Geração de 70, o Grupo dos Cinco: Eça de Queiroz, Oliveira Martins, Antero de Quental, Ramalho Ortigão e Guerra Junqueiro. |
O nome de Oliveira Martins é hoje conhecido no paiz; áquelle tempo não pôde dizer-se que o fosse: havia produzido apenas um livro sobre Camões e a sua obra em relação á sociedade portugueza e ao movimento da renascença, editado no Porto, com o titulo de Camões e os Lusíadas.
O publico não conhecia nem o passado d'esse escriptor nem o seu género de estudos, nem a originalidade do seu methodo. Em vez de viver na intimidade dos livros de litteratura amena, que andam mais em uso, e se encontram por ahi em todas as estantes e livrarias, entregára-se sempre esse moço ás obras severas dos pensadores, estudando-as era boa ordem, annotando-as, nunca as deixando meio exploradas, e adquirindo grande abundância de conhecimentos. Talento reflexivo, philosophico, averiguador.
Coisa singular: tão dissimilhanles como eram as nossas predilecções litterarias, cntretinhamo-nos muito conversando de letras. Sabia o Proudhon na ponta da língua, e entrava pelos philosophos e políticos d'essa família; mas, de vez em quando apparecia, de manhã, em minha casa, e nunca encontrei espirito que melhor sentisse o folhetim do que elle.
Os Vencidos da Vida: António Maria Vasco de Melo César e Meneses, Luís Augusto Pinto de Soveral, Carlos Félix de Lima Mayer, Francisco Manuel de Melo Breyner, Guerra Junqueiro, Ramalho Ortigão, Carlos Lobo d'Ávila, Bernardo Pinheiro Correia de Melo, Eça de Queirós e J. P. de Oliveira Martins Imagem: Wikipédia |
Sempre guardei lembrança d'isso, e, como podem calcular, a minha estimação por elle tornou-se mais affectuosa. É um philosopho e ao mesmo tempo um artista. Oliveira Martins; tem grande e alto raciocínio, e ao mesmo tempo sensibilidade de poeta. Com que amor elle estudou os Lusíadas, e a vida venturosa, romantica, heróica, do Camões, lucta do talento contra a riqueza e a tolice!
Mas, emfim, n'aquella tarde da Rabicha, sinceramente se lhe figurou que, épico por épico, não ficasse a dever nada ao outro quem compozesse uma caldeirada em seis cantos — que tantos eram os que iam saudar, cantando-a ás auras e aos Arcos das Aguas Livres — a canto, por talher! — essa obra que emprehendi.
João Burnay havia mandado conduzir para alli, não sei se n'uma padiola se n'um omnibus, um roast-beef. Pela minha parte, para não deixar na sombra esse clarão de meu engenho, cumpre-me dizer-lhes que havia tomado perante Deus, elles, a Rabicha, e a minha consciência, o encargo glorioso de confeccionar lá mesmo a caldeirada das caldeiradas.
O ponto de reunião era na rua da Piedade, á Praça das Flores, — onde morava então Anthero do Quental. Alli nos juntámos n'um dia de verão esplendido, e partiu a caravana ao meio dia. Estava um sol de rachar. Poucos passos adeante ia resolver-se mandar buscar seges, mas ouviu-se uma voz sahir de um kiosque apostrofando-nos:
— Que! Seges?! Qual diabo! Vamos a pé!
Era Ramalho Ortigão, que assim exprimia as suas convicções por baixo de um panamá; mas um panamá, façam-me favor! digno emulo d'aquella couve heróica, que de uma vez deu sombra ao exercito de Napoleão! Encontrámos a guarda, — parou o official, pasmado, e os soldados iam cahindo de pasmo...
Na Rabicha a impressão foi profunda. Ramalho, alegre, risonho, ousado, explicou ao dono da fazenda, homenzarrão intrépido e de alta e antiga fama de valente com os homens e terno com o femeaço, pimpão reformado, a quem uma bala levara o braço direito, que, apesar de maneta, tinha a linha.
Ao principio aquelle homem não percebeu bem isto; mas, quando de iá sahimos, ás oito horas, havendo alli chegado ás quatro, já elle próprio, maneta, explicava ás criadas da horta, qual d'ellas tinha a linha, e qual d'ellas não tinha a linha.
Anthero do Quental, que já chegara aos annos, não por certo do retiro e do silencio, mas da meditação severa, horas da madureza melancholica em que um homem, ao fazer a comparação do caminho que já andou com o que tem para andar, cuida avistar o segundo mais curto que o primeiro, parecia outro n'esse dia, tão juvenil e espontâneo era o contentamento em que estava.
