segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Manoel da Silva Passos, Lisboa 1836

A derrota julgou-se certa, e para lhe attenuar a aspereza occorreu a idéa de uma conciliação. Para isto é que se chamou a Belém Manuel Passos.

Manuel da Silva Passos (1801-1862) 01.jpg
Imagem: issuu

Este, logo que chegou ao paço de Belém, foi recebido pela rainha, que se achava rodeada por muitos pares do reino, conselho d"estado, generaes, corpo diplomático, príncipe D. Fernando, infanta D. Izabel Maria e a imperatriz duqueza de Bragança.

Beijando respeitosamente a mão de sua magestade, disse que vinha da parte dos súbditos d'ella receber suas ordens. Então pela rainha fallaram lord Howard de Walden [Charles Ellis], mr. [Jean-Sylvain] Van de Weyer [v. Léopold I et le Portugal. Une mission de Van de Weyer en 1836], o conde de Villa Real, o conde de Lavradio e o duque de Palmella.

Nem um só dos ministros nomeados usou da palavra. Aquelles nas suas exposições sustentaram que a rainha não queria que a Carta fosse derogada, mas que estava disposta a consentir em que a mesma se reformasse.

Lord Howard, esse foi mais longe, pois chegou a ameaçar com o poder de Inglaterra.

Charles Augustus Ellis 6th Baron Howard de Walden.
Imagem: The Things That Catch My Eye

Manuel Passos, dirigindo-se a sua magestade, disse que fora nomeado ministro para promover a reforma da constituição de 1822 e não da Carta de 1826;

que esta constituição tinha servido para á sombra d'ella se fazerem os maiores desbarates na fazenda publica, e que o paiz não podia realisar as garantias que offerecia; que aos ministros anteriores a 10 de setembro é que sua magestade tinha confiado a guarda da Carta e não a elle;

que dessem esses ministros a sua magestade conta do modo como a tinham defendido; que se a Carta fora abolida por uma facção, eram elles responsáveis por terem cedido diante de uma minoria; se o fora pela nação, não era esta obrigada a ter as constituições que os ministros quizessem, mas as que lhe convinham;

que descansasse sua magestade, que a nova constituição havia de satisfazer a todos; que sua magestade havia de ter todas as prerogativas que tinha a rainha de Inglaterra; que haveria duas camaras, o veto absoluto e o direito de dissolução.

Voltando-se para mr. Van de Veyer, disse:

"Se fizermos uma constituição como a da Bélgica vós não a podeis achar má."

Sylvain van de Weyer, segundo Wappers, década de 1830.
Imagem: Wikimedia

E respondendo a lord Howard disse:

"Que não eram os inglezes que podiam dar lições de lealdade aos portuguezes, que sempre tinham amado os seus reis; Portugal era uma nação independente, que não devia sujeição a nenhum povo da terra, e que elle não estava disposto a consentir no governo do seu paiz a menor influencia estranha;

Penico John Bull, Rafael Bordalo Pinheiro, 1897.
Imagem: Cabral Moncada Leilões

que a nação portugueza, pelo principio da soberania nacional, elevára ao throno a casa de Aviz e a de Bragança, que por este principio os portuguezes podiam fundar uma republica, como a Hollanda ou a Suissa, e mudar de dynastia.

Mas que elles não queriam senão reformar as suas instituições politicas, como os francezes fizeram em 1830, e os inglezes com o bill dos catholicos e reforma do parlamento; que os inglezes e francezes tinham fundado a republica, mudado de dynastia e justiçado os seus reis, e que não eram por isso estas nações as que estavam mais habilitadas a dar-lhes lições de fidelidade monarchica;

