segunda-feira, 6 de junho de 2016

Marinha do Tejo

Começàmos hoje a publicar a serie dos barcos de transporte que navegam no Tejo, desde o catraio até á fragata, desenhados do natural, com toda a exacção, pelo sr. Pedroso, e por elle mesmo gravados.

João Pedroso, Revista Illustrada, anno 1, n° 17, 1890.
Imagem: O Archivo Pittoresco e a evolução da Gravura de Madeira em Portugal

É mui variada, no casco e no apparelho, esta serie de embarcações, a que chamaremos "marinha do Tejo", se é que lhe não deviamos antes chamar marinha pequena, já que não temos marinha grande...

Não affiaçàmos, porém, que a nomenclatura de taes embarcações sáia rigorosa, porque, se o lapis do nosso artista conseguiu roproduzir a fórma e velame dc todos estes barquinhos do Tejo, outro tanto não podêmos nós conseguir quanto á denominação e origem de alguns d'elles.

Começando pelos catraios, que são os mais pequenos, a d'onde nós chamâmos geralmente catraeiros aos barqueiros, vemos que esta denominação não é muito antiga, porque não vem similhante vocabulo nos nossos bons auctores maritimos, sendo tão copiosa a lingua portugueza em termos nauticos. O alvará do tempo do marquez de Pombal (1765), que abaixo transcreveremos, diz que os "catraios" se tinham introduzido por aquelle tempo, e em tal quantidade, que por serem mui pequenos, e governados por gente ignorante, succediam muitas desgraças e avarias no Tejo, pelo que foram mandados queimar por ordem do marquez de Pombal, determinando-se qual havia de ser a lotação dos botes que, em logar dos catraios, se podiam construir. 

Eis o que dizia o alvará:

"Eu el-rei faço saber aos que este alvará virem, que sendo-me presentes em consuIta do senado da camara os graves inconvenientes que resultam do uso das pequenas embarcaçoes chamadas botes, ou catraios, que de tempos a esta parte se tem introduzido para os transportes que se fazem no Tejo; tendo causado por uma parte frequentes perigos as vidas das pessoas que n'eIIas se transportam; não so pela pouca segurança das mesmas embarcações, mas tambem pela ignorancia das pessoas que as governam. E pela outra parte destinando-se como mais proprias para as clandestinas conducções, e descaminhos das fazendas de contrabandos. Para cessarem de uma vez os referidos inconvenientes, sou servido prohibir, da publicação d'este em diante, o uso das referidas embarcações pequenas, permittindo somente o daquellas que são necessarias para o serviço dos navios: e mando, que todas as que ficam exeptuadas, em transgressão do disposto n'este alvará, sjam logo aprehendidas, e queimadas por ordem do senado da camara da cidade de lisboa, nas praias a ellas adjacentes: e que os proprietarios das mesmas embarcações, incorram alem da pena do perdimento d'ellas, na de seis mil réis applicados para as despesas do senado, e na de prisão pelo, espaço de vinte dias pela primeira vez: aggravando-se-lhes em dobro, tresdobro, e mais á proporção das relácias, as referidas penas nos casos de reincidencia. Sou servido outro sim determinar, que as embarcações que se occuparem nos transportes que se fazem de  Lisboa para Belem, e mais portos da sua visinhança, sejam construídas na conforntidade das formas e medidas, que vão declaradas no papel que baixa com este, assignado por Francisco Xavier de Mendonça Furtado, ministro e secretario de estado dos negocios da marinha e dominios ultramarinos."

As medidas a que se refere este alvará são as seguintes:

"Devem as mais pequenas embarcações d`estes transportes ter de bocca, no menos, 7 pés. De comprimento de roda a roda, ao menos 28 pés. A popa sera larga como do falua. O rodo da fôrma sera bem redondo á proporção da bocca para poder aguentar. E não poderá trazer qualquer destas embarcações mais que uma vela e um muletim."

Em cumprimento deste alvurá, o senado publicou um edital, para que todos os botes ou catraios, incursos na queima ordenada pelo alvará, se juntassem na prata de Santos, sobre graves penas. Ahi se lançou fogo a todos, o qual durou por muitos dias.

