Vrbivm praecipvarvm mundi theatrvm qvintvm Georg Braun [Georgio
Braúnio Agrippinate], ao centro (n° 116) a Igreja das Chagas, á esquerda (n° 115) a igreja e convento de Santa Catarina, em baixo Igreja de S. Paulo, Franz Hogenberg (detalhe), 1598. Imagem: Wikipedia |
Rica pelas muitas esmolas de seus numerosos irmãos, floreceu por largos annos esta confraria sob a protecção do instituidor, que por suas letras e virtudes occupou na ordem os cargos de ministro do convento de Lisboa, e de provincial.
Suscitando-se, porém, desintelligencias entre os frades e a irmandade das Chagas, resolveu fr. Diogo fazer edificar egreja propria para a dita confraria.
Escolheu-se para esta fundação o alto do monte sobranceiro ao Tejo, e visinho do outro chamado do Pico, ou "Belveder", onde mais tarde se erigiu a egreja parochial de Santa Catharina por devoção da rainha d'este nome, mulher dei-rei D. João III (foi erecto este templo em 1557, e dois annos depois instituida a parochia).
Caminhou ligeira a obra, porque o zeloso e activo trinitario não descançou emquanto a não viu concluida, dizendo a primeira missa em o novo templo no dia 30 ele novembro de 1542.
Pelos muitos creditos que tinha em Roma, alcançou o fundador uma bulla do papa Paulo III, concedendo à egreja das Chagas as honras de parochia, com permissão de administrar todos os sacramentos aos maritimos, e dando faculdade á irmandade para nomear capellão, e ter contiguo um hospital para os feridos e enfermos das armadas.
Entre outros privilegios mais concedidos pelo mesmo pontifice, e confirmados por bulla de Urbano VIII, de 23 de outubro de 1623, mencionarcmos um muito honorifico, que foi ser annexada a egreja das Chagas à basifica laterancnse de Roma, com isempção do ordinario, segundo as disposições do concilio tridentino.
Igreja das Chagas Lisboa em 1650 (detalhe). Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Fez-se com grande pompa a trasladação da confraria, saindo esta em procissão com mui ricos andores, e musicas, da egreja da Trindade para a das Chagas, no dia e anno acima referidos. Para que se julgue do esplendor d'esta solemnidade, e da importancia e grandeza da confraria, diremos que contava n'esse tempo, e levava n'aquella procissão uns oitocentos irmãos. (1)
Um dos encantos da nossa Lisboa são os sinos; parecem ás vezes marimbas ethéreas tangidas pela mão dos Seraphins. Pois entre os mais agradáveis e crystallinos campanários figura o das Chagas, o dos tão sonoros tão contentes sinos!
Os seus repiques e menuetes choram tristezas fúnebres a quem vai rio a baixo, dizendo adeus, sem saber por quanto tempo, ao esplendido panorama de Lisboa ; sim, mas quantas alegrias não expandiam, ao repicarem, como era seu officio, quando entravam o Tejo as naus da índia ! quando a alvoroçada Lisboa communicava a noticia de casa em casa! quando toda a população corria para a Ribeira!
O relógio é que não gosava de grande reputação, coitado, a julgal-o por um ditado plebeu: "Em mulher de Alfama, homem do mar, relógio das Chagas, não ha que fiar" [...]
P.e António Vieira (1608-1697) por Arnold van Westerhout. Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal |
Se a voz dos sinos é tão agradável nas Chagas, outra voz mais bella ressoou n'aquella abóbada: foi a do Padre Antonio Vieira em 14 de Setembro de 1642, prégando ali n'uma festa de Santo Antonio. (2)
Não sobresaía a egreja das Chagas em sumptuosidade de construcção, nem em bellezas de arcbitectura, mas sim na riqueza das alfaias e paramentos. Com as offerendas que continuamente lhe faziam os navegadores, com especialidade da India e do Brasil, foi adquiriudo muitas e custosas peças de prata, e paramentos bordados e franjados de oiro com extremada perfeição.
Igreja das Chagas, Grande Panorama de Lisboa Azulejo (detalhe), c. 1700. Imagem: Flickr |
Succedeu, porém o terremoto do 1.° de novembro de 1755, e perdeu-se quasi ludo isto. A egreja arruinou-se aos primeiros abalos, e depois ateou-se n'ella o fogo, que a reduziu a cinzas. Apenas se salvou alguma pouca prata, e quatro imagens santas.
Igreja das Chagas em Vistas panorâmicas de Lisboa antes do terramoto (detalhe), C. Lemprière, 1756. |
Foi estabelecer-se provisoriamente a confraria na capella da quinta Nova, a Sete Rios, propriedade então de Bento Gonçalves Forte. Conservou-se ahi até junho de 1756, em que se passou para uma ermida, que mandára construir de madeira no sitio dos Cardaes, na Cotovia, emquanto se procedia á reedificação do seu antigo templo. Assim que este se concluiu, voltou para elle.
