The view of the city of Lisbon (detalhe), C. Lemprière, publ. 1756. Cabral Moncada Leilões |
Foi rico de recheio e com aspecto exterior interessante. Aqui se teria desenrolado a curiosa cena do regresso duma romaria da Outra Banda, nos seus tempos áureos (...) (1)
Entrada a noite, as luzes brilharam nas torrinhas, nos terraços e em todos os pontos da estranha agglomeração de edificações, que compõem este palácio amoiriscado: metade da familia recitava as ladainhas dos santos, a outra divertia-se com extravagâncias e travessuras, talvez pouco edificantes, e o staccato monótono das guitarras, acompanhado pelo murmúrio abafado e suave das vozes femininas, cantando modinhas, formava uma singular mas não desagradável harmonia.
The view of the city of Lisbon, C. Lemprière, publ. 1756. Cabral Moncada Leilões |
Estava eu escutando-a com avidez, quando o clarão dos archotes e o rumor da agua batida pelos remos nos chamou às varandas, a tempo de vermos uma procissão raras vezes egualada desde o tempo de Noé!
Duvido que a sua arca contivesse uma collecção de animaes mais heterogénea do que a que saiu dum escaler de cincoenta remadores, que acabava de pôr em terra o velho marquez de Marialva e oseu filho D. José, acompanhados duma multidão de músicos, poetas, toireiros, lacaios, macacos, anões o creanças de ambos os sexos, phantasiosamente vestidas!
William Beckford em 1782 por Joshua Reynolds. National Portrait Gallery |
Todo aquelle bando, creio eu, voltava d'uma romaria á capella dalgum santo no outro lado do Tejo. O primeiro que saltou foi um anão corcunda, que fazia uma chiadeira infernal numa gaitinha dum palmo de comprimento; seguiam-se depois dois servilôes parasitas apparentemente commandados por um velho de uniforme muito usado, e de aspecto singular e fanfarrão, que me disseram ter militado como brigadeiro numa ilha qualquer.
A Barataria que ella fosse, Sancho tel-o-ia mandado tratar da sua vida. porque, a dar credito á chronica escandalosa de Lisboa, poucas vezes se tem visto um truão, um parasita e um gatuno mais impudente do que elle! No encalço d'estes caminhavam um emproado e asselvajado monge, tão alto como Sansão, e dois frades capuchinhos, ajoujados não sei com que espécie de provisões.
Quinta da Praia em segundo plano, ao centro, em Henri L'Évêque, Vista do Convento de Sto Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa (detalhe). ComJeitoeArte |
Vinha em seguida um magro e pallido boticário, todo vestido de preto, correspondendo completamente no trajo e no porte á figura que imaginamos do "Señor Apuntador", do Gil Blas, e após este vinha um improvisador meio tonto, disparando-nos versos, quando passou por baixo das varandas donde estávamos vendo desfilar o cortejo.
Era quasi impossível ouvil-o por causa do confuso tropel de barqueiros e creados com gaiolas de pássaros, lanternas, cabazes de fructa e grinaldas de flores, que vinham alegres e saltando, com grande gáudio dum bando de creanças, as quaes, para parecerem mais habitantes do ceu do que a natureza as fizera, traziam umas azinhas transparentes presas aos seus hombros cor de rosa.
Alguns destes anjinhos de theatro eram extremamente formosos, e tinham o cabello garridamente disposto em armeis. O velho marquez gosta d'elles doidamente; vivem com elle noite e dia, dando-lhe tudo o que a frescura e a innocencia pode offerecer a uma organisação decadente.
Henri L'Évêque, Vista do Convento de Sto Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa. ComJeitoeArte |
O patriarcha dos Marialvas tem seguido este regimen ha muitos annos, e também alguns outros quasi incriveis. Dotado d'uma facilidade mais que romana de devorar uma immensa profusão de manjares, e de fazer legar a novo supprimento, janta todos os dias sósínho, ladeado por dois cangirões de prata de extraordinária grandeza.
Ninguém em Inglaterra me acreditaria, se eu descrevesse o enorme banquete que vi disposto para elle; mas deixae a vossa imaginação perder-se em tudo o que se tem imaginado em matéria de voracidade, que íí este caso ella ainda ha de ficar abaixo da realidade! Apenas o conteúdo animal e vegetal do escaler grande e de três ou quatro faluas da comitiva ficou depositado nos seus respectivos cubículos, recantos e poleiros, recebi um convite do velho marquez para merendar com elle no seu quarto.
