segunda-feira, 15 de janeiro de 2018

Bernardo de Sá Nogueira (1795-1876), Marquês de Sá da Bandeira

Desde muito moço vivi com homens dos mais notáveis da guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel. Os acontecimentos estavam próximos ainda; vivas e sangrando, feridas de todo o género nos contendores de ambos os campos; mas em espiritos elevados as paixões haviam serenado.

General Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (1795-1876), Marquês de Sá da Bandeira.
Imagem: Academia Militar

Das narrativas que ouvi aos parciaes dos dois lados me veia poder firmar linhas physionomicas de personagens que representaram na scena politica de uma epocha cuja historia, apesar de haver volumes sobre ella, ainda se não escreveu.

Para mim, de todos os homens do cerco do Porto, o mais heróico é Bernardo de Sá Nogueira, marquez de Sá.

A ultima vez que o vi jantámos juntos. Foi no dia 4 de agosto de 1873, em Cintra, em casa dos duques de Palmella. Fazia annos a sr.a duqueza.

Maria Luísa de Sousa Holstein (1841-1909) 3a Duquesa de Palmela.
Imagem: Geni

O velho soldado e grande cidadão fora saudar a nobilíssima fidalga, que allia, ao talento artístico, a flor mais perfumada de educação, e o dote de captivar quantos a conhecem, pelo poder irresistível e supremo da sympathia. Marquez de Sá prezava, havia muito, as qualidades moraes de finíssima tempera de António de Sampaio, duque de Palmella.

Algumas horas antes de jantar, no parque da casa de campo dos duques, marquez de Sá, marquez de Sabugosa, e eu, conversámos, ou antes, nós dois ouvimos o deus Marte da serra do Pilar, que, apesar de manco, tantas vezes acutilado, uma vez quasi enterrado vivo, e já próximo dos 80, parecia ter o animo e vigor da mocidade. Contou algumas anecdotas engraçadas, e, como prologo, disse:

"Agora, quando vejo nos jornaes noticia de coisa triste, não leio."

Estas palavras tão simples deram-me mais uma nota das cordas d'aquelle coração.

O homem que presenceara tragedias pavorosas; que elle próprio curtira dores cruelissimas de todo o género; a dois passos do tumulo, ainda se commovia com os infortúnios alheios!

Busto em màrmore do Marquês de Sá da Bandeira (c. 1870), inaugurado na Sociedade de Geografia de LIsboa em 1909, detalhe de fotografia de Francesco Rocchini tomada no atelier da 3a Duquesa de Palmela Maria Luísa de Sousa Holstein.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Falou também do cerco do Porto, narrando grandes actos de abnegação e intrepidez, que lá se praticaram, sem por sombras alludir ao seu nome. E foi no Porto, depois do funesto desbarato da Gandra de Souto Redondo, que elle praticou uma acção, que adeante referirei, acção que não tem rival vencedora nas mais nobres da historia.

Simão José da Luz Soriano narra o facto com a sua chateza habitual. Eu ouvio-o da bôcca dos homens d'aquelle tempo, e nenhum o contava sem commoção.

O auctor do cerco do Porto, trabalhador incansável, honra lhe seja, dá a noticia exacta e impreterível para a historia d'aquella epocha; foi testemunha de muitas scenas; é sincero, mas não vê senão a superfície das coisas; desconhece os homens ou não tem olhos para os observar ou está longe dos meneios diplomáticos; não falseia, mas amesquinha actos de heroicidade, ou porque os não comprehende, ou porque lhe são antipathicos aquelles que os praticaram; respira no circulo estreito dos seus parciaes [v. História do cerco do Porto... vol. I e História do cerco do Porto... vol. II]

As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital

A falta de recursos como escriptor, ora o leva á confusão e obscuridade, ora a infatuar, sem intenção malévola, a verdade das coisas. 