La révolution de 1830, François d'Orléans, prince de Joinville.
Imagem: Sotheby's

que elle era muito admirador da Inglaterra, que a estimava como a pátria de Canning, de Fox, de Bentham, como a terra do jury, da imprensa livre e dos parlamentos; que tinha meditado e estudado as suas instituições, fazia todos os esforços para introduzir as melhores no seu paiz, mas que as leis de Inglaterra haviam de ser importadas em navios commerciantes, para terem despacho nas alfandegas de Portugal;

porque se fossem trazidas em navios de guerra, e pelos seus publicistas de farda vermelha, não lhes serviriam senão para fazer cartuchos, e que assim as tornariam a enviar; que não receiava uma esquadra, porque não podia arremessar sobre Lisboa mais bombas e balas rasas, do que elle já vira em cima do Porto; 

que a Inglaterra devia considerar qual foi o desgraçado resultado da sua expedição de sir John Norris e de sir Francis Drake [Account of operations during Sir John Norris and Sir Francis Drake's Portugal expedition], e que na guerra da península nunca pude pôr em campo mais do que trinta mil homens, e que com trinta mil homens não se submette Portugal;

que elle esperava que sua magestade tivesse assas dignidade para rejeitar os offerecimentos da Inglaterra, porque os não necessitava, bastando-lhe o amor do seu povo; que elle esperava que emquanto a nação poríugueza seguisse os seus conselhos, nem Portugal seria uma prefeitura de Inglaterra, nem sua magestade um alto commissario das ilhas Jonias [v. O Panorama n° 72, 15 de setembro de 1838]".

Declarando a firme resolução de bater os inglezes se desembarcassem, Passos Manuel voltou-se para a rainha e disse: "Vossa magestade pôde vir para o campo de Ourique, onde será recebida com as maiores demonstrações do nosso amor e lealdade". 

E voltando-se para os generaes presentes: — Senhores, a Inglaterra ameaça-nos. Não temo as suas ameaças. 

Mas não quero que nenhum portuguez se deshonre. Srs. generaes, o vosso logar é no campo de Ourique, á frente dos portuguezes que pelejam pela independência da pátria. Ahi sereis recebidos como amigos, como camaradas e como porttuguezes. Estou certo que nenhum de vós ha de faltar á sua pátria.

*
*     *

As palavras de Passos Manuel irritaram sobremaneira o príncipe D. Fernando, que approximando-se de Manuel Passos, disse-lhe: "Monsieur le roi Passos! comment vont vos sujets a Lishonne?" 

D. Fernando.
Imagem: Museu de Lisboa

Passos Manuel respondeu serenamente: "Não tenho subditos. Em Lisboa só ha súbditos fieis a sua magestade a rainha".

Acudiu o príncipe: "Mas que lhe não obedecem".

"Porque sua magestade manda o que não pôde, ou o que não deve...", replicou Passos Manuel.

Manuel da Silva Passos (1801-1862).
Imagem: issuu

A discussão ia-se azedando mais e mais, quando uma das pessoas presentes se dirigiu a Manuel Passos e fez-lhe ver a necessidade de acabar com a triste situação em cjue se achava a rainha. Ao que elle respondeu: "O meu sangue e a minlia vida, pertencem a sua magestade. Salval-a, honral-a e restituil-a ao amor do seu povo é o meu maior empenho. 

Estou prompto para fazer a bem de sua magestade tudo quanto possa. Evitar a effusão de sangue portuguez foi sempre o meu mais vivo desejo. Mas eu espero que os cavalheiros que se acham aqui sejam recebidos pelos meus amigos como irmãos, e que nenhuma recordação das nossas dissensões possa existir."

Logo em seguida a rainha nomeou para tratarem com elle e Sousa Saraiva o duque de Palmella, marquez de Saldanha e conselheiro Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato.

Diz-se que este por essa occasião dissera á rainha, que, depois do que tão imprudentemente tinha feito, devia abdicar, e que a não succeder assim, para poder continuar a reinar não havia outro recurso senão o entregar-se á generosidade de Manuel Passos. 

