segunda-feira, 19 de junho de 2017

O Grémio Artístico (6.ª exposição, 1896)

A apparição de Columbano nas exposições do Grémio Artístico é um facto de que devemos congratular-nos, tanto a falta das suas obras, de tão poderosa originalidade, lá se fazia sentir.

Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro (detalhe), Columbano, 1891.
Imagem: Tinta com pinta

Columbano

Foi uma entrada á pressa, realisada, na sua maioria, com trabalhos da ultima hora, retratos pela maior parte, alguns decorados com titulos caprichosos, mas o grande valor da sua exposição está nos tres retratos que dominam o primeira sala, e de tal modo que, fitando-os, empolgam-nos e fazem-nos esquecer a restante pintura que os cerca.

Columbano.
Imagem: Branco e Negro, abril de 1896

O retrato de Raphael Bordallo Pinheiro, que fora exposto em Paris no Salon de 1891, exprime admiravelmente o modo de sentir de Golumbano.

Ante o seu modelo o que viu foi a alma energica, amargurada, enthusiasta e descrente, forte pela intuição do seu genio, desdenhosa da imbecilidade circumvisinha, do grande caricaturista. A fórma omitte-a, os detalhes subordina-os ao symbolismo da sua ideia, e essa ideia, viva no olhar, na attitude, na expressão de todas essas feições, afogadas n’uma sombra sapiente, brilha, chamando-nos, attrahindo-nos para a interrogação d’uma personalidade que, se a não conhecêssemos, a adivinhariamos, tanto o artista a faz dizer de si pelo vigor com que a apresenta.

Retrato de Rafael Bordalo Pinheiro, Columbano, 1891.
Imagem: Tinta com pinta

A pintura é larga e solida, as tintas lançadas com a firmeza d’uma decisão absoluta. Sentado n’uma chaise-longue, o sobretudo desabotoado, mostrando a sobrecasaca, tendo ao pé de si uma meza onde se vêem, espalhados, papeis, Raphael Bordallo parece tomar um instante de passageiro repouso, e o seu olhar negro e profundo fita-nos, penetra-nos, pensativo, emquanto que o começo d’um sorriso ironico parece agitar-lhe os músculos da face. Não é um retrato, é a synthese d’um homem, feita pelas projecções, da luz e da sombra ao sopro da inspiração.

O retrato de Ramalho Ortigão, como bem representa a pose que o nosso velho Ramalho tem sustentado na vida, e que o não abandona mesmo na hora de se confessar vencido! Parece que foi lançado na tela d’um jacto, que náo foi preciso o trabalho dos pincéis, nem o esforço da mão para os dirigir. 

A bella cabeça de Batalha Reis, tão íinamente modelada, brilhante de intelligencia, completa este grupo de retratos d’homens notáveis com que Columbano veio animar a exposição.

Retrato de Jaime Batalha Reis,, Columbano, 1892.
Imagem: MNAC

Um retrato também é, sem duvida, aquella preciosa cabeça, da "Mulher que ri", tão expressiva e tão delicada, assim como retratos são a tão singular "Mulher da luneta", a que alegremente toma chá, estudo que exprime com uma franca bonhomia a physionomia sympathicamente intelligente e viva da retratada.

Mulher da luneta, Columbano, 1896.
Imagem: Wikimedia

Raul Brandão, um dos novos, com talento e alma, alma magoada por doentia sensibilidade, mas tão aberta á emoção, diz de Columbano, quando n’um pequeno artigo lhe pinta a feição a largos traços:

"A educação da cor a que Columbano fugiu, preferindo-lhe a sua visão pessoal. é uma das coisas que mais irrita n’este pintor. A outra é o seu genio. Ter personalidades e ter genio — eis ahi duas coisas que bastam para ser odiado."