Saldanha, cujos defeitos como politico por tantas vezes temos censurado no decurso d'estas "Memorias", teve no Porto esses defeitos, que lhe estavam no sangue e o acompanharam até á morte, mas representou um papel eminente e brilhantíssimo, desde a defesa da "Frecha dos mortos", até que abateu os lauréis orgulhosos da vencedor de Argel.

Luz Soriano acurta-lhe a estatura.

De Mousinho da Silveira, alma da revolução, como não pôde encarar o minimo relâmpago d'aquelle cérebro genial, diz, inconscientemente, o que diria um gazetilheiro, d'esses a que os francezes appellidara de "fulicularios", assalariado para o insultar.

Palmella é também injustamente apreciado. Faz pena que um escriptor brilhante, que já não vive, deixasse correr, propositadamente, os juizos fúteis, acanhados, e por vezes empeçonhados, do animo miudinho e cabeça apoucada de Simão Soriano.

Varias injustiças do auctor do cerco do Porto já estão corrigidas, pela rispidez dos factos, em algumas correspondências diplomáticas, na "Historia das Côrtes Geraes", e ainda nos volumes de J. da Silva Carvalho, "O meu tempo", importantíssima collecção de documentos para a historia politica d'este século em Portugal, publicados e annotados por seu neto, A. Vianna.

Antes de narrarmos os factos mais importantes da vida do marquez de Sá, dêmos, em dois traços apenas, a biographia do aventureiro soldado.

Tinha mais seis annos do que o século (1795); aos quinze sentava praça no regimento de cavallaria 11. Até 1814 bateu-se sempre. N'esse anno (13 de março), explorando a estrada de Tarbes, é envolvido pelo inimigo, acutilado, cae por morto no campo de Vielle, passa-lhe por cima um esquadrão. Prisioneiro dos francezes, restabelece-se, mas fica surdo para o resto da vida.

Termina a guerra, embainha a espada, matricula-se em Coimbra, fórma-se em mathematica. É uma linha recta no caminho da honra, aquella vida!

De 1826 a 1827 bate-se sempre. Em 1828 continua a combater. Rejeita o camarote no Belfast, offerecido pelo duque de Palmella, para salvar da forca a cabeça de Cesar Vasconcellos e levar os seus soldados até á Galliza.

Pedro de Sousa Holstein, 1° Duque de Palmela, por Domingos Sequeira.
Imagem: Wikipédia

Essa retirada foi digna de ser escripta pelo punho de Thucydides.

Em Hespanha dá-se o celebre dialogo entre elle e o façanhoso official.

Soriano narra o facto; mas eu prefiro a versão das "Lendas de Santarém", do meu velho amigo Zeferino Brandão, por apresentar testemunha de grande valor.

Haverá bastantes leitores que não conheçam este passo.

O coronel de milícias hespanhol, D. Manuel Ignacio Pereira, á frente da sua tropa, tratou com grande rudeza Bernardo de Sá. Este, sereno, queixou-se de que tivessem feito fogo sobre o seu acampamento.

— Eso merecen ustedes, replicou o hespanhol, porque son ustedes rebeldes y criminosos.
— Rebeldes y criminosos son esos que os siguen, atalhou Sá Nogueira.
— Y se atreve v. a hablarme com esa altaneria?
— Yo le hablo a v. de la misma manera que V. me habla.
— V. me habla asi en cuanto no le cuerto la cabeza.
— Y V. me habla asi porque no tengo mi espada a mi lado.

O coronel arrancou da espada e mandou calar baioneta aos soldados. Bernardo de Sá cruzou os braços, e disse-lhe com o máximo desprezo:

— Es una cosa gloriosa el sacar la espada contra un hombre desarmado!

Os officiaes hespanhoes tiveram mão no covarde sanguinário, clamando-lhe que não deshonrasse o exercito do seu paiz com um infame assassínio.