Reunidos todos, Manuel Passos disse que a base do projectado accordo se devia cifrar n'isto:

"Haverá uma perfeita reconciliação entre os súbditos de sua magestade a rainha; todos lhe foram igualmente fieis e addictos á liberdade. O véu do esquecimento será lançado sobre as nossas dissensões constitucionaes.

Nas luctas civis ninguém peccou. Todos somos súbditos fieis da rainha; todos liberaes. As cortes constituintes reformarão não só a constituição de 1822, mas também a Carta de 1826."

Não se podendo chegar logo a accordo, os representantes da rainha entregaram a Manuel Passos a seguinte proposta, que elle recebeu para apresentar no campo de Ourique aos commandantes das forças ali reunidas:

"1.ª Que se convocarão immediatamente cortes geraes com representantes munidos de poderes especiaes para fazerem na Carta de 1820, e na constituição de 1826 as alterações que julgarem necessárias para assegurar a liberdade legal da nação portugueza, as prerogativas da corôa de sua magestade a senhora D. Maria II, e que sejam conformes com os princípios adoptados nas demais monarchias constitucionaes da Europa.

Lisboa, Praça do Rossio no dia 1 de outubro de 1820. Entrada solene da Junta Provisória do Porto.
Imagem: Histórias com História

2.ª Que a camara de pares, tal qual se achou constituída antes do dia 10 de setembro passado, votará sobre as mesmas alterações, salvo na parte qne possa dizer respeito á organisação da mesma camará.

3.ª O respeito e amor â rainha são sentimentos vigentes no peito de todos os poríuguezes constitucionaes, quaesquer que tenham sido até o presente as dissidências de opinião sobre a organisação politica; e elles se consideram como igualmente unidos para o futuro nos desejos de manter a paz e de assegurar a liberdade nacional sobre as bases de uma monarchia representativa.

4.ª Ficam dependendo de approvação posterior estes artigos combinados pelos commissarios. 

Paço de Belém, em 4 de novembro de 1836.

(Assignados) Duque de Palmella, Marquez de Saldcuiha, Francisco Manuel Trigoso de Aragão Morato."

Na volta para Lisboa Manuel Passos correu grave risco de ser assassinado, pelo menos disse-se isto então com muita insistência. 

A demora em Belém poz em sobresalto os revoltosos do campo de Ourique, onde os boatos mais encontrados principiaram a ser espalhados.

Paço Real de Belém.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

A anarchia generalisava-se, e para que se não repetissem, e agora em mais larga escala, as scenas de Alcântara, o marquez de Ficalho e Anselmo José Braamcamp, aquelle camarista da rainha e este um dos mais considerados e respeitáveis cavalheiros de Lisboa e. membro da regência do reino em 1821, foram procurar o visconde de Sá da Bandeira, e pediram-lhe para que se não recusasse por mais tempo pòr-se á testa do movimento popular, assumindo quanto antes o commando da guarda nacional, a fim de impedir o desenvolvimento da anarchia que ameaçava a capital. 

O visconde de Sá accedeu ao pedido, e na própria carruagem de Anselmo Braamcamp se dirigiu para o campo de Ourique.

Logo á sua chegada o visconde de Sá salvou a vida ao commissario em chefe do exercito Luiz José Ribeiro, que corria o grave risco de ser assassinado pela populaça armada que ali estacionava. 

A junta governativa instou novamente com o visconde de Sá paia que acccitasse o commando da guarda nacional, ao que elle respondeu que o faria, mas sob a condição dos batalhões nacionaes cumprirem fielmente as suas ordens, e que logo que as deixassem de cumprir immediatamentc aliandonaria o commando.

Estas condições foram acceitas com entluisiasmo por todos os batalhões da guarda, que vendo-se com um chefe tão experimentado como bravo, de novo principiaram a gritar:

A Belém! a Belém! 

A agitação era extrema. "Resistir á vontade geral era n'este momento querer o impossível", disse annos depois o próprio visconde de Sá. 

