segunda-feira, 8 de maio de 2023

O emigrante

Passei ontem algumas horas em casa de Malhoa. O grande mestre, em seguida ao falecimento de sua esposa, vendeu o lar-oficina da Avenida 5 de Outubro, donde saíram tantas obras-primas, e instalou-se à Alegria, num atelier com excelente luz, onde tornei a ver os velhos tapetes de Arraiolos, a arca portuguesa de ferragens, e a mancha doirada daquele familiar tremo Luís XVI, que tanto carácter dava ao recanto elegante em que costumávamos conversar. Recebeu-me com o seu sorriso acolhedor, a sua "la-vallière" preta, a sua viril distinção de "vieux beau":

— Aqui tem o meu último quadro.

O emigrante, José Malhoa (detalhe), 1918.
Tendências do imaginário

Olhei. Na parede do fundo, sob a pastada baça dum tapete alentejano de desenhos persas, vagamente azul e folha-morta, uma grande tela, trecho de natureza esplêndida, ofuscante, latejante de cor, abria-se como uma janela rasgada e luminosa. No primeiro plano ("le paysage seul ne prouve rien" — disse Watts) uma figura de homem caminhava, tocada de melancolia profunda, num prodigioso efeito de contra-luz. Passada a primeira impressão de deslumbramento, afirmei-me melhor no quadro. Estava diante duma das obras fundamentais de Malhoa.

O emigrante ou Partida para o Brasil Último olhar á aldeia (detalhe), José Malhoa, 1918.
Arte, museus e património (fb)


Aconchegada ao sopé duma colina, galgando, cabrejando pela encosta, uma regaçada de casas brancas, longe, com a sua sineira humilde e os três ciprestes do seu cemitério — o tipo carinhoso da nossa aldeia estremenha — ondulava, vicejava, sorria sob a bênção cristã dos seus telhados mouriscos, batida dos últimos raios de sol. Em volta, os pomares alastravam, a terra palpitava, doiravam-se os sequeiros de pão, verdejavam os tratos alegres de horta, uma ligeira névoa, hálito ardente da planície, exalação da natureza fecunda, parecia subir, elevar-se, envolver as casas, esfarrapar-se nas frondes do arvoredo. Era — disse-me o mestre — a aldeia de Bairrão, perto de Figueiró dos Vinhos.

Nessa geórgica refulgente, pintada por grandes valores, onde nenhum proprietário bairranês deixaria de reconhecer e de apontar o seu quinteiro, a sua vinha, a sua courela, o seu pomar, a sua belga fulva de trigo, até o telhado da sua casa, — uma sólida, uma enorme figura de cavador, pulverulenta, tisnada de sol, avançava para nós numa volta do caminho, o chapeirão derrubado para a testa, um saco de ramagens pojando às costas, umas botas abrochadas de ferro penduradas na pontoeira do guarda-chuva azul, animal possante de trabalho, doloroso farrapo humano, alongando para a aldeia distante um último olhar de saudade e de tristeza.

O emigrante (estudo), José Malhoa, 1916.
Manuel Henrique Pinto (fb)

Na expressiva modelação dessa figura incomparável, húmus negro espiritua- lizado pelo clarão duma lágrima, havia, simultaneamente, a ternura fraterna de Millet e o vigor bárbaro de Rodin. Estava ali o símbolo imortal duma raça de melancolia e de aventura.

Caminhava com ele a alma sagrada dum povo inteiro. Houve um instante em que tive a ilusão de que, sob aquela jaleca de saragoça, batia um coração. Num dado momento, pareceu-me que aquele peito de hér- cules humilde arfava, respirava, resfolegava. Malhoa compreendeu a impressão profunda que eu sentira perante a sua criação, e se- reno, simples, risonho, perguntou-me:

— Sabe que título pus a este quadro?

— Não.

— O Emigrante.

Assentámo-nos nos largos maples. Em silêncio, continuei a olhar essa tela que é um dos padrões de glória da pintura portuguesa coutemporâuea; essa figura — que ficará como uma das mais belas sínteses humanas criadas pelo vigoroso naturalista dos Oleiros e do S. Martinho.

O emigrante, José Malhoa, 1918.
Tendências do imaginário

E então, seguindo em pensamento a marcha do pobre cavador de Bairrão, eu evoquei a segunda pátria, o país distante, terra doirada de abundância e de maravilha que os passos daquele homem demandavam, e a que ele ia oferecer o vigor dos seus braços, a lealdade do seu coração, todas as energias latentes da sua raça laboriosa e soberba.

Beirões, minhotos, estremenhos, trasmontanos, — pensei nos trabalhadores que um dia, por não caberem na terra em que nasceram, atam um registo da Virgem ao pescoço, deitam às costas uma manta velha de burel da Covilhã, devoram, calados, um soluço e uma lágrima, e, dizendo adeus à sua pequena aldeia, a abandonam para nunca mais a esquecer, para lhe sorrir de longe, para a acarinhar, para a amar, a muitas milhas de distância, mais do que a amariam se envelhecessem desbravando, com o ferro da enxada, a ingratidão da terra materna.

Diante do Emigrante, de Malhoa, lembrei-me, com simpatia e com afecto, dos portugueses do Brasil. E ao lançar, para a obra do grande pintor, tão forte e tão saborosamente lusitana, o meu último olhar de despedida, — tive pena de não poder, como aquele bravo emigrante negro de terra e de sol, deitar também o meu surrão ao ombro e seguir com êle o mesmo caminho de aventura . (1)


(1) Júlio Dantas, Os galos de Apollo, 1921

Leitura relacionada:
Nuno Saldanha, José Vital Branco MALHOA (1855-1933): o pintor, o mestre e a obra


Mais informaçao:
Manuel Henrique Pinto (fb)

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