terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Os Joinville e A morte de Camões de Domingos Sequeira

O facto da ida do quadro para o Brazil encontra-se narrado por todos, diferindo somente a indicação de quem fez a oferta ao imperador.

Salão da princesa de Joinville no Rio de Janeiro, François d'Orléans 1843.
Ao centro da aguarela, A morte de Camões (1824), o quadro desaparecido de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Warburg

Segundo as informações do conde de Lavradio a Raczynski, publicadas no "Dictionnaíre" de 1847 [Dictionnaire historico-artistique du Portugal pour faire suite à l'ouvrage ayant pour titre : Les arts en Portugal], Sequeira a envoyé son tableau de la mort de Camões au Bresil à l'empereur D. Pedro". O cavaleiro Migueis, genro do artista, na carta de 1846 escreve simplesmente que o quadro existia no Brazil e foi oferecido a D. Pedro I que, em sinal de reconhecimento, nomeou o autor cavaleiro da Ordem do Cruzeiro.

Estudo para a Morte de Camões, desenho de Domingos António de Sequeira (1823-1824).
Imagem: Público

Mas já o biógrafo do "Archivo píttoresco", em 1858, repetindo idênticas informações, as liga entre si e afirma, com uma latitude diferente, que o quadro existia "segundo consta, no Brazil, tendo... sido offerecido por Sequeira ao imperador... que o agraciou por esse motivo com o habito... do Cruzeiro".

Estudo para a Morte de Camões, desenho (inversão horizontal), Domingos António de Sequeira (1823-1824).
Imagem: Público

O visconde de Juromenha em 1860 expõe quasi textualmente a mesma versão e conta que "Por fallecimento de Sua Magestade, ficou [o] painel a sua filha a. . . Infanta D. Francisca, [depois] Princeza de Joinville, que o levou para França". 

A morte de Camões, esboço de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

São preciosas estas informações de Juromenha para a história do quadro e constituem dados importantes para a pesquisa do locai onde se poderia encontrar actualmente [v. Obras de Luiz de Camões; precedidas de um ensaio biographico no qual se relatam alguns factos não conhecidos da sua vida, augmentadas com algumas composições ineditas do poeta, pelo visconde de Juromenha ].

A morte de Camões, esboço de Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

Como outras a que já me referi, suponho as fornecidas, na demorada visita que fez a Lisboa em 1859, por Manuel d'Araújo Porto-Alegre, cultíssimo diplomata e escritor brazileiro, artista erudito e competente, que tinha visto e admirado o trabalho do pintor português mostrando por êle grande interesse e que, pelas situações oficiais que ocupara no seu paiz, devia ter conhecimento das circunstâncias em que a "Morte de Camões" saíra do Brazil.

Camões e o escravo Jau,  Manuel de Araújo Porto-Alegre (1806-1879).
"Aquelle cuja lyra sonorosa / Será mais afamada que ditosa"
Imagem: Blog da Biblioteca Nacional

Também forneceu mais tarde a Sousa Holstein informações sobre os quadros de Sequeira transportados para o Rio de Janeiro na Viagem de D. João VI e que ahi se conservaram, as quaes mostram à evidência o conhecimento perfeito que o antigo professor, director da Academia de Belas-Artes e das obras dos paços imperiais daquela cidade, tinha do assunto.

Charles X distribuindo as recompensas aos artistas expositores no Salon de 1824 no Louvre,
François-Joseph Heim, 1827.
Imagem: Wikimedia

A princesa D. Francisca Carolina de Bragança, 5.a filha do imperador D. Pedro I do Brazil e de sua primeira esposa a imperatriz D. Maria Leopoldina de Áustria, casou a 1 de maio de 1843 no Rio de Janeiro com o príncipe de Joinville, Francisco Fernando [François d'Orléans], 6.° filho de Luiz Filippe de Orléans e da rainha Maria Amélia de Bourbon.

Dona Francisca de Bragança, princesa de Joinville (detalhe),
Musée de la Vie romantique, Ary Scheffer, 1844.
Imagem: The Royal Forums

É para notar que, possuindo todos os Orléans um espírito muito culto e uma grande intuição artística, herdada de sua mãe que foi discípula de Angélica Kauffmann, entre eles se distinguia Joinville, porque pintava e aguarelava com talento, era um pouco escultor e desenhava constantemente, apesar da sua vida aventurosa e movimentada.

François d'Orléans, príncipe de Joinville (detalhe).
Chateau de Versailles, Franz Xavier Winterhalter, 1843.
Imagem: REPRO TABLEAUX

O príncipe visitara pela primeira vez o Rio de Janeiro em 1838 e da segunda, antes de partir casado com a princesa D. Francisca, permaneceu algum tempo na corte, tendo demora e oportunidade para conhecer e apreciar as obras de Sequeira lá existentes.