Uma marcha inmiediata sobre Belém tinha graves riscos, pois alem da grande exaltação em que se encontrava a guarda nacional havia a temer os desvarios da populaça, que necessariamente a havia de seguir, e que nenhuma auctoridade seria capaz de conter, muito principalmente depois do assassínio de Agostinho José Freire.

Para evitar aquelles perigos era necessário demorar a marcha da guarda nacional o mais que fosse possível. Para isso dividiu as forças em três columnas, uma das quaes fez logo marchar para a ponte de Alcântara, caminho de Belém, onde ficaria sob as armas até elle ordenar outro qualquer movimento, devendo as outras duas irem tomar posições nas vizinhanças d'aquelle ponto. 

Aos respectivos commandantes ordenou que dessem licença ás praças para irem a suas casas tomarem algum alimento, lembrança acertada que tornando muito demorada aquella marcha, fez passar o resto do dia sem maior novidade.

Era já noite quando a guarda nacional chegou á ponte de Alcântara. O visconde de Sá estabeleceu aqui o seu quartel general? Em Belém o desanimo era enorme; parte da tropa de linha que ali se achava principiava a manifestar-se pelas que em Lisboa sustentavam o ministério setembrista.

Não havendo portanto confiança na força, como se podia confiar na victoria da contra-revolução, seriamente ameaçada pela reacção da capital? 

Ou receiosa de qualquer enxovalho, ou porque quizesse intimidar os setembristas em armas, a rainha pediu auxilio immediato ao commandaiite da esquadra ingleza, que logo fez desembarcar na praia da Junqueira uns seiscentos ou setecentos soldados do seu commando.

Henri L'Évêque, Vista da Cidade de Lisboa tomada da Junqueira.
Imagem: ComJeitoeArte

Isto deu-se ás duas horas da madrugada do dia 5. N'este meio tempo chegava a Lisboa Manuel Passos com as propostas da commissão de Belém.

A junta revolucionaria reuniu-se immediatamente para deliberar, e ouvidos os commandantes de alguns corpos da guarda municipal e outras pessoas affectas ao setembrismo, assentou-se enviar a Belém o seguinte documento:

"1.° Reunir-se-hão quanto antes as cortes geraes, convocadas pelo decreto de 8 de outubro, mas os representantes virão munidos de poderes especiaes para fazerem na constituição de 1822, e na Carta de 1826, as alterarôes que julgarem necessárias para assegurar a liberdade legal da nação portugueza, as prerogativas da coroa de sua magestade fidelissima a senhora D. Maria II, e que sejam conformes com os principios adoptáveis nas demais monarchias constitucionaes da Europa.

S.M.I. o Senhor D. Pedro restituindo sua Augusta Filha a Senhora
D. Maria Segunda e a Carta Constitucional aos Portugueses,
Nicolas-Eustache Maurin,1832.
Imagem: Wikipédia

As modificações admissíveis e adoptáveis na Carta de 1820 nunca podiam rejeitar-se, e até não contrariam o juramento ultimamente prestado. Por isso voluntariamente n'ellas convém os abaixo assignados.

2.° Os actos governativos desde 10 de setembro, com especialidade os decretos de execução permanente, serão garantidos. 

3.° Pede-se a sua magestade fidelíssima se digne nomear um ministério de inteira confiança da nação. 

4.° O desejo geral de todos os poríuguezes é assegurar as liberdades publicas e conservar as prerogativas da coroa e a dignidade do throno. 

Preenchidos estes dignos fins, nenhum sacrilicio lhes será custoso, e prestarão ao governo todo o apoio que possa depender dos cidadãos. 

A harmonia entre todos os portuguezes, a ordem publica e a segurança individual são os objectos dos mais ardentes desejos de todos os cidadãos que o mais puro interesse nacional conserva reunidos. 

