segunda-feira, 14 de agosto de 2017

Nossa Senhora do Monte e São Gens

Quem quiser gozar uma das mais lindas vistas da nossa querida Lisboa, não tem mais do que subir a calçada da Mouraria, travessa do Jordão (escadinhas), quebrar à esquerda o largo das Olarias, subir, à direita, a íngreme calçada do Monte e, chegando ao topo, virar à esquerda, de onde, consoante disse acima, se desfruta um lindíssimo panorama da nossa Lisboa, sem jeito de reclamo ao livro de Matos Sequeira e Luiz Pastor de Macedo que, com este título "Nossa Lisboa", foi publicado há pouco.

Vrbivm praecipvarvm mundi theatrvm qvintvm Georg Braun  [Georgio Braúnio Agrippinate], ao centro a Senhora do Monte e S. Gens, o Castelo de S Jorge e a igreja de S. Mamede, á esquerda a igreja da Conceição Velha,Franz Hogenberg (detalhe), 1598.
Imagem: Wikipedia

Ora, quem vai a êsse elevado ponto da capital pode visitar a ermida de Nossa Senhora do Monte e S. Gens, de que vamos dar pequena notícia bebida num folheto de Joaquim José da Silva Mendes Leal, escrito em 1860 [Descripção histórica da Ermida de Nossa Senhora do Monte e S. Gens...] e dedicado à memória da rainha D. Estefânia e reeditado em 1893.

Não nos foi possível encontrar elementos mais modernos para sobre êles fazermos melhor referência, mas o que aqui fica deve dar nota do que é êsse pequeno edifício religioso que foi fundado no comêço do século XIII.

Grande Panorama de Lisboa (detalhe), Senhora do Monte e S. Gens e castelo de S Jorge.
Imagem: Museu Nacional do Azulejo

No sopé do Monte, para as bandas do norte, que anteriormente era conhecido por Almocovar e, mais tarde, Fornos de Tejolo, existia um ponto denominado S. Gens, ponto antigamente muito respeitado pelo povo, que o tinha como sagrado em virtude de — consoante a tradição — ser aí que S. Gens, segundo bispo de Lisboa — sentado na sua cadeira, nas primeiras eras do Cristianismo, havia prégado a lei do Crucificado, e também porque era aí que estava colocado o milagroso assento que era, para o povo cristão, um testemunho de quanto devia venerar a memória do bispo, que foi um dos mártires do Cristianismo.

Lisbon from the chapel hill of Nossa Senhora do Monte, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Em 1147, quando D. Afonso Henriques tomou a cidade aos mouros, vieram quatro eremitas de Santo Agostinho na armada cristã estrangeira que aproou ao Tejo e ajudou o nosso primeiro monarca nêsse empreendimento.

O povo cristão — que o havia mesmo no tempo da mourama — querendo eternizar a memória do seu tão querido prelado, aproveitou êstes êxitos para oferecer a êsses eremitas um local no sopé do Monte onde havia, em grande adoração, debaixo de um alpendre, a cadeira de S. Gens.

Lisbon from the chapel hill of Nossa Senhora do Monte... 1830 e Panorâmica de Lisboa e do Tejo, 2017 (editado).
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal Eventualmente Lisboa e o Tejo

Os eremitas, atendendo às virtudes do insigne mártir e aos desejos dos moradores daqueles sítios, com os socorros que conseguiram, fizeram aí a sua primeira moradia em 1148, com uma ermidinha ao pé, onde veneravam como padroeira do reino uma perfeita imagem de Nossa Senhora, e dentro dessa ermida colocaram a milagrosa cadeira de S. Gens, que era um assento de pedra, à maneira de espaldas, e bem assim diversas reliquias que, ao que parece, pessoas antigas lhes ofereceram.

Panorâmica de Lisboa e do Tejo tomada do miradouro de Nossa Senhora do Monte e S. Gens, 2017.
Imagem: Eventualmente Lisboa e o Tejo

Essa ermida estava sempre aberta ao culto que era grande, pois muitos devotos, cheios de viva fé, procuravam as virtudes de S. Gens — de quem diremos algurna cousa no fim — e o auxílio da sua cadeira que — segundo reza a lenda era principalmente procurada pelas mulheres em estado interessante, pois lhes dava boa hora.

Foi esta a primeira ermida levantada à memória dêste mártir português, e a primeira residência dos eremitas de Santo Agostinho, com o nome de Eremitório de S. Gens, razão porque o povo mais tarde lhes chamava Frades de S. Gens.

Miradouro da Senhora do Monte e S. Gens em Lisboa, José Artur Leitão Bárcia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Até ao comêço do século XIII, existiram a ermida e o eremitério, e foi nessa data que uma nobre dama — D. Susana — proprietária daquelas vizinhanças — ao ver o desconfôrto em que os frades viviam naquele encovado e pouco salubre lugar, lhes doou tôdas as terras que lhe pertenciam no alto do Monte, para lá residirem e, com o concurso de importantes dádivas dos habitantes daquele ponto, mandou edificar, em 1243, nessa eminência que lhe pertencia, com melhores proporções, outra ermida, em memória dêsse santo bispo, e para esta nova ermida foram passadas tôdas as imagens e a citada cadeira, que, como anteriormente, era, fervorosamente venerada e tornava-se necessário conservar a ermida sempre aberta.

