terça-feira, 25 de abril de 2023

O barco de Martim Affonso (Mar da Palha II)

Vendo que passar não podia por azo da frota, chegou e mandou dizer aos de Almada, que lhe dessem a villa, e que fossem seus, que lhes faria por ello mercês. Os do logar responderam entre outras razões, que elles eram portuguezes, e não entendiam fazer mudança, mas como Lisboa fizesse, que assim fariam elles.

Chroniques de Froissart,
Siege by the Spaniards of Lisbon in 1383.

GALLERIX

Estando d'esta guisa, a cabo de três ou quatro dias, que Diogo Lopes chegou (Diogo Lopes Pacheco, um dos responsáveis pela morte de Inês de Castro, já octagenário, teria regressado de Castela para servir o Mestre. Com ele vieram os seus três filhos e trinta homens), sabendo el-rei parte de sua vinda mandou de noite encubertamente passar em galés e bateis e naus muitas gentes e besteiros e cavallos, e duas galés d'ellas foram a Margueira, que é um porto acerca da villa, e estiveram quedas.

Duas ou trés galés passaram toda a noite aquelles que el-rei mandou, e foram aportar ao cabo de Martim Affonso, acima da Mutela da Ribeira (...) (1)

Terá sido em resposta ao condicionamento da circulação de embarcações no período da vazante
(no Mar da Palha) que um Martim Afonso, em data incerta, instituiu, como obra de caridade, a fundação de uma albergaria e funcionamento de uma barca que passasse, de dia e de noite, gratuitamente, todos os que necessitassem de alcançar a outro lado do rio.

A sua localização assim o indica, precisamente o entrada do golfo que banhava os territórios da Arrentela, Amora e Corroios e para onde passaram a convergir uma série de caminhos terrestres de âmbito local. Além disso, permitia ainda a ligação pelo rio a Cacilhas.

Palmela vista da estrada da Moita, Estremadura.
Historical military picturesque..., George Landmann.
Biblioteca Nacional de Portugal

A felicidade da iniciativa, e simultaneamente a sua eficácia, ficou materializada na fortuna do próprio nome do barco e do local eleito para o seu ancoradouro. Aí cresceu no início do século XVI a povoação do Seixal, que, rapidamente, se tornaria num dos principais centros piscatórios e portuários do Mar da Palha.

Barca de São Vicente, Chafariz de Andaluz, Lisboa, 1374.

Quanto ao nome, tornou-se o referente de todos os esteiros a que dava acesso — na terminologia da documentação quatrocentista: «O Mar do Barco de Martim Afonso». Quanto ao nome, tornou-se o referente de todos os esteiros a que dava acesso — na terminologia da documentação quatrocentista: «O Mar do Barco de Martim Afonso» (2)

Diz El Rey: que Gomes Martins Doutor em leis, procurador da sua coroa, lhe enviara a dizer que no termo da Villa de Almada, haviam certos esteiros e abras nas suas terras, que todos saíam do mar donde chamam o barco de Martim Affonso os quais esteiros pertenciam à sua coroa;

Selo de cera com a Barca de S. Vicente, 1233.
Mosteiro de Santos-o-Novo maço 5 n° 815.
Cristina Micael, O sal no estuario do Tejo, 2011
cf. Os Portugueses e o Mar nos mais Antigos Documentos,
Lisboa, Banco Pinto & Sotto Mayor, 1990

e que de presente o Condestável D. Nuno Álvares Pereira (v. Nun'Alvares Pereira, bibliografia) mandava fazer neles azenhas, para as quais ia juntando os materiais, não sendo os ditos esteiros seus, pelo que requeria ao juiz da coroa que julgasse por sentença serem a ela, e nao ao dito Condestável pertencentes; e que dando-se vista ao mesmo Condestável, respondera seu procurador Pedro Affonso, dizendo:


Que El Rey fizera a ele Condestável doação da dita Villa de Almada, e seu termo, com todos os direitos , e bens anexos, e que por virtude da mesma doação podia ele fazer as ditas azenhas, como em coufsa própria, porque aqueas terras lhe foram dadas sem clausula ou condição alguma (...)

Xilogravura, Crónica do Condestabre, 2.a ed., 1554.
Iconografia do Santo Condestável

Da outra banda do Tejo, no termo da Villa de Almada, tem este Convento (do Carmo de Lisboa) a propriedade em todo o salgado, que entra do barco de Martim Affonso para dentro, sítio que também se chama Ponta dos Corvos, junto ao Seixal.


Este salgado entra daquela ponta para dentro dividido em quatro braços de mar: um deles vai para Corroyos, outro para Algenoa, outro para Amora, e em fim o outro para Arrentela, e a mesma propriedade tem em todas as abras, esteiros, terras, e aguas daquela enseada.

O canal do Rio Judeu visto da Arrentela.
Vista da Amora (à esquerda da imagem), Tomás da Anunciação, 1852
  MNAC (museu do Chiado)

Nestes esteiros deixou lá o Senhor Condestável edificado o Moinho de Corroyos, primeiro em todo aquele salgado: bem que salgados da outra banda. Moinho de Corroyos,  que pelo tempo adiante se edificarão mais quatro, alguns dos quaes o convento beneficia por si, e outros tem aforado a diferentes pessoas, que lhe pagam certas quantias de trigo, com a pensão de o entregarem no seu celeiro desta cidade (...) (3)


(1)Fernão Fernão, Chronica de el-rei D. João I, Vol. I, Cap. CXVII, Lisboa, Escriptorio, Bibliotheca de clássicos portugueses, 1897-1898
(2) José Augusto Oliveira, Na Península de Setúbal, em finais da Idade Média... 2008
(3) Frei José Pereira Santa Ana, Chronica dos Carmelitas, 1745

Leitura relacionada:
Maria da Graça Filipe, O Ecomuseu Municipal do Seixal no movimento renovador da museologia contempornea em Portugal (1979-1999)
Cristina Micael, O sal no estuario do Tejo, 2011
Carlos Consiglieri e Marília Abel, Os Comeres do Mar da Palha, Colares Editora

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