José Victorino Barreto Feio, L. R. Sousa Saraiva, Julio Gomes da Silva Sanches, António Bernardo da Costa Cabral, José Alexandre de Campos, Vísconde de Sá da Bandeira, Anselmo José Braamcamp, Visconde do Reguengo, Antonio Dias de Oliveira, Barão de Faro, António Cabral de Sá Nogueira, Conde da Taipa, João Gualberto de Pina Cabral, Jeronymo Ferreira Duarte, Guilherme José Martins, João Baptista de Almeida Garrett."

Almeida Garrett (1843?).
Imagem: Cabral Moncada Leilões

Assignada a resposta foi levada ao visconde de Sá, que havia estabelecido o seu quartel general do lado de lá da ponte de Alcantara, para que a enviasse a Belém. Um facto extraordinário, porém, obstou a que aquelle documento fosse levado ao seu destino. Foi impedida a passagem ao official que o levava, pelas forças estrangeiras que por ordem da rainha poucas horas antes tinham desembarcado. 

Recebida esta noticia n'aquelle quartel general, reuniu-se ah logo ajunta revolucionaria, que, de accordo com o visconde de Sá, deliberou não tratar cousa alguma emquanto as tropas estrangeiras se conservassem em terra, e que d'isto se informasse o marechal Saldanha. 

A este dirigiu o mesmo visconde de Sá por um parlamentario, das seis para as sete horas da manhã, o seguinte officio:

I11.'"° e ex.'"° sr.

— A resposta ollicial sobre as bases em que devemos concordar para conciliação foi, durante a noite, por mim enviada a v. ex.ª, mas as forças estrangeiras que occupam essa parte do território portuguez, a não quizeram receber;

agora torno-a a enviar a v. ex.ª por nm parlamentario. O desembanjue, porém, d'estas tropas, e a attitude de guerra em que se acham, tem alterado inteiramente o estado da questão, a qual não é já entre portnguezes e portnguezes, mas entre portnguezes apoiados em força estrangeira.

Porque a commissão nomeada para sustentar as instituições juradas pela soberana e pela nação, entende que sua magestade a rainha se não acha plenamente livre para deliberar, nem aconselhada por seus conselheiros naturaes.

Assentou, pois, a commissão, e me incumbe de o commimicar a v. ex.ª, que como preliminar a toda a negociação, convém que a força estrangeira deixe sua magestade em plena liberdade, reembarcando-se. 

Deus guarde a v. ex.ª

Quartel em Alcântara, 5 de novembro de 1836.

(Assignado) Visconde de Sá da Bandeira."

A attitude enérgica de Sá da Bandeira acabou de convencer os homens de Belém de que era impossível por então levar por diante o projecto de restauração da Carta. 

Ao amanhecer do dia 5 o tenente coronel Vellez Barreiros (depois visconde de Nossa Senhora da Luz), foi pelo marechal Saldanha mandado ao quartel general do visconde de Sá, a fim de se ultimar a encetada negociação.

O visconde, de accordo com a junta, respondeu ao parlamentario que nada podia tratar emquanto uma só bayoneta estrangeira pisasse o solo portuguez, o que logo foi levado ao conhecimento do marechal Saldanha pelo mesmo coronel.

As forças inglezas embarcaram então, e pelas dez horas voltava Barreiros com esta noticia e com o pedido para o visconde de Sá se ir encontrar no palácio do conde da Ribeira á Junqueira com Saldanha, que já o esperava. 

Vista de Lisboa tirada de huma altura da Junqueira, caminho de Belem, Charles Legrand, c. 1845.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

O visconde de Sá partiu immediatamente. Saldanha declarou que não acceitava as condições que lhe haviam sido enviadas sem grandes modificações. A isto respondeu o visconde de Sá que era impossível acceder, e que a guarda nacional ia continuar a sua marcha para Belém. 

Foi este o golpe de misericórdia. Saldanha disse que todos se entregavam á discrição ao visconde de Sá, e que pela sua parte a rainha o nomeara a elle visconde de Sá presidente do conselho de ministros, e que acceitaria para fazerem parte do novo gabinete as pessoas que elle indicasse. Depois perguntou se ficavam satisfeitos com a resolução da rainha, ao que os membros da junta responderam affirmativamente, partindo em seguida para Alcântara.