D. Pedro, 4° Marquês de Marialva, por Domingos A. Sequeira. Lisboa Revista Municipal n° 20, 1987 |
Näo eram menos, com certeza, de cincoenta, os creados que nos esperavam, e além de seis brandões de cera, que por ceremonia nos iam alumiando, mais de cem círios de differentes tamanhos ardiam nas salas, onde brazeiros de prata e cassoletas espalhavam no ar um delicioso perfume.
O senhor de todas estas magnificências pareceu-me muito cortez, affavel e insinuante. Ha uma tal urbanidade e bom humor no seu olhar, nos gestos, e no timbre da sua voz, que nos predispõem logo em seu favor e justificam a popularidade universal de que gosa, e o affectuoso nome de Pae, que lhe dá muitas vezes a Rainha e a Família Real. Os favores da coroa tèem chovido sobre elle aos montões. no presente e nos anteriores reinados -uma corrente de prosperidades não interrompidas mesmo durante o grão-visiriato de Pombal!
"— Proceda como julgar mais acertado com o resto da minha nobreza — costumava dizer o rei D. José ao seu temido ministro — mas guarde-se de se intrometter com o marquez de Marialva."
Palácio dos Marqueses de Marialva às Portas de Santa Catarina. Não realizado, este projecto propunha reerguer o antigo palácio seiscentista dos Marqueses de Marialva, junto das Portas d Santa Catarina, que sofrera ruina e incêndio na sequência do terramoto de 1755. A Casa Senhorial |
A esta decidida predilecção deveu o palácio de Marialva tornar-se em muitos casos um ponto de reunião, um asylo dos opprimidos, e o seu senhor, em mais duma occasião um escudo contra os raios de tão poderoso ministro. Ainda parece estar viva a memoria d'esses tempos, porque era digno de se notar o respeito cordeal e a filial adoração, que vi tributar ao velho marquez.
EST. II. Dos potros no campo. Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790) |
Obedeciam aos seus mais leves acenos, e as pessoas a quem elles se dirigiam mostravam-se gratas e animadas: os seus filhos, o marquez de Tancos e D. José de Menezes, dobravam o joelho sempre que se approximavam delle para lhe offerecer alguma coisa, e o conde de Villa Verde, o herdeiro da grande casa de Angeja, tanto como o vice-rei do Algarve, faziam circulo de pé com os outros em volta d'elle, acolhendo uma palavra graciosa ou affavel com o mesmo reconhecido interesse de cortesãos pendentes dos sorrisos e do favor do seu soberano.
EST. LXXVIII. Do Excellentijfimo Marquez de Marialva, formando hum Cavallo na acção das Garupadas para a direita. Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790) |
Lembrar-me-hei por muilo tempo das gratas impressões que me deixou esta scena de reciproco affecto : parecia uma troca mutua de sentimentos cordeaes — beneficência distribuída sem calculo nem affectação, e protecção recebida sem malévolo ou abjecto servilismo.
Quam preferível é um governo patriarchal como este ás frias theorias que pretendem estabelecer alguns sophistas pedantes, e que, se elles conseguissem realisar os seus impios desvarios, solapariam rapidamente os melhores e mais seguros esteios da sociedade.
Panorâmica da linha de costa e Torre de Belém no início século xx. Arquivo Municipal de Lisboa |
Quando os paes deixam de ser honrados pelos seus filhos, e as édades e as condições, que carecem de protecção, desconhecem os sentimentos de grata sujeição, os reis cessarão em breve de reinar, e as republicas deixarão de ser governadas pelos conselhos da experiência; a anarchia, a rapina e a carnificina devastarão a terra, e a morada dos demónios mudar-se-ha do inferno para o nosso desgraçado planeta. (2)
(1) Olisipo n. 102, abril de 1963
(2) A côrte da rainha D. Maria I. Correspondencia de William Beckford
Mais informação:
Pedro José de Alcântara de Meneses Noronha Coutinho (1713-1799) (Wikipédia)
O Palácio que desapareceu 2 vezes
Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790)
Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790) (Wikipédia)
Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790) (1ª Parte das gravuras)
Manoel Carlos de Andrade, Luz da liberal, e nobre arte da cavallaria (1790) (2ª Parte das gravuras)
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