terça-feira, 9 de janeiro de 2018

História do Marechal Saldanha (1790-1876): Lutas Civis

Constituída em 1834 a liberdade da nação portugueza para nunca mais perecer, começava a pratica das instituições, imperfeita no desenvolvimento como obra humana, mas civilisadora na missão e progressista nos resultados. 

Retrato de D. Pedro IV (detalhe), John Simpson, após 1834 (MNSR).
Imagem: Parques de Sintra

Só a escravidão politica é isenta de imperfeições nos seus mechanicos movimentos, que obedecem à lei de uma só vontade, imposta a um rebanho de seres, não a uma sociedade de homens. 

Dividiu-se a gente liberal [v. A Belemzada, Lisboa 1836]. 

Retrato de D. Maria II (detalhe), John Simpson, c. 1837.
Imagem: Wikipédia

Entendiam uns que, n'aquelle tempo, a Carta Constitucional continha a totalidade das liberdades necessárias ao progresso da nação e ás regalias dos cidadãos, receiando que o ultrapassar os limites d'ella abrisse para as mesmas liberdades os perigos de 1820.

Não concordavam outros no receio, e opinavam por constituição mais larga. Estes se appellidaram setembristas, porque, logo dois annos depois, em setembro de 1836, conseguiram levantar na capital o grito da revolução que logrou a victoria [v. O partido setembrista, Lisboa 1836].

Receberam o nome de cartistas os que perfilharam a idéa contraria. D'esta divisão se originou a serie de revoluções durante quinze annos a que veiu pôr termo a regeneração em 1851 [...]

Victoriosa em Lisboa a revolução de setembro que tinha por chefe a Passos Manuel, jurada pela rainha m a constituição de 1823 com as alteraçoeg que um fur toro congresso lhe introduzisse, tentaram resistir os cartistas [v. Manoel da Silva Passos, Lisboa 1836].

Manuel da Silva Passos (1801-1862) 01.jpg
Imagem: issuu

Nenhum dos dois marechaes tinha prestado juramento á nova ordem de cousas, e Saldanha escrevendo ao ministro da guerra, declarava que assim procedia para se reservar a faculdade de a combater.

Vila da Ponte da Barca, 1864.
Imagem: Hemeroteca Digital

A 12 de julho de 1837 insurgia-se um batalhão de caçadores na villa da Barca, e em differentes pontos do reino rebentavam outros levantamentos [...] (1)

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No dia 22 de dezembro de 1846 deu-se a batalha de Torres Vedras.

Torres Vedras.
Historical military picturesque... George Landmann.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Duque de Saldanha tomara o pulso á revolução. Era de facto uma revolução popular de sangue vivo do paiz e com homens á sua frente: Sá da Bandeira, conde das Antas, conde de Bomfim e o velho general Álvaro Xavier Coutinho da Fonseca e Póvoas, soldado portuguez de que elle, Saldanha, mais se arreceava.

Póvoas provou-lhe bem quanto valia nos desfiladeiros, valles e chapadas da Serra da Estrella.

Decorrido mais de meio século de paz podre, não se calcula hoje o que eram as paixões politicas d'aquelle tempo. Estou convencido, como já disse por vezes no percurso d'estas Memorias, que o medo d'essas paixões, que tinham rompido nos maiores ímpetos dez annos antes nos dias torvos da Revolução de Setembro e da Belemzada, é que levou os caudilhos da Maria da Fonte a ter mão n'um golpe decisivo, golpe que, sem abalar as instituições, poria em grave risco a coroa de D. Maria II.

Voltarei a este assumpto.

No dia 22 de dezembro de 1846 o duque de Saldanha achava-se porventura na situação mais difficil de toda a sua longa e brilhante carreira militar.

Na frente — Torres Vedras — estava o conde de Bomfim com a divisão onde havia soldados escolhidos, officiaes intelligentes e bravíssimos, tendo por chefe do estado maior nem mais nem menos do que Luiz Mousinho de Albuquerque [...]

Torres Vedras from the North-West.
Historical military picturesque... George Landmann.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Conde de Bomfim, comquanto a sorte nem sempre lhe fosse propicia no campo da batalha, era destemido e general illustrado.

A lenda do confessionário e da bandeira preta seria irrisória se nâo tivesse o fel da calumnia [segundo Oliveira Martins, baseado em João de Azevedo, Os dois dias de Outubro, ou a história da prerrogativa, "dizem que ao começar a batalha o pobre general sempre infeliz se escondera numa igreja, metido num confessionário, com uma bandeira preta cravada no telhado a indicar um hospital de sangue"].

Na rectaguarda, a dois passos, Saldanha tinha em Tagarro, Alcoentre, Cercal, o conde das Antas, "que o podia e devia entalar a cada momento contra as posições invencíveis de Torres Vedras".

Os rapazes da Maria da Fonte, rapazes e velhos, bateram-se com desenganada bravura. A matança foi terrível!