O visconde de Sá foi para Belém com o marechal. Recebido logo pelo principe D. Fernando, foi pouco depois á presença da rainha, que lhe repetiu o que o marechal lhe tinha dito já, isto é, que o nomeava presidente de ministros, e que escolhesse elle as pessoas que julgasse deverem compor o novo gabinete. 

O visconde indicou os nomes dos seus ex-collegas Manuel Passos e António Manuel Lopes Vieira de Castro. Sua magestade approvou sem repugnância a escolha, e disse ao visconde que fosse fallar com os membros do corpo diplomático, que se achava reunido no paço.

Conversou-se largamente sobre os acontecimentos que acabavam de dar-se, fazendo o visconde ver a alguns dos embaixadores que eram inteiramente infundados os seus receios com respeito á segurança de sua magestade a rainha e do principe D. Fernando.

Retrato de D. Fernando II (no Palácio de Adjuda), 1836.
Imagem: Parques de Sintra

A conferencia ia-se prolongando e os decretos sem estarem lavrados, o que augmentou a desconfiança que existia já no espirito das forças reunidas em Alcântara. Uma pequena parte da guarda nacional poz-se então em marcha com destino a Belém.

O pânico produzido no paço por esta noticia foi incrivel, pois julgou-se que as forças todas avançavam para ali.

Saldanha pediu ao visconde de Sá que fosse ao encontro da força e impedisse a continuação da sua marcha. O visconde partiu immediatamente, e apesar de ser grande a agitação que lavrava nas fileiras, conseguiu tranquillisar a impaciência da guarda nacional, affirmando sob sua palavra que os decretos nomeando o novo ministério iam ser publicados sem demora. 

Voltando logo a Belém, o visconde fez ver á rainha que se os decretos não fossem publicados immediatamente a guarda nacional marcharia sobre Belém. 

O decreto que nomeava o visconde de Sá presidente de ministros foi então assignado pela rainha e referendado pelo visconde do Banho.

É o único documento que figura no Diário do governo, assignado por um dos membros do gabinete de Belém. Os decretos da nomeação dos outros dois ministros foram referendados pelo visconde de Sá. 

Publicados os decretos, a excitação acalmou; e a rainha, a instancias do visconde de Sá e acompanhada por elle, voltou para as Necessidades por entre os batalhões da guarda nacional, que a saudaram respeitosamente, regressando em seguida a quartéis.

Palais de Necessidades, Celestine Brelaz (Lenoir), c. 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

A crítica dos successos que acabámos de narrar, na parte que diz respeito á rainha, fal-a com toda a verdade o notavel estadista e distinctissimo escriptor o sr. António do Serpa [Alexandre Herculano e o seu tempo. Lisboa, 1881, pag. 171.] n'estas linhas: 

"Este golpe d'estado não foi um capricho da joven e corajosa princeza, que na curta idade de dezesete annos cingia a coroa de um reino devorado pelas facções, alastrado das ruínas de instituições seculares que tinham desabado, e onde obreiros inexpertos apenas começavam a edificar as construcções da nova sociedade politica. 

Este golpe d'estado era devido ás instigações que vinham do estrangeiro, a influencias que deviam ser insuspeitas e poderosas no animo varonil mas inexperiente da joven rainha. 

Estas instigações vinham dos estadistas de uma nação poderosa, como era a Inglaterra, e de um monarcha popular e prudente, que foi mais tarde o Nestor dos monarchas da Europa, o rei Leopoldo da Bélgica, e eram suggeridas provavelmente pelas informações terroristas dos enviados que a Inglaterra e a Bélgica tinham em Portugal [cf. Lèopold le roi des hehjes, par Théodore Juste. Bruxelles, 1838, vol. II, pag. 74. Lettre adressée au comte Goblet d'Alviella. par le marquis de Sá da Bandeira. Lisbonne, 1870, pag. 20 ]." 