Jardim no miradouro da Senhora do Monte e S. Gens em Lisboa, Paulo Emílio Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Como, porém, aqui a devoção a Nossa Senhora aumentasse, o povo foi-lhe chamando Senhora do Monte.

Transferindo para êste local á sua moradia, construiram celas, e deram-lhes a mesma denominação de Eremitório de S, Gens, removendo a pirâmide que colocaram em frente da actual ermida e em que se lia: 

ULISIPPONE HIC, AUGUSTINENSIUM PRIMA SEDES, A. B. anno 1148

Ermida da Senhora do Monte e S Gens em Lisboa, Paulo Emílio Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

mantendo algumas oficinas e celas no sopé do Monte por haver água com abundância e ser o ponto mais próprio para os eremitas idosos.

Mas a supracitada senhora D. Susana, ao saber que no novo erimitório do cimo do Monte não havia água, mandou construir do seu bolsinho uma cisterna.

Foi esta a segunda casa que os eremitas de Santo Agostinho tiveram na capital com a designação de Ereanitório de S. Gens, onde residiram durante vinte e oito anos, até que, em 1271, mudaram para terceira casa, no monte que ficava próximo, no ponto então conhecido por Almafala, mais tarde convento e igreja da Graça.

Ermida da Senhora do Monte e S Gens em Lisboa, José Artur Leitão Bárcia.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O convento desapareceu para se tornar — já em nossos dias [1946] — quartel, que tem servido para alojamento de vários regimentos e onde, agora, estão instalados o Conselho Tutelar do Exército e o Corpo de saúde.

Em virtude da saída dos eremitas, em 1271, para o convento da Graça, a igreja de Nossa Senhora do Monte e S. Gens não podia manter-se sempre aberta ao culto, à concorrência e à devoção pela milagrosa cadeira de S. Gens e por isso foi esta colocada num dos ângulos do alpendre, parte da referida Igreja.

N. Senhora do Monte, e S Gens
Luiz Gonzaga Pereira, Descripção dos monumentos sacros de Lisboa, 1840
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Transformada assim só em Ermida, a igreja do Eremitório foi entregue aos cuidados da confraria de S. Gens que — consoante historia Frei Antómio da Purificação, a fls. 110 da 2.a parte da sua "Chronica dos Agostinhos" — já existia, mas foi decaindo a Ermida até que, em 1306, trinta e seis anos depois dos religiosos estarem em Almafala, querendo novamente freqüentar esta ermida, tais dúvidas se suscitaram, que foi preciso recorrer ao bispo D, João Martins Soalhães para lhes ser concedida de novo a sua antiqüíssima posse e dessa data em diante foi a ermida dirigida por um capelão, religioso do referido convento, eleito em capítulo, que aí vivia com um donato.

O terramoto de 1755 arrazou completamente a ermida, ficando sob os escombros o eremita da ordem que acabara de comungar naquele instante e cujo cadáver veio a ser encontrado ajoelhado e com os braços abertos em cruz.

Quanto à imagem de Nossa Senhora — titular também da Ermida — que sempre fôra muito venerada, foi encontrada soterrada sem graves estragos e em cuja honra o padre capelão regente, com o auxílio da muitos devotos, lhe mandou erigir logo, no Monte também, uma capela de madeira aonde, com a máxima decência, foi venerada durante algum tempo, consoante refere João Baptista de Castro no seu "Mapa de Portugal" [Mappa de Portugal, antigo e moderno, Lisboa, Na officina patriarchal de Francisco Luiz Ameno, 1762].

Com a fé e o auxílio dos moradores daquelas circunvizinhanças, se foi tratando de reedificar o arruinado templo, trabalho de que foi encarregado o arquitecto Honorato José Cordeiro e que, como se lê numa pedra que há a encimar a porta travessa, acabou por abrir ao culto em 1757, racolhendo-se a célebre cadeira, do alpendre para o interior da igreja, reservada no ângulo esquerdo debaixo do coro, perto do alpendre, onde ainda hoje se encontra. 

Os frades Agostinhos como senhores dêste local, seu antigo Eremitério, e administradores desta Ermida — plantaram em 1815, no largo, frondoso arvoredo constituído por ailantos, lodãos, amoreiras da China, ulmos, etc. para agrado dos habitantes e recreio dos devotos, pondo na quina externa da Igreja, a um dos lados da porta lateral, a seguinte inscrição:

PATRIAE AVIBUS ET URBI, HOC NEMBUS IN AMOREN DELECTATIONE AUGUSTINIENSI PLANTARUNT ANNO M.DCCC.XV 

Como nota interessante devemos dizer que, presentemente, da inscrição indicada, apenas se lê: 

PATRIAE

Até 1834, data da extinção das Ordens religiosas, era nesta ermida que, no dia próprio, se realizava a festividade a S. Gens e em 8 de Setembro a festa a Nossa Senhora, com tôda a pompa e solenidade, havendo três dias de feira.