Os botes que de novo se construiram, segundo as medidas indicadas, ficaram-se chamando "catraios", tem uma so véla, e dois remos. Véde-o na estampa, que lá vem elle pela proa de um bote cacilheiro, do qual para o seguinte artigo se dará noticia.

Catraio e cacilheiro, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Com a preciosa coadjuvação da capitania do porto, e da repartição do imposto municipal denominado "tramagalho" esperàmos poder esboçar uma historia curiosa de tantas embareaçõesinhas, quasi todas mui veleiras e airosas. (1)

Já dissemos, e se viu na gravura antecedente, que o bote de catraiar, ou catraio, como d'antes lhe chamavam, é a mais pequena embarcação de vela de quantas navegam no Tejo, apesar de os haver com capacidade para 15 passageiros, todos debaixo de toldo. Muitos d'estes botes, principalniente os do cáes do Sodré, alem da vela triangular de espicha, armam uma bojarrona á proa, e uma mezena á ré; com este panno ficam muito airosos e veleiros. Quando não tem vento armam dois, quatro, e às vezes seis remos.

Já se vê, pois, que hoje não ha botes tão pequenos e perigosos como aquelles, que por este motivo, mandou queimar o marquez de Pombal. 

Os catraeiros são por lei, tambem pombalina, obrigados a fazer exame perante o capitão do porto, sem o que a camara lhe não concede a licença necessaria para catraiar.

O bote cacilheiro, é o gigante dos catraios; rijo de borda, aguentando muito mar, e com alterosa vela triangular, não de espicha, mas içada ao tope do mastro, e engatada na proa, impina-se arrogantemente para ré. Enfunada com a grande corda de vento que apanha d'alto abaixo, arroja o bote num apice de Lisboa a Cacilhas, que é o seu porto. Antes da instituição da companhia dos vapores do Tejo, em 1838, os botes cacilheiros faziam carreiras alternadas com as faluas; hoje ha muito poucos, e nas horas desencontradas das viagens dos vapores da companhia é que fazem algumas carreiras.

Actualmente ha uns 300 botes matriculados em Lisboa.

A falúa tem duas velas, tambem triangulares ou latinas, mui altas, tendo a de ré duas escotas. É uma embarcação valentissima, e d'antes tinham quasi exclusivamente as falúas a carreira de Lisboa a Cacillias, tomando os passageiros no caes das Columnas da praça do Commercio. Com a instituição da companhia dos vapores, foram as falúas desapparecendo d'este caes, umas compradas pela propria companhia, para se desfazer d'ellas, e outras porque tomaram diverso destino, empregando-se no transporte de generos em differentes portos do Ribatejo.

Falúa, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Para Aldêa-Gallega, Moita, Alcochete, e Barreiro, ainda ha carreiras de falúa. As que estão matriculadas sao apenas umas 20.

A falúa, além das duas velas, tem quatro remos, de que pouco se serve, por ser embarcação pesada: algumas vezes armam os remos para ajudar a vela, quando o vento não é de feição. (2)

Todos os barcos que navegam no Tejo pagam um imposto á camara municipal de Lisboa, chamado do "Tramagalho", imposição antiquissima, e tanto que se lhe perdeu já a etymologia, sem que os esmirilhadores de antiqualhas tenham até agora podido atinar com a derivação d'este nome.

A camara, em consulta de 28 de julho de 1852, propoz ao governo um formulario do que deviam pagar todas as embarcações que navegassem no rio de Lisboa, ou viessem a seus portos, o qual foi approvado pela regia resolução de 17 de setembro do mesmo anno.

Ei-lo aqui, como parte integrante da histotia d'esta marinha do Tejo.

De cada viagem que fazem a esta cidade os barcos de Villa-nova, pagam 200 rs.

De cada viagem que fazem os de Abrantes, Punhete, Tancos Barquinha, Chamusca, Azinhaga, Santarem, Escaropim, Salvaterra, Porto de Muge, Virtudes, Samora e Benavente, 150 rs.

De cada viagem que fazem os barcos de Povos, Villa-Franca, Alverca, Póvoa, Savcavem e Friellas,  100 rs.