Após a partida da rainha para as Necessidades, um grande numero de individuos que se achavam em Belém, e que se julgavam compromettidosna mallograda revolução, refugiaram-se a bordo dos navios de guerra inglezes, receiosos de ser perseguidos. 

Passados dias quasi todos voltaram tranquillamente a suas casas, pois foi-lhes communicado extra- officialmente que o governo não tomava medida alguma de repressão pelo motivo dos últimos acontecimentos.

A uma carta escripta em 6 de novembro por lord Howard, perguntando se o governo tencionava proceder contra os que haviam tomado parte na revolução, respondeu Sá da Bandeira que tal não havia e que o maior desejo do governo era a reconciliação dos partidos.

Apesar d'isto o sub-delegado do procurador régio José Calazans da Fonseca e Castro requereu no dia 18 de novembro querella contra o duque de Palmella, conde de Villa Real, José da Silva Carvalho, Joaquim António de Aguiar, Manuel Gonçalves de Miranda, padre Marcos, barão de Renduffe, Carlos Morato Roma, José Joaquim Gomes de Castro e Francisco Gomes da Silva, como chefes da rebellião operada em Belém no dia 4 e 5 de novembro.

O juiz indeferiu.

A propósito é bom lembrar esta passagem de um discurso de Manuel Passos:

"A constituição de 1822 tinha sido proclamada em 9 de setembro de 1836.

Passos Manuel, durante os trabalhos das Cortes de 1821 reunidas no Palácio das Necessidades, que aprovariam a primeira Constituição Portuguesa. Pintura de Veloso Salgado, que decora o interior da Sala das Sessões do Parlamento.
Imagem: Assembleia da República

O partido cartista insurreccionou-se depois em Belem. Foi vencido. Nem antes nem depois da revolta, nenhum homem d'este partido foi perseguido por mim. 

Não houve uma palavra insultuosa. E o partido vencedor abraçou cordialmente os vencidos, dando assim um singular exemplo de moderação...

Os meus sentimentos eram tão benévolos, que nem amnistia queria conceder: porque nunca considerei como crime similhante tentativa. Foi uma divergência de opinião entre os soldados da liberdade, entre os súbditos fieis da rainha.

Não me considerava nem melhor cidadão do que os meus adversários, nem mais leal ao throno do que elles; apesar de que n'estes dois sentimentos a ninguém quero conceder vantagem. 

Mas um delegado do procurador régio querelou perante o poder judicial de diversas personagens que tinham tomado parte na revolta de Belém. Recordo-me que no numero dos querelados estavam os nomes dos duques de Palmella e da Terceira, marquez de Saldanha e Trigoso. 

O governo julgou n'este caso da sua obrigação atalhar no começo esta funestíssima tendência, e propoz a sua magestade a concessão de uma amnistia amplíssima, a qual com effeito foi concedida por decreto de 18 de novembro do mesmo anno, por mim referendado. 

A camara vê com quanta honra e distincção tratei os meus adversários: e julgará se era possível ser mais delicado com os vencidos. A revolta de Belém, a que os jurisconsultos, na sua phrase dura, chamaram 'rebellião e crime de lesa-magestade de primeira cabeça', chamei eu 'passadas desintelligencias, nascidas somente da diversidade de opinião sobre a melhor organisação do systema representativo'. 

E quando se publicou este decreto, para obstar aos procedimentos judiciaes contra os vencidos, a camara sabe que não bavia um único cidadão preso, nem perseguido; porque no mesmo dia em que triumpbou a revolução passei ordem para que fossem soltos todos os que porventura estivessem presos. E não me recordo de que estivesse preso na capital um só individuo. 

[...]

No dia 4 de novembro, collocado na ponte de Alcântara, em frente dos batalhões que a queriam forçar, disse lhes:

'Não passareis para Belém senão por cima do meu cadáver.'