Sua esposa, levando para França como pertença própria os "Últimos momentos de Camões", segundo as afirmações de Juromenha, conservaria depois o quadro em algum dos locais habitados por ela e seu marido. 

Os filhos de Luiz Filippe, mesmo casados, habitavam com seus pais e as respectivas famílias o palácio das Tulherias. Ás Vezes revezavam-se na residência campestre de Neuilly ou nos palácios nacionais, se é que algum não ficava temporariamente no Palais-Royal, anterior residência do duque de Orléans até á revolução de julho de 1850 que o colocou no trono, palácio que êle conservava mobilado e montado como habitação particular. 

Paris, les Tuileries le Louvre et la rue de Rivoli, Charles Fichot, c. 1850.
Imagem: Wikipédia

É histórica a vida patriarcal que levava a real família e bem conhecida a descrição da sala das Tulherias com a mesa de serão da rainha Maria Amélia, em volta da qual se sentavam todas as princesas.

Joinville, marinheiro dedicado á sua profissão, valoroso e de génio irrequieto, fazia prolongadas ausências. Promovido logo depois do seu casamento a contra-aimirante e nomeado par de França, tendo-lhe nascido os dois filhos, Francisca Maria Amélia em 14 de agosto de 1844 e Pedro Filippe, duque de Penthièvre, em 4 de novembro de 1845, já no meado deste ano assumiu o comando da esquadra de evolução, cruzou nas costas de Marrocos, bombardeou Tanger e tomou Mogador.

Mogador, l'affaire de la mosquée, François d'Orléans, 1844.
Imagem: Sotheby's

Promovido a vice-almirante e muito popular pela sua hostilidade ao ministério Guizot, a revolução de 1848 surpreendeu-o em Alger, onde estava com sua esposa servindo sob as ordens do irmão, o duque de Aumale, que era governador. 

La prise de Constantine, François d'Orléans, 1837.
Imagem: Sotheby's

No mesmo dia em que Luiz Filippe deposto desembarcava em Inglaterra, os príncipes saíam daquela cidade africana a caminho de Gibraltar, acompanhando assim o rei no seu exílio.

Habitando a princesa de Joinville com os sogros, natural é que o quadro de Sequeira, que lhe pertencia, estivesse nos aposentos do casal nas Tulherias, quando não em Neuilly, ou no Palais-Royal. Não é provável que o tivesse levado para qualquer dos outros palácios, ou para Alger.

Sequeira, (le chevalier de) rue du Faubourg-Saint-Honoré , n. 94
1564 — Sujet tiré de la vie du Camoens.
Ce grand homme, accablé par la maladie et par la plus affreuse pauvreté, etait mourant à l'hopital, lorsqu'un de ses amis vint lui annoncer la perte de la bataille d'Alcacer, la mort du roi Don Sébaslien, et celle de l'elite de la nation dans cette funeste journée, dont les suites devaient être la fin de la monarchie portugaise et de la patrie;"Au moins", s'ecrie le Camoens, se relevant sur sou lit de mort, "au moins je meurs avec elle."

Salon de la Princesse de Joinville... (detalhe).
Imagem: Warburg

Mas na revolução de 1848 a populaça, atacando e tentando incendiar as Tulherias que tomou de assalto na tarde de 24 de fevereiro, depois da fuga precipitada e desordenada da família real; ocupando-as até 6 do mez seguinte, pilhando, destruindo e conspurcando tudo quanto lá se encontrava; queimando por completo Neuilly na noite de 25 para 26, com tudo o que continha, como fez em Suresnes à magnífica "Vila" do barão Salomão de Rothschild, que estava cheia de objectos de arte e foi arrasada até aos alicerces; invadindo o Palais-Royal que roubou e destruiu á vontade; deve ter feito desaparecer para sempre a obra célebre do pintor português.

Lamartine devante a câmara de Paris rejeita a bandeira vermelha em 25 de fevereiro de 1848, Henri Philippoteaux.
Imagem: Wikipedia

Á pilhagem do Palais-Royal escaparam os quadros de Géricault "Officier de chasseurs à cheval de la garde" e "Le cuirassier blessé", que Luiz Filippe adquirira em 1824 na venda póstuma do autor e que, estando emprestados á "Association des Artistes" para uma exposição, não se encontravam casualmente na vivenda do soberano deposto e foram mais tarde, em 1851, adquiridos pelo Louvre, quando da liquidação dos seus bens privados.

Quanto ao que se passou com as obras de arte nas Tulherias, encontro nas memórias da época, escritas por lord Normanby, embaixador da Inglaterra junto á corte de Luiz Filippe e depois encarregado de tratar com os governos da revolução a que assistira e que historiou, comentando-a dia a dia, um depoimento completo, elucidativo e insuspeito, infelizmente confirmativo da minha asserção [A year of revolution. From a journal kept in Paris in 1848...]

