sábado, 29 de junho de 2024

Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)

Entre as folhas de um album antigo encontrei, desenhadas e aguareladas por Zacharie Felix Doumet, algumas interessantissimas representações de episodios da vida portuguesa do fim do seculo xviii. Como póde este pintor estrangeiro observar com tamanha justeza o meio português de então?

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa


Zacharie Felix Doumet, fiiho de Gaspar Doumet, mestre-pintor do rei, nasceu em Toulon a 4 de dezembro âe 1761. Aprendeu com seu pae e foi admitido como pintor de marinhas no Arsenal da cidade, onde se conservou até aos graves acontecimentos que destruiram parte da povoação e o proprio Arsenal.

Emigrou então para a Corsega, e, tres anos depois, para Portugal (1796-1806), conseguindo empregar-se, em Lisboa, numa das repartições do Real Corpo de Engenheiros. Voltou a Toulon em 1806, e faleceu em Draguignan em 1818, com 57 anos de idade.

Doumet pensava decerto publicar um livro de memorias ou de viagens, ilustrado com os seus desenhos. Nesse intuito coligiu os quadrinhos que agora se publicam, e que estão preparados para a reprodução em gravura a córes, com as respetivas cercaduras, numeração, legendas e assinaturas, ao gosto da epoca.

Os seus desenhos são tratados como miniaturas, com um a delicadeza assombrosa de promenores. O antigo pintor do Arsenal denuncia-se na reprodução das náus, dos barcos, das noss as muletas, etc., não faltando nas aguarelas, apezar das suas dimensões restritas, o mais insignificante detalhe de arquitetura naval.

Vue d'une partie de Lisbonne en Portugal, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa


As figuras são cuidadosamente entrajadas, denotando as atitudes e as côres uma observação atenta e alegre, melhor revelada na ironia leve com que alguns episodios populares são tratados.

As gravuras que acompanham estas notas, representam: a primeira, quatro mariolas, transportando uma pipa «a pau e corda»: a scena passa-se no Caes do Sodré, divisando-se no Tejo, á esquerda, uma náu portuguesa, e á direita, entre outros barcos, uma fragata inglesa.

Maniére de porter les barriques de vin, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

A segunda mostra-nos o preto andador, de opa azul e branca, dando o Menino Jesus na sua maquineta de vidro e flores de talco, a beijar a uma mulher de lenço e capa de ramagens, emquanto o marido, oficial de linha , esportula a respetiva esmola.

L'enfant Jesus, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa


Le Menino Jesus, l'agoadeiro et le dragon portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Museu de Lisboa

Na ultima, a que Doumet intitulou "as vesperas do Natal", notam-se pequenos aspectos da vida das ruas, caraterísticos da epoca do ano a que al udem.Num grupo, mulheres de capote vermelho ou vasquinha debruada e lenço branco, e homens de bicorne, vestia ou gabão, abrigados por um chapelão de mercado, cinzento, vendem queijos, laranjas e ovos.

Les aproches de Noël, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Mais adeante, uma outra vendedóra acocóra-se junto do seu cesto, perto de um perú enfatuado. Outros galinaceos espalhados pelo quadro esperam descuidosamente o dia do sacrificio.

Ao fundo, um preto velho, de opa, vara e maquineta, talvez o mesmo da aguarela anterior, segue na sua faina de andadôr, pedindo para o Menino a um «homem de ganhar» que vae passando. (1)

São poucos os documentos iconográficos que possuimos a respeito dos mercados portugueses dos fins do seculo xviii. Murphy, Kinsey, Baillie, Bradford, Léveque, e outros, reproduzindo, em gravuras soltas ou nas que acompanham as relações das suas viagens, tipos populares portugueses, raramente agruparam essas figuras de modo a indicarem, no conjunto, qualquer aspéto de um mercado.

Por outro lado, Stadler, Wells, Sofia Wagner, Humphrey e Dunstan Gordon — que presumo seja o autor que desenhou as pitorescas scenas do Scketches of Portuguese Life — procuraram apenas dar a impressão aproximada e despretenciosa dos episódios da nossa vida rural, desenhando e fazendo gravar, nas suas composições mais vastas, quadrinhos campestres, em que aparecem tipos populares.

Ora Zacharie Doumet, o minucioso pintor francês a quem no numero anterior me referi, deixou-nos, nas folhas do seu album, numerosos aspétos dos mercados da época, desenhados do natural. Não lhe escaparam, por isso, nem as atitudes e os trajos dos vendilhões e compradores, nem os pequenos incidentes característicos do ajuntamento, taes como os cães brincando com as galinhas, ou o burro filosofando tranquilo ante um cesto pojado de legumes...

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Entre as personagens representadas, salientam-se o frade, de habito pardo e escapulário, o negociante, com seu bicorne e capote de mangas, e o sargento, de farda azul com peitilho e vivos brancos e chapeu debruado, que faz a polícia do mercado.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Doumet reproduz com muito cuidado os trajos. As mulheres usam, quasi invariavelmente, uma saia de baixo, amarela, sendo a que trazem apanhada sob a cinta, azul ou arroxeada; a vasquinha é vermelha, debruada de azul ; os capotes, com cabeção, amarelados ou escuros, e os lenços, brancos, assentando o carapuço ou chapeu sempre sobre o lenço.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

Os homens trajam véstias cór de castanha ou azuladas, debruadas de fita, e coletes vermelhos.

Marché portugais, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
Hemeroteca Digital de Lisboa

 

O chapeu é geralmente um bicorne agaloado de amarelo ou azul, e os carapuços são amarelados ou vermelhos. Os capotes, cór de pinhão ou de azeitona, tem cabeção, mangas, e ·Um capuz, forrado de verde.

La conversation portugaise ou le temps perdu, Zacharie-Félix Doumet (1761-1818)
ComJeitoeArte

A proteger as pernas, usam as personagens, além dos calções de fazendas grossas, polainas de pano ou meias brancas. Na frente dos sapatos, arqueia-se quasi sempre uma daquelas grandes fivelas, tão satirizadas pelos folhetos de cordel da época. (2)


(1) Luís Keil, Scenas da vida portuguesa (fim do século xviii), Terra Portuguesa 21/23, 1917
(2) Luís Keil, Antigos mercados portugueses, Terra Portuguesa 24, 1918

Mais informação:
ComJeitoeArte, Costumes portugueses - Doumet, Zacharie Félix
Museu de Lisboa

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