domingo, 23 de abril de 2023

Mar da Palha (I)

Antes de entrar no Atlântico, o Tejo, como que num último esforço de resistência à fusão na imensidade do oceano, detém-se frente a Lisboa e, com a ajuda da maré-cheia, espraia-se num amplo golfo, que penetra na margem meridional, prolongando-se em diversos e irregulares esteiros.

Lisboa XXX, Maluda, 1985.

É o Mar da Palha, esse amplo receptáculo de marés, onde já não se distingue a corrente fluvial do salgado das águas que ciclicamente ultrapassam a foz, rio acima.

Durante o Quaternário, as descidas do nível marinho provocadas pelas glaciações foram acompanhadas pelo aprofundamento do leito dos rios. Ficou, assim, o Tejo entalado, no seu troço último, pelo gargalo que antecede a foz.

Bellisle looking down the Tagus (detail), John Cleveley Jnr,  1775-1776.
Bonhams

Paralelamente, à progressiva elevação das serras de Sintra e da Arrábida, correspondeu o abaixamento da dobra côncava que limita a Península de Setúbal, na sua face norte sujeita ao regime das marés, ou seja, um golfo marinho — o Mar da Palha —, onde o rio desagua, uma primeira vez, antes de se anular definitivamente no oceano.

Nesta irregular depressão que marca a banda sul do Mar da Palha recortaram-se dois conjuntos de esteiros. A montante, uma mesma abertura conduz aos amplos braços do rio que atingem Alhos Vedros, Aldeia Galega e Moita; mais a ocidente, uma segunda entrada dá acesso, simultaneamente, ao profundo sulco que fende a península até atingir o porto de Coina, término do longo trajecto da ribeira homónima, e, de forma ínvia, ao pequeno mar interior ligado ao Tejo por uma estreita embocadura entre a Ponta dos Corvos e o lugar hoje ocupado pelo Seixal.

Mar da Palha.
Mappas das provincias de Portugal novamente abertos, e estampados em Lisboa (detalhe), 1769.
Internet Archive


Esta aberta dava, por sua vez, passagem a dois recessos com diferente orientação: apontado a sul, o canal apertado entre Arrentela e Amora que recebia as águas do Rio Judeu; inclinado para Ocidente, uma diminuta baía de contornoscaprichosos encontrava o seu ponto extremo em Corroios, para onde convergiam, oriundas do interior, diferentes linhas de água.

Este espaço resguardado — que passaremos, por comodidade, a designar como «Golfo do Seixal» —, fronteiro a Lisboa, apenas separado do Tejo pela língua de areia proveniente do Alfeite, via, no entanto, dificultada a comunicação com o rio pelo acanhamento da sua barra, subsidiária do esteiro de Coina (...)

Esboços de Paizages d'Mediterraneo e Lisboa, 33.
Bahia do Seixal, Luiz Gonzaga Pereira, 1809.
Museu de Lisboa

A baía é hoje rodeada por uma mancha de sapal nas margens norte e oeste, aceitando algumas praias junto à Arrentela e à Amora. A vazante dá lugar a bancos de areia e impede, consequentemente, a circulação de embarcações.

Às duas reentrâncias respeitam equivalentes sistemas de linhas de água. Na ocidental, entre Amora e Arrentela, desagua o Rio Judeu, também ele destino final de diversos afluentes de caudais mais ou menos insignificantes. Em direcção a Corroios cursam vários ribeiros, que confluem na vala da Sobreda. 
 
Moinho de maré de Corroios.
Pimentel, Alberto, A Estremadura portuguesa

Esta borda, de recorte irregular, com aberturas dissemelhantes, prolonga-se para jusante, por um arco até ao pontal de Cacilhas (...)

A única ribeira que corta perpendicularmente o território, aparece já no interior, sulcando o Vale de Mourelos à procura da praia do Caramujo, já no Mar da Palha, junto ao Alfeite (...) (1)


(1) José Augusto Oliveira, Na Península de Setúbal, em finais da Idade Média... 2008


Leitura relacionada:
Carlos Consiglieri e Marília Abel, Os Comeres do Mar da Palha, Colares Editora,

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