Os barcos de Abrantes, Punhete, Tancos Barquinha, Chamusca e Azinhaga, pagam além de 150 rs. acima referidos, mais, de uma avença muito antiga, a que chamam "cabo de anno", pelas viagens que fazem aos portos do termo até Paço d'Arcos, 1:000 reis. 


Todas as embarcações dos portos acima declarados, que fazem viagens de verão, que vem a ser: conduzir palha ou fruta para esta cidade, o qual verão principia desde o dia de S. Pedro até á feira de Villa-Franca; não pagam n'este tempo por viagens, mas sim por avença que vem a ser:

Cada barco, 4:000 rs.
Cada bateira ou lancha, 3:000 rs.
Cada batel, 2:000 rs.

Os barcos do Samouco Alcochete, Aldea-Gallega, Moita, Lavradio, Alhos-Vedros, Barreiro, Aldea de Pae Pires, Seixal, Cacilhas, Porto Brandão, Trafaria, Coina, Cascaes, e Paço d'Arcos, pagam por ajuste.
As falúas, pagam 1:400 rs. por-anno.
As falúas que andam nas carreiras para Cacilhas, 2:000 rs.
Os barcos de Moios, 1:200 rs.
As fragatas, 1:000 rs.
Os botes, a 960 e 800 rs., conforme a sua grandeza.

Bote d'agua acima, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Os barcos chamados d'agua a cima, cuja forma a nossa estampa representa, pertencem ao terceiro ramo d'esta tabela. (3)

Com o nome de aveiros, e não de saveiros, são estes barcos denominados na mesa do imposto chamada do Tragamalho. Talvez seja corrupção do primitivo nome que tinham quantos barcos vem ao Tejo da cidade de Aveiro, que são muitos.

A savara tambem mostra ter a mesma procedencia, mas estes tem quilha, e vão fóra da barra ajudar as moletas na pescaria.

O alijo traz na sua denominação o destino que tem, que é alijar, descarregar os barcos que não podem atracar. Ha tambem alijos de vela.

Saveiro, alijo e savara, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital
Todas estas tres embarcações foram escrupulosamente copiadas dos onginaes, pelo nosso exímio gravador o sr. Pedroso, que é tambem um peritissimo pintor de navios. (4)

Depois dos botes são os varinos os que em maior numero sulcam o Tejo. Esta denominação que elles tem no vulgo não vem em nenhum diccionario da lingua, e tambem na repartição do imposto que elles pagam em Lisboa tal se lhes não chamam, mas aveiros, nome generico para todos os barcos que vem do districto de Aveiro. Estão actualmente registados e avençados na repartição municipal de Lisboa 431 varinos ou aveiros.

Varino e monaio, gravura, João Pedroso, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

O monaio é uma especie de varino da mesma procedencia, mas tem diversa armação, como bem mostra o que esta desenhado na estampa, ao mar do varino.

Pela seguinte curiosa estatistica, que na citada repartição nos ministraram obsequiosamente, vemos que a marinha do Tejo se compõe ao presente de 1:143 vélas. (5)


Embarcações registadas e avençadas na repartição do Tramagalho, Lisboa, 1860.
Imagem: Hemeroteca Digital

Chamam aqui no Tejo a estes barcos, "dos moinhos" ou de "moios", porque se destinam especialmente a conduzir as farinhas do Ribatejo para Lisboa.

Os barcos dos moinhos são mais airosos que as falúas com as quaes todavia se parecem. Tem como ellas duas velas, porém mais baixas e mais largas: os mastros sao inclinados para a proa, por isso escusam de bujarrona.

Barco de moinho, gravura, João Pedroso, 1861.
Imagem: Hemeroteca Digital

Segundo a estatistica que já publicamos, ministrada pela mesa do Tragamalho, ou da imposição das embarcações, na camara municipal, ha no Tejo 34 barcos dos moinhos, e a sua amarração é no caes do Tojo, proximo ao terreiro do Trigo. (6)


(1) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 31, pág. 247
(2) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 33, pág. 261
(3) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 36, pág. 285
(4) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 41, pág. 325
(5) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1860, n° 48, pág. 380
(6) Hemeroteca Digital: Archivo Pittoresco, 1861, n° 9, pág. 70

Artigo relacionado:
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Informação relacionada:
As embarcações tradicionais do Tejo

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