"Quem pela primeira vez vê os seus retratos tem esta impressão: parecem de afogados. A cor é escuríssima, fundo negro, tintas que não estamos acostumados a ver. Mas é certo que, quem se pozer na luz do atelier a olhar um modelo, para logo vê a verdade da cor: a carne dá aquillo. Depois ainda mesmo que a cor não fosse verdadeira, bastaria a alma e a vida que resalta de cada um dos retratos, para fazer de Columbano o maior dos nossos pintores."

"Não é a copia banal e colorida do modelo : é a alma que elle conseguiu arrancar-lhe e estatelar na téla. Parece que cada um dos retratos foi surprehendido quando sósinho tecia as suas ideias mais negras..."

E entre os novos que Columbano tem encontrado os seus mais ardentes adeptos, a sua pintura tão psycologica deve ser melhor comprehendida por esses devaneadores irrequietos. Mas aquelles que o não comprehendiam, também pelo retrahimento em que se encerrava, vão aprendendo a aprecial-o, e a elle, que é ao mesmo tempo um audaz e um timido, deve ser-lhe grato o vêr-se comprehendido e sentir-se animado pelo calor dos applausos.


O tio Jeronymo

Um canto de jardim

Cabeça de mulher (estudo)

O garoto

Rapariga

Estudo (effeito de noite)

Carlos Reis  

Carlos Reis apresenta uma espectaculosa exposição de telas de vastas dimensões, e entre ellas, um pequeno quadro, o "Retrato de minha mãe" que, pela sua simplicidade e tocante sinceridade, absolve o pintor de todos os defeitos que resaltam nas obras com que intenta deslumbrar.

Realmente admiravel este bocadinho de pintura, no meu entender um dos melhores da exposição.

E arte feita religiosamente, o retrato d’aquella boa velhinha, com o seu ar feliz de doce aconchego* a paleta do artista, suavisada pelo toque da emoção, dá-nos n’esta obra a medida do que elle póde fazer, sempre que seja sincero e justo.

Retrato de minha mãe, Carlos Reis, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Pena ainda foi que o amor do insolito o levasse a deixar incidir sobre os olhos do modelo aquelles importunos raios de luz que lhe alteram a expressão, dandolhe um ar noctivago.

A factura, como a de toda a pintura de Reis, é agradavel e larga, mesmo nos mais pequenos detalhes, que, apezar de tudo, eu desejaria aqui vêr menos tratados.

A mais bella das suas paysagens é a "Manhã em Clamart", tão rigidamente fria, como as outras são ardentemente esbrazeadas; procura seduzir por meios oppostos, e realmente consegue-o, pois é uma das obras que mais attrahe na exposição.

São verdadeiramente bellos os effeitos da luz matinal que brilha atravez das brumas fluctuantes sob um céu, que se vê logo não ser o nosso céu.

O "Cahir das folhas" e nas "Vaccas na pastagem" lambem o talento do artista domina o seu instincto espectaculoso, mas nos restantes, o ruidoso ar decorativo e a tendencia de brilhar por meio de esforços violentos, roubando-lhes toda a sinceridade, desvia-os do caminho das obras de arte para a pintura de bric-a-brac.

Reis é um indisciplinado e um orgulhoso; estes defeitos transformam-se algumas vezes em qualidades, que servem o artista, e podem mesmo eleval-o a grande altura, quando uma ponta de gênio os toca, mas conservando-se simplesmente defeitos prejudicam o talento mais solido, lançando-o nos desvarios da extravagancia. Vejam aquella paysagem "Ao cahir da tarde" em que a extremidade dos galhos da arvore incendiados, lembram um fogo de artificio. Por muito que conceda ao temperamento do artista, não me parece que elle podesse ver aquillo sinceramente.

A physionomia especial do caracter de Reis interessa-me, lembra-me de o conhecer ainda creança, na tabacaria Neves, encetando a carreira do commercio; mas não era aquelle o seu destino, e dentro em pouco encontrava-se na Escola de Bellas-Artes, estudante applicado e distincto. N’um concurso de paysagem, o seu natural talento e a protecção de Silva Porto, de quem era um discipulo querido, fizeram-no passar pensionista do estado, para a Escola de Bellas-Artes de Paris, que mal frequentou, porque as violências do seu caracter o rebellavam contra a disciplina académica.