A egreja das Chagas está no districto da parochia da Encarnação. Como se ajuizará á vista da gravura que apresentamos, é um templo de modesta architectura no exterior, mas bem ornado interiormente, posto que com singeleza, e sobre tudo notavel pelo seu muito aceio. Os seus rendimentos estão hoje mui cerceados, porque a irmandade das Chagas de Jesus já não é numerosa, como outr'ora, nem dispende tanto com o culto divino. Todavia fazem-se n'ella os officios regullares, e algumas festividades com bastante decencia.
Egreja das Chagas, gravura de João Pedroso, 1863. Imagem: Hemeroteca Digital |
Possue esta egreja o corpo de Santo Urbano, que d'antes se achava depositado na capella da casa visinha, de que é proprietario o sr. Casal Ribeiro, e que este cavalheiro fez transferir, ha alguns annos, para aquelle templo.
A egreja tem o frontispicio voltado para oeste. Como está edificada na crista do monte, o seu adro é pequeno, porém mui lindo pelas arvores que o assombram para o lado do sul, e principalmente pelo delicioso painel que os olhos d'alli relanceiam.
A cidade, descendo por valles e subindo por encostas até Belem; o Tejo espraiando-se magestosamente, como um golfo, até se ir confundir com o Oceano por entre as fortalezas que lhe defendem a foz; os mo montes de além com suas quintas e povoações guarnecendo-lhes as faldas, ou surgindo das quebradas, ou coroando-lhes as alturas, e mais longe a serrania da Arrabida: tal é esse painel encantador. (3)
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Em 1898, se não me engano, consentiu a Camara, por motivos de certo muito transcendentes, mas que ficaram desconhecidos, um roubo artistico feito a um dos mais bellos miradoiros de Lisboa: permittiu o alteamento de um grande prédio do pateo do Pimenta, por forma que interceptou a vista para sueste.
Panorâmica de Lisboa e do rio Tejo vendo-se a igreja das Chagas de Cristo, 1905. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Não creio que andasse bem, nem o proprietário pedindo e acceitando a licença, nem a Camara concedendo ao interesse financeiro de um influente politico, o sr. Conselheiro José Dias Ferreira, submetteram-se considerações de ordem mais nobre: os direitos do Bello. Emfim, se o publico perdeu uma parte do espectáculo, o inquelino do dito proprietário ganhou-a. E uma compensação.
Igreja das Chagas de Cristo, Mário Novais, 1949. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Como chronista e procurador officioso da Cidade, cabe-me o direito de dizer n'isto o que penso. A lettra redonda tem os seus fóros. Uma coisa é usar da imprensa; outra muito diversa é abusar.
Hoje, que tanto se fala da Arte, hoje que ha um Conselho superior de monumentos, hoje que bellissimas escolas industriaes e artísticas florescem em toda a parte, espalhando nas classes populares conhecimentos que ellas d' antes não possuíam, hoje que tanto se pensa no aformoseamento e saneamento da Capital, pergunta o imparcial bom senso: deveria o Município ter consentido aquelle biombo, aquelle empacho, num dos sítios mais desafogados e pittorescos da Cidade? e deveria um cidadão do mérito do sr. José Dias Ferreira, antigo Lente de Direito publico, antigo Ministro, Presidente do Conselho, legislador, pedir (ou acceitar sequer) aquella concessão?
Lisboa, zona da Bica, Artur Pastor, década de 1960. A igreja das Chagas de Cristo e as torres da igreja de São Paulo. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Francamente respondo: não devia acceital-a o particular, e não devia a Camara concedel-a. Para dar vista a meia dúzia de janellas do prédio de um só individuo, permittiu-se que fosse vilipendiado o direito de nós todos. Foi-nos expropriada, sem vantagem nossa, e contra todos os dictames do bom senso, da justiça, e da equidade, uma vasta propriedade que disfructavamos desde séculos.
E entendo mais: entendo logicamente que, de ora em diante, não ha considerações que impeçam os outros donos dos terrenos da vertente de construírem para leste e sul, afogando o largo das Chagas em edificações de mestre de obras, e acabando de vez com os restos do prospecto que ainda d'ali se gosa.
Do Alto das Chagas Lado S., c 1900. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
O sr. Conselheiro José Dias Ferreira, proprietário opulento, não precisava da migalha que lhe rende o andar que levantou, para augmentar os seus haveres; e, como homem de talento laureado e indiscutível, não precisava d'esse monumento para sua gloria. (4)
(1) Ignacio de Vilhena Barbosa, Archivo Pittoresco, Tomo IV n.° 6, 1863
(2) Julio de Castilho, Lisboa Antiga Vol. II
(3) Ignacio de Vilhena Barbosa, Idem
(4) Julio de Castilho, Idem
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