Os Vencidos da Vida (com
excepção de António Cândido) fotografados por Augusto Bobone em 1889, no
jardim da casa do conde de Arnoso, na Rua de S. Domingos à Lapa:
marquês de Soveral (Luiz Pinto de Soveral, 1850-1922), Carlos Lima Mayer
(1846-1910), conde de Sabugosa (António José de Mello Cezar de Menezes,
1854-1923), Oliveira Martins (1846-1894), Carlos Lobo d’Ávila
(1860-1895), Eça (1845-1900), Ramalho Ortigão (1836-1915), Guerra
Junqueiro (1850-1923), conde de Arnoso (Bernardo Pinheiro Correia de
Mello, 1855-1911) e conde de Ficalho (Francisco Manoel de Mello Breyner,
1837-1903). Imagem: Lisboa Desaparecida |
Oliveira Martins, vivamente sensibilisado pelos resultados obtidos, esteve a ponto de chorar de gosto ao ver a graça com que Ramalho ajudava a criada de Bournay — visto como Bournay mandara ir, além do roast-beef, uma criada franceza, ou á franceza pelo menos, isto é, de touquinha branca, saia curta e o avental de algibeirinhas consagrado pelas melhores vinhetas do Bertall — a pôr a mesa.
Lisboa, Aqueduto das Águas Livres. Retiro da Quinta da Rabicha encerrado, c. 1900. Imagem: Delcampe |
Elle ia á quinta colher as flores mais variadas, elle as enfeixava em bem armado ramilhete, elle estabelecia os desenhos mais interessantes, mercê da disposição gentilmente matizada d'ellas ; depois, vendo-me deante do grande tacho destinado á ceremonia solemne da caldeirada, perguntou-me tremulo de ternura:
— Já estás refugando, Júlio?
Eu não dizia nada. Mas Jayme Batalha Reis, que, durante aquelle acto, não tirava os olhos de mim, respondia com commoção:
— Já; já está a refugar !
— Quantas cebolas, Júlio? — perguntava Ramalho.
— Vinte e uma! — dizia Jayme. — Vinte e uma! — Cebolas verdes, em quartos!...
— Est-ce possible?! — exclamava a criada franceza, ou á franceza, consultando Ramalho Ortigão com o olhar.
— Je m'égare!... — retrucava Ramalho — E, (voltando-se para mim) que mais lhe deitaste?...
Eu não dizia nada. Alberto de Queiroz, debruçando-se brandamente, propunha-se metter o nariz no tacho. A tanto pôde a sede do saber, e quiçá uma juvenil ambição, acredora de estima, conduzir a mocidade!
Alberto de Queiroz era então um adolescente. Entrava na vida curioso de conhecer as luctas e difficuldades, ou sadias e revezes do destino dos escriptores e dos artistas. Dotado de uma percepção rara, e de uma avidez de estudar que ninguém combinaria facilmente com os ares de dandysmo com que elle passeava ao sol ou á chuva o seu janotismo, os que o viam, sem o conhecerem bem, consideravam apenas n'elle um rapazinho rendido a dois coquetismo, o coquetismo da elegância e o das le- tras, na idéa de que elle não quizesse d'ellas senão o que essas santas comadres offereçam de commodidade momentânea á existência de um rapaz, — a saber, os bilhetes de entrada nos theatros, os convites para bailes, para regatas, para as inaugurações de linhas férreas; e para as varias festas em que a vaidade ou a especulação do mundo, no habito em que estão de viverem colladas á publicidade dos reclamos, como a santola ao costado dos navios, recorrem aos que tiverem uma columna de jornal a disposição da patacoada humana.
Mas não. Levava-o para as letras o amor sincero que lhes tinha; ficava contente do seu dia, quando um trabalho de outrem lhe dava ao espirito a doce satisfação de apreciar; e, prova não só da aptidão das suas faculdades, mas da generosidade do seu coração, tudo era como que desempenhar-se de um empenho que houvesse contrahido comsigo mesmo de não se limitar á estimação silenciosa, e tirar, da comprehensão brilhante e fácil de que a natureza o prendara, a consolação mais útil e benéfica para os que trabalham, qual a de não se limitar a aprecial-os de si para si, mas abrindo a janella que dá para a rua. por assim dizer explical-os ao publico, convidal-o a prestar a sua attenção ás producções d'elles; e, mercê do talento e da generosidade de animo, empregar em os fazer sobresahir, em lhes dar luz, a diligencia que os egoistas e os mediocres tanto applicam e de tão boa gana a pôr os outros na sombra.
— Que mais lhe deitaste ? — tornava o Ramalho a perguntar.
Ramalho Ortigão (1836 - 1915). Imagem: Wikipédia |
Jayme Batalha Heis, que, a titulo de eu o conhecer desde pequeno, e haver sido um dos primeiros a maravilhar-me da rara lucidez do seu espirito, merecera da minha benevolência o tel-o ao meu lado, recitou n'estes termos:
— Salsa, pimenta, sal, cabeça de safio e de eirós, coloráo, caril! tudo ás voltas, na fritura do refugado, um pouco antes de se lhe atirar com dezoito tomates grandes! em pedaços! três colheres de vinagre, oito de azeite! lulas e ostras, além de peixe de sete qualidades: ruivo, tainha, chocos, saíio, eiroz, peixe-gallo, xarroco!...
Porque os convivas, ao ouvirem isto, estivessem a ponto de se torcerem e retorcerem todos de commoção, em gentis ataques nervosos motivados pelas sensações d'este dia, resolveu-se, como medida de prudência, emprehender um passeiosinho de distracção, para não estarem alli concentrando por mais tempo uma attenção illimitada no tacho, em que tantos e tão extraordinários acontecimentos se estavam passando.
