sexta-feira, 8 de setembro de 2017

A familia do rei Clemente

Ha um quadro de Debret, reproduzido n'uma excellente gravura de Pradier, que representa a família real portugueza no Brazil (com excepção das senhoras D. Maria Izabel e D. Maria Francisca, já a esse tempo residentes em Hespanha) por occasião do desembarque no Rio de Janeiro, 6 de novembro de 1817, da primeira mulher do príncipe real D. Pedro.

Estudo para Desembarque de Dona Leopoldina no Brasil, Jean-Baptiste Debret.
Imagem: Warburg

D. João VI sobe ao coche real, olhando ainda para a côrte. D. Carlota Joaquina está junto ao coche. D. Pedro e D. Leopoldina parecem trocar as primeiras amabilidades de noivos que se cumprimentam. 

Em linha, sobre o caes, estão D. Miguel, um sympathico rapazinho de quinze annos, D. Maria Thereza, D. Izabel Maria, D. Maria d'Assumpção e D. Anna de Jesus Maria.

Desembarque de Dona Leopoldina no Brasil, gravura de Charles-Simon Pradier segundo Jean-Baptiste Debret.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os altos dignitários do Paço fazem assitencia á família real, distribuídos em grupos: encontram-se ali, pois, os retratos dos marquezes de Castello Melhor, Angeja, Bellas e Vallada; da condessa de Kimbourg, dama de D. Leopoldina; dos condes de Vianna, Figueira, Valladares, Cavalleiros, Paraty e Villa Nova; do visconde d'Asseca; do bispo de Goiaz, etc. (1)

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Os filhos da minha filha, 
meus netos são. 
Os filhos da minha nora, 
serão ou não. 
Provérbio portuguez


A duqueza de Abrantes, Laura Permon, referindo-se á familia de D. João VI, observa: "O que é de notar é que nesta familia não há uma criança parecida com a sua irmã ou com o seu irmão." Esta variedade de typos explica-se facilmeute pela variedade dos pais.

Retrato de D. João VI, Rei de Portugal, c. 1802-1806,
cópia de um original perdido de Domingos A Sequeira
Imagem: Wikipédia

Passa como certo que dos nove filhos que D. Carlota Joaquina dera á luz, apenas os primeiros quatro tiveram por pai D. João VI. Foram D. Maria Theresa, D. António que morreu creança, D. Maria Isabel, rainha de Hespanlia, e D. Pedro IV.

Já não tem tanta razão a duqueza de Abrantes quando acha aquellas duas infantas, e as outras, "ni bien ni mal". N'esta apreciação, o desdém da mulher sobrepoz-se á imparcialidade da escriptora.

Algumas das filhas de D. Carlota Joaquina foram muito interessantes; nenhuma d'ellas era displicente como a mãe. Receberam escassa instrucção, como os irmãos [...]

Todas sahiram hystericas como a mãe. N'uma ou outra a diálhese hereditária accentuou-se mais. D. Izabel Maria era um feixe de nervos. Se estivesse com um braço estendido no momento de começar a detonação de uma salva de artilheria, conservava-se immovel, n'essa posição, até que terminasse a salva. Sobrevivem ainda pessoas, que presencearam este e outros factos similares.

D.  Carlota Joaquina, Nicolas-Antoine Taunay, 1817.
Imagem: Wikipédia

O hysterismo explica muitas complicações da vida das infantas. A falta de educação e de bons exemplos domésticos obstou a que a nevrose hereditária tivesse um coefficiente de correcção [...]

O viver intimo do Paço resentia-se da desorganisação da família real. Não havia essa serenidade que resulta da harmonia domestica, e que constitue a poesia do lar. Faltava a decência, base da dignidade da família. 

Até de commodidades havia falta. Os quartos das infantas quasi não tinham mobília, careciam em absoluto dessa attracção do interior, que prende o espirito á família e á casa.

Divertimentos, poucos. Theatro, algumas vezes; toiros, frequentemente. Em Salvaterra, quando a família real lá estava, havia ambas as coisas. Ali, em Salvaterra, pode dizer-se que o infante D. Miguel vivia numa permanente toirada. 


Quando não picava na praça, divertia-se introduzindo um toiro pelos corredores do Paço. As infantas e as senhoras da corte fugiam gritando. O espirituoso conde de Sabugal disse numa das suas composições poéticas, alludindo a isto, que em Salvaterra havia sempre "vacca viva".

Como se vê, os divertimentos daquella corte, originalíssima na sua decadência, não eram de geito a subtilisar o espirito, nem a amenísal-o [...]

Espectáculo de Titires em Lisboa, Nicolas Delarive.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

No Paço do rei [Palácio da Bemposta, tanbém conhecido por Paço da Rainha, como que por ironia] e no Paço da rainha [Queluz], pessoas de baixa estofa eram admittidas a intimidades, davam leis, discutiam politica.