A testemunha presencial, que o meu amigo Zeferino Brandão teve para a sua narrativa, foi, nem mais, nem menos, de que o marquez de Thomar, em cuja casa Zeferino era recebido pelo marquez e seu filho, actual conde de Thomar [vivia quando isto se escreveu].

Nas aguas dos Açores (1829) deu-se um caso com Bernardo de Sá e seu irmão José, caso que escapou á phantasia de todos os auctores de romances enredados e tenebrosos.

Ambos haviam partido de Inglaterra n'um brigue que devia deital-os na Ilha Terceira. A principal carga do barco era carvão de pedra. O commandane, excellente homem, prevendo algum mau encontro, mandou abrir no carvão uma cova, onde coubessem, a custo, dois homens. Não mentira o coração presago do solicito lobo do mar.

Quando faziam proa para a Angra, o cruzeiro miguelista cahiu sobre o brigue, julgando-o boa presa. Bernardo de Sá e o irmão foram para a sua cova. Não podiam mover-se, nem sequer levantar a cabeça. Treva profunda! Correram oito dias esplendidos para o tenebroso "Inferno" de Dante!

Ancorados em S. Miguel, o brigue ia ser descarregado. José de Sá, bravo como um cavalleiro andante, disse para o irmão:

— Se fôr descoberto atiro -me ao mar.

— O peor que te pôde succeder, observou-lhe Bernardo de Sá, é enforcarem-te. Não vejo necessidade de poupares esse trabalho ao incumbido da execução.

Estavam perdidos, quando a Providencia, encarnada n'um homem de coração, o cônsul inglez William Harding Read, pae do meu querido amigo Guilherme Read Cabral, com auxilio do bravo capitão, os salvou.

Quando comecei a gizar as feições do marquez de Sá referi-me a um acto da sua vida, dizendo que não conhecia no sangue frio e na abnegação nenhum mais elevado. Vou narral-o como o ouvi da bôcca dos homens d'aquelle tempo. O facto, em si, é notório. A noticia de Soriano, exacta no fundo, é contada a seu modo, e isso basta para lhe tirar toda a elevação.

Álvaro Xavier da Fonseca Coutinho e Povoas era um general; cabeça bem organisada e fecunda em planos. Os exaltados do partido absolutista não podiam com elle, porque em 1828, pela sua humanidade, não levara os vencidos á forca. 

Deviam de ter sido, n'esse momento, pavorosos os morticínios da vindicta sanhuda e cruel dos vencedores, que tinham como sinistra inspiradora Carlota Joaquina, mulher radicalmente má. Todavia Povoas impunha-se-Ihes, como agora se diz, a torto e a direito, quasi sempre a torto, pela sua incontestável superioridade.

Conde de Villa-Flôr, depois duque da Terceira, valente como leão, não tinha nem a prudência, nem o alcance impreteriveis nos cabos de guerra.

No dia 7 de agosto (1832) atacou o inimigo, e na primeira refrega levou-o de vencida. O coronel do 10, Pacheco, que, segundo a opinião dos homens como Saldanha, tinha capacidade para vir a ser general de primeira ordem, receando do modo por que Villa-Flôr dispuzera as coisas, poz em reserva o seu regimento. Essa previsão fez com que lograsse cobrir a retirada desordenada e medonha. 

Os constitucionaes avançaram com a intrepidez desenganada de homens que jogam a cabeça. Ás 11 da manhã o imperador recebia participação auspiciando a victoria como certa. De facto, nas primeiras arrancadas, os soldados do Mindello levavam a melhor. Povoas, porém, era homem de guerra e conseguiu attrahir os aggressores á própria Gandra de Souto Redondo.

O ataque fora desastradamente planeado. Povoas, n'um movimento acertado e rápido, mandou carregar á baioneta o regimento de infanteria de Bragança, gente escolhida, flanqueado pela cavallaria. Os constitucionaes foram como apanhados de improviso e em linha.