A batalha começou pelas onze da manhã. N'um relançar de olhos, Saldanha viu que a tomada do forte de S. Vicente era o ponto capital do assalto. O conde de Bomfim tinha lá dois mil homens da flor da sua gente.

O duque, esfregando as mãos (todos os homens de guerra teem o seu tique, o d'elle era este) bradou:

— A artilheria? 
— Ainda não chegou.
— Ximenes? 
— Marechal!
— O Sola que tome com a brigada o forte de S. Vicente á baioneta [...]

Torres Vedras, Morro do Castelo e Rio Sizandro.
Imagem: Delcampe - Bosspostcard

Apesar da noite tormentosa, dos caminhos de Torres Vedras n'aquelle tempo, a noticia de Saldanha ter ganho a batalha chegou a Lisboa com espantosa rapidez.

Logo de manhã o aspecto da cidade tornara-se sepulcral. Nem os próprios vencedores se atreviam a manifestar as alegrias da victoria. Centenas de pessoas tinham nos dois campos parentes carnaes e amigos. Havia como que um cheiro a sangue e a morrão de enterro.

Mulheres, mães, irmãs, amantes, reviam no rosto contrahido pela anciosa incerteza alguma coisa da loucura, e, não raro, faziam perguntas desvairadas!

No crescer do dia chegavam ao hospital da Estrella os feridos, alguns moribundos.

Os grilhetas, a legião sombria d'aquelles desgraçados que andavam a dois e dois pelas ruas, atrellados como cães por grossas correntes, foram separados para serviço das macas.

Que préstito fúnebre [...]

A extrema anciedade que agitava a capital seguiu-se a apathia morna que sobrevem nas grandes catastrophes.

A chegada dos presos de Torres Vedras a Lisboa e a entrada d'elles nas presigangas [navios presídio] do Tejo augmentou ainda o tom mortuário da capital.

Uma necropole!

Quando algum raro dia d'aquelle tempestuoso inverno rutilava todo azul e oiro, faiscando na Tejo, illuminando os quintaes e as hortas da cidade, Lisboa era porventura mais triste. Ermas as ruas, desertas as praças, janellas cerradas.

Aqui e além ouviam-se as risadas crystallinas do rapazio desenfreado, com bandeiretas de farrapos, espadas de canna, divididos em dois bandos, simulando a batalha das vésperas e prenunciando as que deviam seguir-se.


As creanças a foliar no meio das grandes tragedias comprimem-nos amargamente o coração, porque nos lembram o durum genus, a ferocidade da origem humana!

Via-se a cada passo, não só a tristeza, mas a miséria impacta nas physionomias [...]

Os operários absolutamente sem trabalho, todos os géneros de primeira necessidade pela hora da morte; nenhuma transacção commercial.

Os empregados públicos, com muitos mezes de atraso, acudiam a rebater os ordenados por um desconto enorme.

Quantos d'esses empregados, que pertenciam a diversos batalhões, vi eu trazerem, em pleno dia, debaixo do braço, o pão de munição para o repartirem pela familia.

Supplemento Burlesco ao Patriota, 1847.
Imagem: Hemeroteca Digital

As notas do banco trocadas por menos de metade do seu valor; os cabos de policia deitando mão aos moços adolescentes, sem distincção de classe, para lhes sentarem praça no exercito da rainha.

Depois da batalha, como já disse, os próprios adversários não se atreviam a celebrar ruidosamente o enthusiasmo do triumpho.

Só a rainha não poude ter mão em si. Quando a guarda de honra chegou ás Necessidades, D. Maria II, abrindo com as próprias mãos a realenga sacada, na sua voz sonora e vibrante de jubilo, clamou:

— Victoria, rapazes!

Os cabellos, em saccarôlhas, fluctuavam ás refregas da quadra tempestuosa, as rosas da mocidade saltavam-lhe das faces accesas pela commoção da victoria. O que podem as paixões politicas!

Esta senhora, exemplo de esposa e de mãe, não se lembrava de tanta viuva e de tantos órfãos; de Mousinho de Albuquerque, gloria da pátria e amigo de seu pae nos dias da adversidade; do sangue fraterno que tingia a corrente arrebatada do Lisandro na força da invernia.


Torres Vedras, Rio Sizandro, Marques Abreu, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Alguns cortezãos quizeram negar o facto, mas foram obrigados a engulir o impudor da lisonja, porque o facto teve por testemunhas centos de pessoas e uma d'ellas fui eu [...]

A inabalável dedicação á sua pessoa lh'a provaria o duque d'alli a cinco annos, na noite de 15 de maio de 1851, no theatro de S. Carlos, obrigando-a a tragar o boccado mais amargo de toda a sua vida, sacrifício que ella fez com senhoril e regia dignidade [v. A ditadura regeneradora de Saldanha ...] (2)

Marechal Saldanha, capa dos livros de Barbosa Cohen Entre duas revoluções 1848-1851, volumes I e II (detalhe).
Imagem: University of Toronto

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Depois de 6 de outubro, Antas e Sá da Bandeira entraram na lucta, suppondo que a rainha fraqueasse vendo a altitude do paiz, e, sem o seu apoio, Costa Cabral baqueava para sempre do poder.