O Tarrobuzo, reposteiro, José de Vagos, cosinheiro, os criados das cavalhariças, taes como os picadores Pedro Garrocho, João Rapozo, o Cambaças e outros, ao serviço da rainha, invectivavam publicamente o rei e o governo, todos elles se haviam distinguido mais ou menos no movimento de abril.

A exemplo da criadagem do Paço, a gentalha das ruas andava por botequins e bilhares suciando com elles. 

Nicolas Delerive, Mercado da Praça da Figueira.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Havia sempre grande fallacia no bilhar do Abbade ao Passeio, na loja de bebidas do Francisco Maneta ao largo do Soccôrro, no retiro do Cabeço da Bola, no botequim do Friza á esquina da rua das Pretas, ele.

Os soldados da marinha, do exercito e da policia confraternisavam com a sucia do Paço e outra ralé em varias lojas de bebidas, especialmente nas da rua direita do Loreto, que quasi se defrontavam.

Estabelecia-se assim um fluxo e refluxo de dichotes de calão, de observações picarescas e obscenas, que vinham do Paço ou entravam no Paço por intermédio dos cosinheiros, dos picadores, dos sotas.

As infantas conheciam a linguagem das lojas de bebidas, as chulices da espelunca do Maneta e dos botequins do Loreto. De mais a mais, sua mãe nunca tivera papas na lingua, habituara-as a fallar com liberdade. O próprio rei costumara-se desde pequeno a chamar ás coisas pelo seu nome. O mano D. Miguel usava a giria dos seus companheiros predilectos.

Feira das Bestas (detalhe), Nicolas Delarive [Delerive] (detalhe), Col Olazabal.
in José Mattoso, História de Vida Privada em Portugal, vol. II.
Imagem: Os africanos em Portugal...

A corte era isto, uma casa sem rei nem roque, onde toda a gente dizia e fazia o que queria. Como não havia festas, que educassem o espirito pelo respeito das conveniencias sociaes, vivia-se da bisbilhotice, de saber o que a rainha dizia do rei, e o que o rei dizia da rainha.

Em Queluz tudo corria do mesmo modo. D. Carlota Joaquina rodeiava-se de militarões, de criados, de intriguistas [...] (2)

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D. Maria Thereza, a primogénita, que foi sempre a predilecta de D. João VI, casou em primeiras núpcias (1810) com o infante D. Pedro Carlos de Hespanha, e em segundas núpcias (1838) com o infante D. Carlos. Viuva duas vezes, morreu em 1874.

D. Maria Teresa, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

Sempre muito absolutista, defensora acérrima do antigo regimen, escrevia de Cadiz, em 25 de junho de 1823, a um alto personagem de Lisboa, applaudindo às mãos ambas a restauração de Villa Franca: "Não posso deixar de dizer-lhe que tive a maior alegria quando soube a heróica resolução do mano Miguel, graças a Deus que tenho um irmão que soube ser bom filho, e bom vassalo." [...]

D. Maria Thereza foi a mãe do infante de Hespanha D. Sebastião.

D. Maria Izabel e D. Maria Francisca casaram em Hespanha, em 1810, a primeira com Fernando VII, a segunda com o infante D. Carlos.

D. Maria Francisca de Assis, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

Também a senhora marqueza de Rio Maior possue um excellente retrato de D. Maria Izabel: nutrida, branca, rosada. Um ar de bondade, bonacheirão como o de D. João VI, dulcifica-lhe o aspecto. Realmente, D. Maria Izabel foi boa, virtuosa.

D. Maria Isabel, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

Apenas logrou as honras de rainha de Hespanha durante dois annos. Morren em 1818, de um modo horrível. Estando gravida, tivera um accidente. Um inhabil medico de Fernando VII, julgando-a morta, fez-lhe a operação cezariana, para salvar a creança, cortando á vontade, largo e fundo.  A rainha tornou a si, e morreu dilacerada com atrocíssimas dores [...]

Antes de D. Maria Izabel havia nascido D. António, que apenas durou seis annos.

Retrato póstumo do Príncipe da Beira, D. António Pio,
atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

D. Pedro, mais velho que D. Maria Francisca, nascera a 12 de outubro de 1798.

Pedro de Alcântara, Príncipe da Beira,
pintado por sua tia D. Maria Francisca Benedita em 1804.
Imagem: Google Arts & Culture

Era, ao tempo da invasão franceza, uma bonita creança de nove annos. "Joli garçon" lhe chama a duqueza de Abrantes, referindo-se approximadamente a essa epocha.

Na mocidade pintam-n'o branco, rosado, vivaz nos olhos, alto, desempenado como um pinheiro novo, saudável e destro [v. Google Arts & Culture ].

Intellectualmenle, não se avantajava muito a seu irmão D. Miguel: tinha porém um certo pendor, não convenientemente cultivado, para as bellas-artes. Amava a musica, como um bom Bragança, e de vez em quando perpetrava versos, d'ouvido.

