quarta-feira, 15 de maio de 2024

O príncipe regente na arte equestre

(...) ocorreram algumas inovações nos retratos régios antes da partida da corte, sobretudo graças a dois pintores de inspiração italiana, Domingos Antonio sequeira (1768-1837), talvez o maior artista português daquele período, e o veneziano Domenico Pellegrini (1759-1840), que morou em Lisboa entre 1802 e 1810.

EST.  II.
Dos potros no campo.
Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790)

Uma foi o uso do modelo equestre. Mas talvez por suas conotações marciais, esse tipo de retrato de dom João a cavalo logo desapareceu diante das primeiras derrotas militares (...)

Ainda que o costume de cavalgar seja típico da cultura aristocrática da Europa da época moderna e que o conhecido livro português sobre a arte da cavalaria de Manuel Carlos de Andrade (Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria), publicado em 1790, seja dedicado a dom João, não se pode dizer que a identidade do príncipe e depois rei tenha sido marcada pela cavalaria. De todo modo, os retratos equestres têm um lugar especial na cultura visual.

O retrato equestre de dom João, de autoria de Domingos Antonio Sequeira, seguramente pela sua solenidade e elegância, tornou-se uma das imagens mais difundidas de dom João nos dias atuais. Trata-se de uma representação do príncipe regente passando revista às tropas no Campo do Quadro, nas cercanias de Azambuja, no ano de 1798.

Dom João, Príncipe Regente, passando revista às tropas na Azambuja
Domingos Sequeira, 1803
Google Arts & Culture


Consta que dom João teria assistido às manobras que envolveram 6.700 soldados sob o comando do tenente-general João de Ordaz e Queiróz. Trata-se, portanto, de uma cena militar, criada no início do século XIX.

A atribuição de autoria da tela do Museu Imperial, de Petrópolis, baseia-se não apenas na sua qualidade, mas por ser uma versão da tela intitulada O Príncipe Regente passando revista às tropas na Azambuja, da coleção do Palácio Nacional de Queluz.

As diferenças entre as duas versões são sutis.

Dom João, Príncipe Regente, passando revista às tropas na Azambuja
Domingos Sequeira (atribuído)
Google Arts & Culture

Na tela que pertenceu às coleções reais e foi trazida ao Brasil com a transferência da corte, o pintor firma com orgulho a sua autoria, assinando e datando: “Dos Ano de Siqueira inv e Pintou. 1803”. Ignore-se a diferença na grafia do nome – como até o século XX não havia propriamente, em Portugal, uma regra que obrigasse a uma escrita homogênea, pintores assinavam de maneiras diferentes. E nem sempre assinavam; sobretudo após ter marcado com tanta ênfase a sua criação.

O fato é que na tela que está no Brasil não há assinatura. Chama a atenção ainda que a tela assinada, mais elaborada, é um pouco menor do que a que está na coleção brasileira – mas até a diferença é pequena.

De outro lado, as personagens esboçadas no segundo plano à esquerda, as tropas alinhadas quase geometricamente e as carnações mais cruas na cara do cavalo, parecem indicar que a tela do Museu Imperial de Petrópolis é uma versão de estudo – o que não condiz com o seu tamanho pouco maior em relação ao quadro de Queluz.


Teria sido “duplicada” pelo próprio pintor para alguma função específica? Teria essa réplica sido interrompida por alguma razão? Ainda pouco estudado, o retrato no período de dom João ainda levanta questões e reserva surpresas.

O retrato em duas versões surpreende na cronologia, pois naqueles anos Portugal havia sofrido derrota contra a Espanha em 1801, na brevíssima guerra das Laranjas. Finalmente, a primeira invasão francesa, ocorrida em finais de 1807, desacreditaria quase completamente imagens como esta, do governante português postado sobre um cavalo em pose de general de exército à moda dos imperadores romanos.

A data da tela se coloca justamente entre os dois eventos militares em que as tropas portuguesas não saíram com a vitória.

Contudo, é conhecido outro retrato equestre ainda maior (306 x 246 cm) de autoria do pintor francês estabelecido em Portugal, Nicolas-Louis-Albert Delerive (v. artigo dedicado: Nicolas Delerive 1755-1818), sem data, atualmente em exposição no Palácio da Ajuda em Lisboa.

Nessa tela, dom João é representado com a insígnia da Ordem da Torre e Espada, o que indica que sua criação é posterior à transferência da corte portuguesa para o Rio de Janeiro, devido ao momento de instauração da Real Ordem, o que sugere ser da época das vitórias militares portuguesas sobre as forças napoleônicas no continente americano.

Retrato de D João VI a cavalo, Nicolas Delerive
Google Arts & Culture

Considerando que a primeira havia sido levada para o Brasil, esse novo contexto de feitos militares portugueses pode explicar a segunda versão da tela por sequeira em Portugal e a celebração do papel militar de dom João. No retrato equestre, observa-se que dom João é representado em farda militar de general.

O destaque do comandante é enfatizado pela imponência da pose do cavalo com sela e capa verdes de fino acabamento, bem como pelo chapéu preto debruado à cabeça, com barra dourada e penacho de pluma branca, que combina com as botas pretas de cavaleiro de cano alto com esporas. Tal como em outras telas da época, como, por exemplo, no retrato de Domenico Pellegrini, o príncipe regente está vestido com casaca vermelha bordada e calças amarelas.

Traja ainda sobre o torso as bandas da Ordem de Carlos III, de Espanha, e das Três Ordens Militares de Portugal, entrelaçadas, destacando-se pendente do laço a medalha oval das Três Ordens, tendo por baixo a medalha de Carlos III. (1)
Leitura relacionada:
Armando S. Ferreira, Uma coleção de retratos do Rei D. João VI 1767-1826, 2018

(1) António M. Trigueiros, Patrícia Telles, O retrato do rei D. João VI (...), 2019

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Domingos Sequeira, Cartuxa de Laveiras, Real Quinta, Trafaria e Cabo Espichel
Nicolas Delerive (1755-1818)

Leitura relacionada:
Armando S. Ferreira, Uma coleção de retratos do Rei D. João VI 1767-1826, 2018

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