Com Saldanha tornava-se fácil qualquer accordo, voltivolo e malleavel como sempre foi em politica. A coisa, porém, mudava de aspecto.

O Espectro n° 49, 18 de maio de 1847.
Imagem: Hemeroteca Digital

O sangue accendeu as paixões, e a tenacidade da rainha converteu a ira dos adversários em rancor entranhado. Se os da Junta entrassem em Lisboa, a soberana, antes de abdicar, teria de refugiar-se n'uma nau ingleza.

Como todos os homens da emigração e do Porto, Sá da Bandeira e Antas amavam D. Maria II. 

Entrada apenas na adolescência, intelligente, formosa, expatriada, uma creanca quasi, fora a estrella polar, ou, direi antes, a noiva immaculada e espiritual da grande revolução. Receavam que a democracia exaltada, na sua justa cólera, lhes abatesse o idolo!

Periclitavam acaso as instituições quando a rainha abdicasse?

Quem falava n'esse tempo em Republica, não digo só em Portugal, mas em toda a Peninsula? Além dos Pirineus, a revolução de 1848, movimento imprevisto e ephemero, ainda estava longe.

Incendie du Château-d'Eau, place du Palais royal, le 24 février 1848, Eugène Hagnauer.
Imagem: Pinterest

Para mim é fora de duvida que a Maria da Fonte não triumphou pela tibieza das espadas d'esses dois homens.

Os académicos apertavam com Sá da Bandeira. Queriam combater:

Somos jovens, livres somos,
Somos de mais portuguezes,
O dever nos chama á guerra,
Affrontemos seus revezes!

Chegou o dia 1 de maio de 1847. Dia luminoso de primavera. As primeiras frechas de sol batiam nas serranias do Alto do Viso.

Vista de Setúbal, fotografia n° 18 do Album pittoresco e artistico de Portugal.
Imagem: Biblioteca Nacional Digital Brasil

Quantos veriam aquelle sol pela derradeira vez!

Os clarins tocavam a alvorada no campo inimigo, e os académicos, na guarda avançada, trepavam o monte cantando:

Quando da pátria
Soa o clarim
Ninguém nos vence,
Morremos, sim!

Tiros das avançadas, crescer do fogo, calar baionetas; cavallos á carga ; troar dos canhões. Combate rápido, mas tigrino.

Castello-Branco, uma das nossas melhores espadas, aleijado da mão direita nos assaltos do Porto, matou com um tiro de pistola o Pancada, também um valente. Pancada era do campo de Sá da Bandeira; Castello-Branco do Vinhaes.

Galamba, o guerrilheiro, o dragão, acudiu a vingar o seu camarada, e decepou a cabeça de Castello-Branco com uma tremenda cutilada.

Fernando Mousinho, commandante dos académicos, que perdera o pae em Torres Vedras, cahia ás primeiras descargas, atravessado pelos peitos, como havia dez annos tombara no Chão da Feira com egual ferimento. Joaquim Guedes de Carvalho e Menezes, da casa dos condes da Costa, teve o braço partido por uma bala de fuzil. 

Os académicos deixaram cinco dos seus camaradas no monte ensanguentado. Dois d'elles fôram assassinados depois de prisioneiros.

Nas quebradas umbrosas do Alto do Viso quem, noite cerrada, vae subindo de Setúbal para Azeitão, lá descobre uma luz como estrella pallida, luz que vem de uma ermidinha onde os dois inimigos, Pancada e Castello-Branco, descançam abraçados na paz da morte [...]

Na tarde de 1 de maio de 1847 a aragem do sul trazia a Lisboa os echos do canhão do Sado.

Ao Terreiro do Paço, noite alta, chegavam as macas com os feridos, alguns moribundos.

Lisboa, Praça do Commercio, gravura de João Pedro Monteiro (1826-1853) c. 1850.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Sangue em Torres Vedras, em Val-Passos, em Vianna do Alemtejo, nas ruas de Lisboa, no Alto do Viso! [...] (3)


(1) D. António da Costa, História do Marechal Saldanha, Tomo I, Lisboa, IN, 1879
(2) Bulhão Pato, Memórias Vol. III..., Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907
(3) Bulhão Pato, Idem

Mais informação:
Marques Gomes, Luctas caseiras: Portugal de 1834 a 1851, Lisboa, Imprensa Nacional, 1894
Charles Napier, An account of the war in Portugal between don Pedro and don Miguel, 1836
John Smith Athelstane (Carnota), Memoirs of Field-Marshal the Duke de Saldanha I, 1880
John Smith Athelstane (Carnota), Memoirs of Field-Marshal the Duke de Saldanha II, 1880
Barbosa Cohen, Entre duas revoluções 1848-1851 I, Lisboa, Manuel Gomes, 1901
Barbosa Cohen, Entre duas revoluções 1848-1851 II, Lisboa, Manuel Gomes, 1902
Guerra Civil Portuguesa
Cronologia do Liberalismo

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