A sua educação litteraria foi descurada, como a dos outros filhos de D. Carlota Joaquina. As cartas de D. Pedro são por vezes incorrectas, até na orlhographia [...]

D. Izabel Maria, que ficou regente do reino por morte do pae, foi uma bonita mulher. Mr. Hyde de Neuville faz-lhe esta referencia nas suas Memorias: "était fort jolie; son visage exprimait en même temps l'intelligence et la beauté."

D. Isabel Maria, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

Era, como jà dissemos, um perfeito exemplar de hysterismo. Acabou beata, rodeiada de padres, dois dos quaes, inglezinhos, herdaram os seus haveres. Morreu solteira, em 1876, e septuagenária. [...]

Depois de D. Izabel Maria, nasceu o infante D. Miguel, que terá menção especial, como o ultimo rei absoluto que se sentou no throno portuguez. É em torno do seu perfil histórico que se mobilisarão as restantes paginas deste livro.

D. Maria da Assumpção, nascida em 1805, foi sempre fraca, muito nervosa. Inspirou vários devaneios; e diz-se que o marquez de Loulé, depois seu cunhado, a namorara também.

D. Maria da Assunção, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

Ella e D. Izabel Maria acompanharam sempre D. Miguel, emquanto reinou em Porlugal. A voz publica accusou esta princeza de uma grave falta; chegou a dizer-se que morreu de parto.

O fado é excessivamente hediondo, para que, não podendo provar-se, insistamos em commental-o. Que morrera de cólera, diziam alguns. [...]

D. Anna de Jesus Maria, a predilecta da mãe, casou em 1 de dezembro de 1827, em Queluz, na presença da rainha, com o marquez de Loulé, "cujos amores com a infanta eram notórios". 

D. Ana de Jesus Maria, atrib. Nicolas-Antoine Taunay, 1816.
Imagem: Parques de Sintra

D. Izabel Maria, regente do reino, não deu auctorisação para o casamento. Mas a vontade da rainha, que protegia estes amores, prevaleceu.

O marquez, filho do que apparecêra morto em Salvaterra, era um homem elegante, de uma gentileza fidalga, de um porte verdadeiramente aristocrático, no que sahia ao pae, que tinha sido um feio distinctissimo. Ainda depois de velho conservava salientes vestígios d'esse ar altivo e nobre, que tanto havia impressionado as mulheres do seu tempo.

Tem-se dito que D. Miguel levara a mal este casamento, e odiava o marquez. É certo que os noivos fugiram do reino antes de D. Miguel chegar [...]

Tendo abrangido em grupo a família de D. João VI, especialmente as infantas, duas das quaes ainda nos apparecerão na corte de D. Miguel, uma impressão nos fica decerto: que a felicidade não foi património d'esta familia de contrabando.

Das três que casaram em Hespanha, a mais feliz seria a que morreu primeiro, a rainha [Maria Isabel]. 

Maria Thereza arrastou até á longevidade uma existência cortada de nervosismos. 

Maria Francisca, mulher do pretendente D. Carlos, andou por Portugal com o marido e tres filhos, correndo aventuras politicas, fugindo á perseguição do general Rodil, até que pela convenção de Evora-Monte teve de embarcar sob a protecção da Inglaterra na hora em que a causa das duas sobrinhas, Izabel II e Maria II, supplantou a dos dois tios, D. Carlos e D. Miguel.

Izabel Maria, a regente constitucional de [18]26, a companheira inseparável de D. Miguel absoluto, veiu de Elvas para Bemfica, quando o exercito realista depoz as armas, e em Bemfica se immobilisou tomando de longe o cheiro ao constitucionalismo, que lhe não lisonjeava o olfato, nem aos padres e miguelistas que a visitavam.

Maria da Assumpção, morta aos vinte e nove annos, ficou apodrecendo ao abandono na egreja do Santíssimo Milagre.

A mais nova, Anna de Jesus Maria, desposando o gentil marquez, que todo o mundo alcunhava de Sorte grande, não foi tão feliz na loteria do casamento, como aquella alcunha parecia prometter [...]

Não foi mimoso da sorte aquelle interessante bouquet de infantas realistas.

Kssssse! Pédro - Ksssse! Ksssse! Miguel! Gravura, Honoré Daumier, 1833
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Pelo que toca aos dois irmãos, Pedro e Miguel, o capricho da má fortuna accentua-se salientemente no facto de um, o vencedor, ter morrido logo após a victoria, e o outro, o vencido, ter sobrevivido á derrota durante longos annos de exilio. (3)


(1) Alberto Pimentel, A ultima côrte do absolutismo em Portugal, Lisboa, Liv. Férin, 1893
(2) Idem
(3) Idem, ibidem

Ligações:
D. Pedro IV (1798-1834), Google Arts & Culture
D. Miguel I (1802-1866), Arquivo Municipal do Porto
Miguel (D.), Dicionário histórico
Infanta..., Biblioteca Nacional de Portugal
Sereníssima Casa de Bragança, Pinterest
Missão Artística Francesa

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