Começou o pânico, que o grito de alarma de um capitão de caçadores converteu em completa debandada. Então o coronel Pacheco, cobrindo a retirada, salvou o Porto, que esteve por um fio n'esse dia!

D. Pedro IV, no seu palácio dos Carrancas, depois da participação que de manhã recebera, esfregava as mãos, tendo a victoria como certa.

Bernardo de Sá estava com elle, quando o marquez de Loulé chegou de improviso. O marquez vinha extremamente pallido, e, apesar do seu caracter frio, tão commovido que nos primeiros momentos não poude proferir palavra.

Nuno J. S. de M. R. de M. Barreto (1804-1875), 1.° duque de Loulé.
Imagem: Wikipédia

D. Nuno José Severo de Mendoça Rolim de Moura Barreto, 24,° senhor da Azambuja, 3.° conde da Azambuja, 9.° conde de Valle de Reis, 2° marquez de Loulé e 1.° duque de Loulé, casara com uma irmã do imperador, a infanta D. Anna de Jesus Maria.

Na epocha a que nos referimos tinha os annos incompletos e era tal belleza de homem que na Grécia poderia servir de modelo a um estatuário genial! Quando entrou a tomar alentos, narrou o funesto desbarato. Fora completo. Povoas perseguia os fugitivos e a entrada na cidade parecia inevitável.

O imperador, incontestavelmente bravo, tremia como vara verde. Então ergueu-se Bernardo de Sá e disse para D. Pedro:

"Senhor, Povoas é um general. Basta que mande dois esquadrões carregar o inimigo para apossar-se do alto da Bandeira, tomar a vanguarda aos fugitivos e aprisionar desde o general ao ultimo soldado. No aperto em que estamos é preciso, único recurso, que Vossa Magestade, com toda a gente que temos no Porto, embarque nos navios que ahi estão. A difficuldade consiste em realisar o embarque em presença do inimigo triumphante; mas para o defender me offereço eu, dando-me Vossa Magestade trezentos homens escolhidos."

— E o Bernardo de Sá? disse o imperador enfiado.
— Isso é commigo, senhor, respondeu serenamente aquelle intrépido coração!

Era com elle, coitado, era... que o fuzilavam em 24 horas, se o não enforcassem!

O duque de Bragança, altivo, mas generoso, não poude conter as lagrimas que lhe rebentaram dos olhos aos borbotões, e, apertando a mão de Bernardo de Sá, disse-lhe:

— Obrigado, meu amigo!

D. Pedro afivelou o cinturão e, sahiu com os que tinha em volta de si. Povoas, como que não querendo acreditar na demasiada fortuna ou arreceando-se de alguma cilada, ou finalmente por outros motivos que ficaram sempre na sombra, não perseguiu os fugitivos, cuja retirada, com prudência e valor excepcionaes, ia protegendo Pacheco, á frente do 10 de infanteria, regimento que nos humbraes de pedra da porta do seu quartel da Graça tinha gravadas as gloriosas datas dos seus repetidos feitos. 

Quando já levantado o cerco, cahiu com uma bala perdida, que lhe deu na cabeça, o laureado coronel.

Desastrado e obscuro fim de tão brilhante soldado!

Vista da Serra do Pilar.Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

No dia 8 de setembro, no Alto da Bandeira, Bernardo de Sá teve o braço direito partido por uma bala. Continuou a combater. Durante a amputação não soltou um gemido. Vinte dias depois montava a cavallo, e o braço esquerdo não brandia a espada com menos valor.

Proseguiu na carreira coruscante. Por vezes applicou rigorosos castigos, sempre com a máxima justiça. Habituado desde os quinze annos ao campo das batalhas, via impassivel medonhas carnificinas. Não raro, nos arrebatamentos da sua terrível valentia, era temerário cruel como o foi na serra do Algarve; mas tinha coração profundamente humano. 