Ponte de Alcântara, desenho de Nogueira da Silva, 1862.
Imagem: Hemeroteca Digital

O meu sangue e dos meus amigos todos, havia de correr primeiro do que se tocasse n'um cabello dos nossos compatriotas qne estavam em Belém [Sessão da camará dos deputados, de 18 de outubro de 1844].

Com aquella protecção prestada pela esquadra ingleza aos vencidos de Belém, prende-se o seguinte facto que cumpre não esquecer, pois elle demonstra bem qual é a apregoada hospitalidade ingleza:

Em 27 de dezembro lord Howard dirigiu uma nota ao visconde de Sá da Bandeira, em que lhe commimicava que o governo britannico tinha recebido do almirante sir William [Hall] Gage [comandante da Lisbon Station a.k.a. Lisbon Station and Coast of Spain de 1837 a 1841] uma conta das despezas feitas a bordo dos navios do seu commando no Tejo com os indivíduos portuguezes que ali tinham sido obrigados a refugiar-se para escapar á ira popular, nos primeiros dias de novembro, despezas que subiam a 458 libras sterlinas e 14 shillings, as quaes tinham sido feitas para salvar a vida de tantas pessoas illustres, que o seu governo julgava que esta importância devia ser paga pelo governo portuguez, e que elle havia recebido instrucções de lord Palmerston para se dirigir ao visconde de Sá a fim de elle ordenar o seu pagamento. 

No Tejo, John Wilson Carmichael (1800-1868), 1842.
Imagem: Sotheby's

Ao ministro inglez respondeu o visconde de Sá que podia mandar quando quizesse ao ministério dos negócios estrangeiros receber a quantia pedida, acrescentando que se o almirante Gage tivesse feito apresentar a conta ás pessoas que haviam pedido hospitalidade a bordo dos seus navios, ellas teriam sem duvida pago as despezas que ali occasionaram. 

Em vista d'esta resposta, e calculando agora o passo errado que havia dado, lord Howard pediu em carta confidencial que dirigiu ao visconde de Sá, em 31 de dezembro, para retirar aquella nota, ao que este promptamente accedeu, livrando assim a Inglaterra de mais esta vergonha. 

A esta segunda carta respondeu o visconde de Sá pelo seguinte modo:

"Confidencial. — Lisboa, 2 de janeiro de 1837. 

— Meu caro lord Howard.

— Em consequência da vossa carta confidencial de 31 de dezembro, restituo-vos a vossa nota de 27.

Acho-me contente por haveres tomado a determinação de a retirar, porque provavelmente ella iria dar logar nas cortes ás observações sobre o direito de pedir o pagamento em questão, e ás recriminações nocivas ás pessoas que tomaram parte nos negócios de Belém, o que não podia deixar de causar no parlamento britannico um echo pouco harmonioso sem duvida para alguns personagens. 

HMS Donegal descendo o Tejo à passagem da igreja de Santa-Engracia, John Wilson Carmichael, 1837
Imagem: Christie's

A recusa de pagar o dinheiro pedido seria no estado actual das cousas um meio de popularidade n'este paiz; mas aquillo de que elle tem precisão é de tranquillidade, e por esta rasão completo esquecimento das discórdias civis.

Crede-me, etc.

Sá da Bandeira." (1)


(1) Marques Gomes, Luctas caseiras: Portugal de 1834 a 1851, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894

Leitura relacionada:
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Tomo I,  Typ. da Companhia Nacional Ed.
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Tomo II,  Typ. da Companhia Nacional Ed.
José de Arriaga, História da Revolução de Setembro, Ttomo III,  Typ. da Companhia Nacional Ed.
Marques Gomes, A verdade histórica e a História da Revolução de Setembro por José de Arriaga
Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894

Leitura adicional:
José de Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820, 2° volume, 1886
José de Arriaga, História da Revolução Portugueza de 1820, 4° volume, 1886

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