Como o govêrno tomasse a si os bens dos religiosos em 1835 e fôssem postos em leilão, Clemente José Monteiro adquiriu a cêrca e diversas casas que os Agostinhos possuiam nêsse monte e a quem o govêrno confiou a Ermida e todos os pertences.

Lisboa, Nossa Senhora do Monte e S. Gens, 2017.
Imagem: Eventualmente Lisboa e o Tejo

Clemente José Monteiro não deixou de festejar Nossa Senhora no dia do seu nascimento, conservando também sempre um capelão que oficiava aos domingos e dias santificados. 

Tendo falecido em 1848, alguns devotos desta ermida reorganizaram a antiga Corporação dos Escravos de S. Gens e Nossa Senhora do Monte, que já em 1271 existia e de que se encontra na ermida um Livro dos Irmãos, começado em 1791, e de que ainda viviam alguns nessa época (1848).

Parece apurado que foi esta confraria que, juntamente com o religioso capelão da ermida, alcançara o Breve de Roma, datado de 30 de Setembro de 1796, que concedia indulgências perpétuas, assinado pelo Papa Pio VI, para memória futura, aumentar a religião dos fiéis e cooperar para a salvação das almas, movidas com caridade paternal na distribuïção dos celestiais tesouros da Igreja.

Este breve estava registado no referido Livro dos Irmãos.

O inventário que Clemente José Monteiro recebeu não indica relíquia alguma das que Frei António da Purificação citava, salvo a famigerada cadeira de S. Gens.

Nesta igreja existem várias imagans e uma esplêndida collecção de 12 telas respeitantes aos Apóstolos, da autoria de Joaquim Manuel da Rocha e, ao lado do Evangelho, em frente da porta lateral, um presépio, que se patanteia, nos dias próprios, ao culto dos fiéis [v. Ernesto Soares, Inventário da colecção de registos de santos, Lisboa, Biblioteca Nacional,1955]. 

Desde 1858 que há nesta ermida uma imagem de Nossa Senhora da Graça, que está no altar do lado da Epístola.

Panorâmica do miradouro da Senhora do Monte e S. Gens sobre o Castelo de S Jorge, Eduardo Portugal.
Imagem: Delcampe

Essa imagem foi trazida por uns devotos lisboetas que, em virtude das febres que tanto assolaram a cidade, da 1856 a 1858, tinham feito um voto de irem todos em romaria com essa imagem ao Monte de Caparica, onde, festivamente, lhe renderiam graças por os haverem livrado — a êles e à cidade — de tal flagelo.

Em 1866 fizeram-se novos restauros.

E parece que nada mais há a acrescentar ao que acima fica exarado a respeito desta bonita ermida, cuja história foi mais de José Joaquim da Silva Mendes Leal do que nossa.

Panorama  de Lisboa visto do Monte de S Gens, ed. Tabacaria Costa, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Conforme prometemos, damos uma súmula da vida de S. Gens, colhida no mesmo folheto de 1893.

O bispo S. Gens, primeiro titular desta ermida, nasceu em Lisboa e viveu nos princípios do Cristianismo, tendo sido — consoante alguns historiadores — discípulo de S. Tiago e o segundo bispo de Lisboa, mantendo-se sempre fiel à religião cristã, pela qual se sacrificou.

Panorama do Miradouro da Senhora do Monte.
Imagem: Delcampe

Percorreu vários pontos do país, prégando a lei cristã para angariar adeptos ao seu crédo, atraindo-os pela maneira por que doutrinava a sua fé. Fazendo prodígios em tôda a parte, tornou-se célebre no Monte de Lisboa, aonde, sentado na sua cadeira, era escutado pelo povo da cidade e arredores.

Ao que parece, fôra martirizado em II de Outubro de 66 — no tempo de Nero — com mais cem companheiros.

Detalhe do painel de azulejos datado de 1963 no miradouro da Senhora do Monte.e S. Gens, 2017.
Imagem: Eventualmente Lisboa e o Tejo

É natural que esta notícia esteja antiquada pelo menos 85 [156] anos, mas é natural também que não o esteja, pois supomos que a ermida está como a conhecemos há 26 [97] anos. (1)


(1) Henrique Marques Junior, Olisipo n.º 33, janeiro de 1946

Leitura adicional:
Joaquim José da Silva Mendes Leal, Descripção histórica da Ermida de Nossa Senhora do Monte e S. Gens... Lisboa,, Imprensa Commercial, 1860
João Bautista de Castro, Mappa de Portugal, antigo e moderno (Tomo Segundo), Lisboa, Na officina patriarchal de Francisco Luiz Ameno, 1762
Pinto de Carvalho, Gustavo Matos Sequeira, Luís Pastor Macedo, Lisboa de outrora, Lisboa, Grupo de Amigos de Lisboa, 1938-1939
Miradouros de Lisboa, Ilustração Portuguesa n.° 861, 19 de agosto de 1922
Miradouros de Lisboa, Revista municipal n.° 88, Lisboa, 1961

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