Em 1838, sendo presidente de ministros, dia de Corpo de Deus, defendia a porta de escada onde se haviam refugiado José da Silva Carvalho e António Bernardo da Costa Cabral. Um sicário atirou-lhe uma baionetada ao peito: a commenda da Torre e Espada serviu-lhe de broquel. Correram sobre o assassino, para o acabar. Sá da Bandeira acudiu-lhe, bradando:
— Larguem esse homem, que não foi elle. 

Na revolução da Maria da Fonte, em Valle Passos, Bernardo de Sá mandou entrar em fogo um regimento:

— "Passou-se para o inimigo."
Ordenou que outro carregasse: 
— "Passou-se para o inimigo." Restava o terceiro.
— "Que avance."
— "Passou-se para o inimigo."

— "Então vamo-nos embora, meus senhores."

Não sei commentar. Esta simplicidade seria para o pulso de Shakespeare dar o ultimo toque no retrato de um estóico, quando o estóico fosse um heroe!

Ao terminarem com a Regeneração as luctas civis, que foram como constante resaca dos mares da revolução liberal, os olhos do marquez de Sá — continuaremos agora a dar-lhe este titulo, comquanto o não tivesse ao tempo — voltaram-se para a Africa. 

Chamaram-lhe visionário, já se vê. A inveja, que se dá em todo o terreno, mas que feracissimo o encontra na mediocridade, appellidava-o de utopista, testudo e allucinado. A geração que lhe suecedeu saudou-lhe a profícua iniciativa, e ahi estão hoje os aventureiros das armas e os do commercio, não menos úteis e valorosos estes, a perlustrajr essas regiões, que se o nosso temperamento não levar o amor pela Africa até á cegueira, principalmente com jactâncias fumosas de dominação, nos promettem largo e prospero futuro.

Sorriam-lhe a alma e os olhos ao marquez de Sá quando lhe falavam nas colónias. Essa paixão o distrahia da triste preoccupação que lhe dava o caminho que as coisas iam levando. 

Emquanto viveu D. Pedro V, o marquez não desanimou. Votava-lhe, com a admiração, affecto paternal. O nobre e sympathico príncipe pagava-lhe com egual extremo.

Quando o marquez de Sá, sendo ministro, cahiu gravemente enfermo (1859), D. Pedro V firmou-lhe n'uma carta singular a ultima consideração que tributava áquelle que offerecera a vida para salvar seu avô. A carta é conhecida; muitos haverá, porém, que a não lessem, e tem cabido logar n'estas paginas.

"Meu caro visconde. 

— Recebi, por seu irmão, a carta em que me participa a impossibilidade absoluta de continuar a gerir os negócios das duas repartições, que lhe commetti com uma confiança que nunca foi trahida.

Transmitto-a ao marquez de Loulé, que me proporá o meio de sahir do embaraço em que vem collocal-o a declaração official de um facto que o visconde se pode honrar de que não influísse, tanto quanto era natural, na marcha dos negocios.

Ao acceitar a resignação de um poder, que eu não podia desejar em mãos nem mais fieis, nem mais votadas ao bem do paiz e á honra do soberano, seja-me permittido exprimir-lhe, e sinceramente, o dobrado pezar que tenho do facto e das causas que o determinam.

Nos três annos que servimos juntos, divergimos algumas vezes de opinião: fizemol-o como devem fazêl-o um soberano e um ministro constitucionaes; quer dizer, discutindo livremente, e sem nos entrincheirarmos, como muitos fazem, atraz da nossa auctoridade, ou das formulas particulares da nossa diversíssima responsabilidade. Nunca abrimos, pelo menos todas as minhas lembranças me levam a crêl-o, nenhuma d'essas feridas da alma que se dissimulam e não se esquecem.

Retrato do rei D. Pedro V em 1859.
Imagem: Histórias com História

Por isso nos despedimos com eguaes sentimentos, e quer-me parecer que com pezar egual.