Ribeira de Alcântara na zona da Rabicha, José Artur Leitão Bárcia. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Assim foram pela quinta adeante até á estrada de Campolide. Andavam trabalhadores a arranjar a estrada.
— Vossemecês são das Obras Publicas? — perguntou-lhes Ramalho.
— Sim, senhores! — respondeu um d'elles, que se achava a contas com uma pedrinha, procurando com arte o melhor modo de a encravar no chão...
Elle chamou os companheiros e entretiveram-se a contemplar aquelle espectáculo.
— É curioso! — ponderou. Qual fosse o fim do trabalhador ao pegar n'aquena pedrinha, bem o comprehendiam elles; porém, com que habilidade elle se desempenhava de tal missão!
Piscava um olho...
Piscava o outro...
Mirava a pedrinha d'aqui, mirava-a d'alli...
Punha-a ao direito...
Olhava para ella bem, — e punha-a atravessada...
Apalpava-a...
Assoprava-a...
Espreitava-a e admirava-a, como faz um ourives a uma pedra preciosa, que se lhe figure de boa agua e com grande vida...
Depois, com geitos de observação que fariam honra a um mathematico, encanastrava-a em cima de outras, como quem está a fazer a caminha para uma creança, devagarinho, com extremos de quem sabe amar maternalmente, porque assim digamos...
Ramalho, tirando da algibeira do peito o seu lenço de assoar finíssimo, dirigiu-se áquelle trabalhador das Obras Publicas, pediu-lhe para que o attendesse, conferenciou com elle mysteriosamente; depois, voltando-se para os companheiros:
— Segurae nas pontas d'este lenço! Todos seguraram o lenço pegando-lhe pelas pontas, de forma que não deixassem cair o que elle continha, e assim voltaram em procissão até á Rabicha.
A caldeirada estava prompta. Eu passeava agitado. Aquelles instantes pareciam-me de um comprimento excessivo... Tinha a imaginação sobrexcitada por idéas de gloria... Haveria querido n'aquelle momento ler alli á mão algumas paginas de leitura austera que me puzessem em afinação de modéstia... Mas, não se poderia arranjar isso n'aquelles sítios.
Puz-me a meditar as palavras do Ecclesiasta: Vaidade das vaidades... Nada me acalmava. Parava machinalmente deante do tanque, via-me na agua e comprimentava-me a mim próprio, como elle, esperava eu, teriam de comprimentar-me pela caldeirada... Oh! Essa idéa fazia-me empallidecer... Ouvi-lhes as vozes. De cabeça erguida e attitude altiva esperei-os, firme.
Lisboa Aqueduto das Águas Livres Ponte da Rabicha, Ferreira da Cunha, antes de 1938. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
— Está prompta a caldeirada! — bradei.
E o echo dos arcos das Aguas Livres repetiu: — Caldeirada!...
Jayme Batalha Reis dirigiu-me a palavra:
— Que dirias de Sócrates, se ai ém de philosopho, fosse industrial? Eu ia dizer... Anthero do Quental deu um passo á frente:
— Que dirias de Napoleão, se, além de guerreiro fosse pianista insigne?
Eu já, por um triz, ia a fallar... Oliveira Martins, pondo-me a mão no hombro, contemplando-me longamente:
— Que dirias de Thomaz de Carvalho, se, além de tudo que sabemos d'elle, fosse também capitão de navios?
Já a resposta me ia pela lingua adeante...
— Que diremos de ti, querido amigo, — proferiu Ramalho commovido — que, além das occupações do teu officio, te propões ser o que ha mais sublime entre as diversas espécies do saber humano, — cosinheiro!
À tua dedicação á humanidade é sem limites; o teu amor ao trabalho é digno do espirito scientifico de um grande século... Aqui te trazemos um presente!
Tens ouvido fallar no suor do povo?
— Muitas vezes.
— É uma curiosidade rara, mas encontra-se. Pedimos um pinguinho d'isso a um trabalhador das obras publicas, que anda alli adeante na estrada, e eil-o aqui...
Entendemos que aquelle pinguito de suor do povo podia, mercê de que a raridade augmente o valor ás coisas, constituir o mais glorioso baptismo de um cosinheiro voluntário...
Lisboa Ponte da Rabicha Eduardo Portugal. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
E, soluçando de jubiloso enternecimento:
— Para a mesa, amigos !
— Para a mesa!... (1)
(1) Júlio César Machado, A vida alegre..., Lisboa, Editora de Mattos Ferreira & C.a, 1880
5 comentários:
Muito bom!
Obrigada.
De nada Terezinha, seja bem vinda.
Lindo!
Deslumbrada com tanta História da Lisboa do Século XIX,seus Ilustres Personagens, e tanto Património que já não existe, como bem documentam as gravuras. Bem Haja!
Obrigado Maria Baptista.
Temos um século XIX rico, intenso, variado, contraditório... no fundo, este apontamento fala de um lugar no tempo, ou de um tempo num lugar.
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