terça-feira, 6 de dezembro de 2022

Polacos da Serra

Finalmente um pouco de paz! Bem fez o Póvoas, que foi para as Caldas da Rainha tomar águas sulfurosas para restabelecer-se do susto que lhe mete o tal punhado de rotos que veio das ilhas!

Ah, não sabe ele a têmpera da nossa genica, nem tão-pouco do que é capaz a populaça do Porto e de Villa-Nova! Acho que os corcundas andam desvairados à nossa volta, instigados por um bando de fidalguetes de dois dias e convencidos pelos tratantes dos frades, que só desejam beber-nos o sangue...

Perspetiva do Convento da Serra do Pilar (detalhe), no dia 14 de outubro de 1832,
Joaquim Vitorino Ribeiro.

Museu Militar do Porto (fb)

E tantos infelizes por essas terras afora, de espingarda às costas e um saco com alguns cartuchos, seguidos por guerrilhas maltrapilhas de mulheres descalças que, de gigas à cabeça, esperam avidamente arrebatar o produto do saque… Felizmente, muitos vão sendo os soldados de 1ª linha que vêm das bandeiras da usurpação para o nosso exército, e garanto que todos eles são bem recebidos pelo Senhor Duque.

Os ataques às nossas baterias têm sido constantes, e não há dia em que D. Pedro não faça a ronda a todas elas, para ver os andamentos e garantir a perfeição das obras de defesa.

Ainda na terça-feira passada, dia 4, soube que Sua Majestade Imperial tinha ido ao Convento da Serra, bem cedinho, com o Sá Nogueira, o Pimentel e o Batista Lopes, examinar as baterias, as fortificações e os entrincheiramentos. E, graças ao Céu, tudo estava já bem adiantado.

Recordaçoes e uniformes do exercito liberal 1832-1834 (detalhe), AHM.
Portuguese Civil Wars (fb)

Foi a Providência divina... É que, logo depois, no sábado, começou um ribombar do arco da velha por aquelas bandas! Irra! Foram três dias a malhar o ar! Vou ficar mouco de tantos estouros de artilharia, homessa!

Tudo começou no dia 8, pouco depois das 8 da manhã, quando apareceu o inimigo que, do lado de Grijó, pela estrada da Bandeira, se dirigia em força sobre Villa-Nova.

Bernardo de Sá, seguindo ordens, foi para o Alto da Bandeira, onde já se encontrava um fogo muito vivo.

O nosso Batalhão 6º de Infanteria começou a sua retirada, tendo o Major Marcelli ficado gravemente ferido.

Minutos depois, o Governador Bernardo de Sá Nogueira foi atingido por uma bala de fuzil que lhe quebrou o braço direito. Aqui se viu o sangue-frio e a coragem deste homem, pois, sustentando com o braço são o que acabara de ser ferido, continuou impassivelmente a conduzir, a pé, a coluna, na melhor ordem, e na presença do inimigo que a seguia, por espaço de meia-légua, indicando os pontos que deviam ser ocupados, de maneira a flanquear a sua marcha, até que passou a Ponte das Barcas, a qual foi imediatamente levantada.

General Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (1795-1876), Marquês de Sá da Bandeira.
Academia Militar

Mas os ataques continuaram.

Eu, que estava na bateria da Vitória, por volta das 10 horas da manhã, vi chegar o Senhor D. Pedro com o Estado-Maior e, logo ali, foram-nos ordenados diversos tiros sobre o inimigo da outra parte do rio, onde uma corja de 4 a 5 mil miguelistas vinham tentar ocupar o Convento da Serra.

Isto durou horas a fio! A verdade é que os corcundas conseguiram entrar pelo sítio da Eira, precipitando-se sobre as trincheiras. Pelos vistos, o nosso Major Fontoura, que conduzia o Batalhão de Voluntários de Villa-Nova, deixou que o inimigo entrasse com confiança e, depois, zás… rompeu o seu fogo, à queima-roupa, sobre eles.

Foi ajudado pela conduta briosa do Major Bravo (Comandante do Posto da Serra), do Major Moreira e do Tenente Santos. Eu nem queria acreditar que tal vitória tinha sido possível, já que eramos muito menos.

Modelos dos fardamentos militares dos voluntários
(Batalhão Móvel da Serra do Pilar),
António Cunha, 1835.
RTP Arquivos
Acho que é para sempre memorável o sangue-frio e a valentia com que neste ataque se conduziu o tal Batalhão de Voluntários de Villa-Nova (apesar de ser composto por mancebos que jamais tinham ido ao fogo…), bem como o nobre patriotismo que, por esta ocasião, se desenvolveu nos heroicos habitantes de Villa-Nova, os quais, abandonando as suas casas e famílias, correram ao Convento a pedir armas e, em número de trezentos valentes, foram ajudar a combater os inimigos.

E os oficiais e os marinheiros do Açor, — um brigue-escuna ancorado junto à Praia de Villa-Nova —, foram igualmente muito importantes, ao impedir que o inimigo entrasse nas casas daquela vila.

Até as nossas mulheres já não receiam o estampido dos tiros, nem estremecem com o assobio das balas, antes acodem às trincheiras a distribuir alimento aos soldados, a animá-los e a enchê-los de bênçãos e elogios!

Ontem, domingo, dia 9, voltou a haver tiroteio no Convento. O Bernardo de Sá Nogueira ficou internado no Quartel da Batalha, mas sempre a dar ordens e a despachar editais...

Disseram-me que lhe amputaram o braço! Um homem daqueles não merecia isto! Tem ele uma alma a que não perturbam os padecimentos do corpo!


E, ainda durante o dia de hoje, não deram os rebeldes descanso à Serra do Pilar. Mas acabaram por desistir da empresa. E logo os nossos mandaram tocar os sinos a anunciar a vitória… Sei que, do lado de Villa-Nova, os miguelistas lançaram algumas bombas, das quais só três atingiram o Porto. E, curioso é que, a única que fez estragos foi cair precisamente na casa da filha do grande miguelista Visconde de Peso da Régua, ali para os lado da Sé...
 
As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883.
Hemeroteca Digital

Outra, atingiu de raspão a mais formosa das madres de Santa Clara, quando todas elas vieram à janela para melhor ouvir os sinos da Serra, que pensavam tocar a anunciar a vitória dos corcundas…Terá sido castigo? Já não escrevo mais hoje, pois ainda caio de sono...

Mas antes de dormir, ainda vou demolhar o bico em vinho fino e regalar-me com um queijo Chester que comprei há dias na Rua das Hortas...


João Pataco, soldado liberal (1)

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