virgem de toda a restauração bárbara. (1)



(1) François d'Orléans, prince de Joinville, Vieux souvenirs: 1818-1848, Paris, C. Lévi, 1894

Versão inglesa:
François d'Orléans..., Memoirs..., London, W. Heinemann, 1895

Leitura adicional:
Outros escritos de François d'Orléans
Mousinho de Albuquerque, Memória inédita.. da Batalha, Leiria, Typ. Leiriense, 1854
James Murphy, Plans... Batalha, James Murphy, London, I. & J. Taylor, High Holborn, 1795

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