Como se reconhece pelos extratos, nada supre a leitura destas paginas que ampliam as dos historiadores nacionais, Lamartine e Louis Bianc, modificando-lhes a natural parcialidade e constituindo a documentação mais impressionante do fim que deve ter levado o quadro de Sequeira, na posse da princesa de Joinville. O mesmo lhe terá acontecido se estava no Palais Royal; e o fogo o consumiu se acaso existia em Neuilly. 

Ainda na esperança de que tenha escapado ás contingências da revolução destruidora, por se encontrar em algum dos outros palácios ou propriedades não violadas dos Orléans (Arc-en-Barrois, Saint-Firmin, Eu, etc.), dificil é traçar-lhe a história subsequente e precisar elementos para a sua pesquisa actual. Só os próprios membros da ilustre família poderão fornecer as indicações necessárias.

Últimos momentos de Camões, Columbano, 1876.
Imagem: MatrizNet

Banidos do território da França pelo decreto de 26 de maio, foram-se juntando em Inglaterra, na residência de Claremont, os príncipes de Joinville e os duques de Nemours, de Aumale e de Montpensier. 

A duquesa viúva de Orléans, com os filhos, ficou algum tempo em Eisenach. Os duques de Montpensier pouco depois saíram de Inglaterra, estiveram na Holanda e Vieram residir para Hespanha. 

O rei faleceu em 1850. E por meados de 1852 separou se o duque de Aumale para Orléans-House, em Twickenham, que comprou a lord Kilmorey e que já de 1813 a 1815 fora residência de emigração para os pais, onde depois foi organisando um esplendido museu, hoje em Chantilly. 

"Morrer nos hospitaes em pobres leitos. Os que ao Rei e á Lei servem de muro."
Camões no leito de morte, lithographia Cupertino, 1861.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Mas o príncipe de Joinville, apesar da sua vida movimentada e aventurosa, fez sempre base de família em Claremont e a princesa aí se conservou com a sogra, suportando com estoicismo a vida difícil que lhe faziam as viagens e ausências do marido, atacado de surdez quasi completa, e depois as ao filho, duque de Penthièvre. 

Em 11 de junho de 1863 casou a filha Francisca Maria Amélia com seu primo o duque de Chartres, 2.° filho da duquesa viúva de Orléans, que também falecera em Claremont em 1858. A rainha Maria Amélia só faleceu em 1866.

Arte Gravura Morte de Camões Mort de Camoens Simon Guérin Louis Lellier BNP.jpg
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Os bens de Luiz Filippe e de sua família, liquidados em 1851, haviam sido confiscados por Luiz Napoleão em 1852 e só depois de 1870, pela lei de abrogação, que permitiu aos príncipes exilados o regresso a França, lhes fôram entregues, em consequência do Voto da Assembleia Nacional de 23 de dezembro de 1872.

O resto é história contemporânea. Apesar das leis de expulsão de 1883, a princesa de Joinville veio a falecer em 27 de março de 1898 e o marido em 16 de junho de 1900 em Paris, residindo com seu filho, o duque de Penthièvre, na Avenue d'Antin 65, ou na vivenda de Arc-en-Barrois (Haute-Marne). 

Catálogo do Salon de Paris 1824 (excerto), Domingos António de Sequeira.
Imagem: Internet Archive

Os duques de Chartres habitavam na Rue Jean Goujon 27, ou na Vivenda de Saint-Firmin perto de Chantilly. Algum dos seus herdeiros ou parentes poderá dar notícia do quadro de Sequeira, se ele escapou á revolução de 1848 e resistiu ás vicissitudes que atormentaram a vida da sua dona.

Camões doente recebe anotícia da invasão de Filipe II, Domingos Sequeira.
Imagem: Hemeroteca Digital

Sabido quanto são ilustrados os Orléans das varias gerações e como possuem, em alto grau, o sentimento artístico, não lhes terá passado desapercebido o merecimento da obra do pintor português, no caso de ainda a possuírem. (1)


(1) Luis Xavier da Costa A morte de Camões..., Lisboa, 1922

Artigos Relacionados:
Príncipe de Joinville
Domingos Sequeira, Cartuxa de Laveiras, Real Quinta, Trafaria e Cabo Espichel

Leitura relacionada:
Archivo pittoresco, 2.º Ano, n.º 12, setembro de 1858
Brito Aranha, A obra monumental de Luiz de Camões..., Lisboa, Imprensa Nacional, 1888
Visconde de Juromenha, Obras de Luiz de Camõe..., Lisboa, Imprensa Nacional, 1860
Athanase Raczynski, Dictionnaire historico-artistique du Portugal..., Paris, J. Renouard, 1847
Marquis of Normanby, A year of revolution [1848]..., London, Longman..., 1857

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