É que o visconde conservava no poder todas as excellencias, e, deixe-me dizer, toda a originalidade do seu caracter, toda a desprevenção da sua intelligencia. Foi ministro e nunca foi ministro. Resta-me ao lado do sentimento da perda, e da difficuldade da substituição, a confiança de que a desoneração de um trabalho, que ajudava a extenuar-lhe as forças, pode contribuir para o seu restabelecimento.

Acompanham-o na sua ausência estes votos, os quaes conto renovar-lhe pessoalmente antes da sua partida.

Creia-me, meu caro visconde, seu muito affeiçoado.

— D. Pedro V.

Lisboa, 12 de março de 1859."

Tinha 22 annos quando escrevia esta carta, que, além da elevação do pensar e sentir, tem a forma onde ha períodos que, pela concisão elegante, parecem de A. Herculano.

A 6 de janeiro de 1876 morria o marquez de Sá.

Lisboa, Praça de D. Luiz e monumento ao Marquez de Sá da Bandeira, c. 1900.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Fui incumbido pela Segunda classe da Academia Real das Sciencias de represental-a no enterro do exemplar e austero cidadão.
Em Santa Apolónia encontrei-me com o marquez de Sabugosa. Estava um dos nossos dias de inverno deslumbradores. Se podessemos vender alguns d'esses dias, por anno, á nevoenta cidade de Londres, em breve teríamos os inglezes como nossos submissos devedores!

Quando chegámos á estação de Santarém demos logo com Alexandre Herculano, que lhe transpareceu no rosto a satisfação de nos ver.

Estava commovido. Havia muitos annos era intimo do marquez de Sá.

Jardim da Praça Dom Luís e monumento ao Marquês de Sá da Bandeira, fotografia de Paulo Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

Sobre a tarde, á sombra da nogueira que plantara e onde a Nympha de Ovidio soltaria dolorosos carmes, ia descançar finalmente o lidador aventureiro. Cahia o sol, atirando as frechas no occaso por aquella paizagem encantadora, onde os freixos rumorosos e frondeados são dos mais bellos da Europa, e o rio corta a campina, divertindo os seus regatos crystallinos pelas hortas e pomares.

Era já muito noite quando chegámos a Valle de Lobos. O jantar correu pouco animado. Herculano olhava pensativo para a labareda serena e azulada dos toros de oliveira que ardiam no fogão. 

Depois animou-se, e falando sobre o marquez de Sá e sobre a historia da nossa vida politica e social, no percurso dos últimos quarenta annos, esteve grandioso, porque Herculano, não tendo peito para orador nos grandes auditórios, era soberbo, e era certo género sem rival, na conversação intima.


Pouco mais de anno e meio depois, n'aquella mesma casa, o marquez de Sabugosa e eu viamos apagar-se a luz faiscante e guiadora que nos illuminara nos dias alegres e fecundos da nossa mocidade! (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. III..., Lisboa, Typ. da Academia Real das Sciencias, 1907

Leitura relacionada:
Resenha das familias titulares do reino de Portugal, Lisboa, IN, 1838
Marquês de Sá da Bandeira e o seu Tempo
André do Canto e Castro, Marquês de Sá da Bandeira..., Lisboa, E. E. Carvalho & Cia., 1876
Luz Soriano, Vida do marquez de Sá da Bandeira... Tomo II, 1888
Luz Soriano, História do cerco do Porto... vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional, 1846
Luz Soriano, História do cerco do Porto... vol. II, Lisboa, Imprensa Nacional, 1849
Henrique Barros Gomes, O monumento do general marquez de Sá da Bandeira...,, 1884

Obra escrita pelo Marquês de Sá da Bandeira:
Visconde de Sá da Bandeira, O trafico da escravatura, e o bill de lord Palmerston, 1840
Viscount de Sá da Bandeira, The slave trade and Lord Palmerston's bill, 1840
Marquez de Sá da Bandeira, Memoria sobre as fortificações de Lisboa, Lisboa, IN, 1866

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