Foi á solta pelos museus e ateliers que elle fez a sua educaçãa artistica, e eil-o de volta a apresentar-nos, com igual ruido, o seu mérito e os seus exaggeros em paysagens, retratos, composições de genero, onde vemos oppor-se fogosamente, n’um singular contraste a obra d’um meridional tapageur, irrequieto, doido pela côr nhima ardência que escalda, e a sua physionomia loura, d’olhos pallidos, a figura de levita abotoada n’uma comprida sobrecasaca, que pareceria conter toda a íieugma d’um homem do norte, se não fossem os movimentos nervosos que o agitam.

Sejam porém quaes forem os defeitos com que se apresenta, este artista tem personalidade, o que é já bastante, viu, estudou, e, na monotonia geral da exposição do Grêmio, os seus trabalhos picam-nos, excitam-nos a analysal-o, devemos -pois agradecer-lhe a porção de vida que veio trazer a um corpo anêmico.


Domingo de primeira comunhão (França)

Sem familia

Um typo (esboço)

Retrato de Madame de V. F.

Velho veneziano

Margens do Almonda (aguarela)

Paisagem do Rio Almonda, Carlos Reis, possível 1896.
Imagem: José Rosário ou Wikimedia

Veloso Salgado

Salgado não apresenta este anno nenhuma obra que se imponha nos dominios da arte. Se o que expõe para outros seria muito, para elle é pouco. Retratos, completos uns, ligeiramente esboçados outros, e não são estes os que valem menos, indicando a facilidade do pincel que os apontou em dois traços, dizem-me que são d’um verdeiro artista, mas também de que elle se esqueceu de que fizera o retrato de Braamcamp Freire, e de que, portanto, nos tinha na expectativa d’alguma obra que viesse aquecer-nos e dar nos o prazer do enthusiasmo. Não me demorarei na analyse d’esses retratos que só dizem ao publico o que elle não ignora ha muito, isto é, que Salgado sabe pintar.

Interessam-me mais os dois quadros "No castanhal" e "Visão". Este ultimo, que na cor e na fórma parece indicar que o artista se inspirou em Puvis de Chavannes, é uma d’essas phantasias que para muitos nada dizem, mas que devem ser filhas dilectas de certas imaginações exaltadas, exprimindo estados d’alma em momentos raros que, pela sua raridade mesma, não são vulgarmente comprehendidos, mas também não deixam por isso de ser manifestações d’arte sincera. Aquella "pochade" feita d’uma maneira tão arrojada e simples, tem feito sorrir alguns; confesso, porém, que me prendeu a attenção por muito mais tempo de que outras obras mais reaes e acabadas da exposição.

Visão, Veloso Salgado, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

"No castanhal" — um delicioso "plein air" é de ver como o pintor amorosamente lançou na téla aquella serena e graciosa figura de mulher, que tranquilla avança sob as arvores copadas. E táo delicadamente poética esta bella paysagem, exhala uma emoção recatada de tão inexplicável encanto, que decerto o artista a executou n’alguma hora boa em que o seu espirito, numa propensão de ternura, o tinha afastado das violências da lucta pela vida, que fazem soar tantas horas más.

Outras obras 
cf. Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Retrato da Ex.ma Sr.a D. A. M. A.

Retrato da Ex.mo Sr. P. A.

Retrato da Ex.ma Sr.a D. O. M. S.

Retrato da Ex.ma Sr.a D. O. M. S., Veloso Salgado, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Retrato da Ex.ma Sr.a D. M. S.

Retrato da Ex.ma Sr.a D. E. S.

IV

A hora em que isto escrevo já a exposição está encerrada, e resta-me ainda tratar da maioria dos expositores. É facil a tarefa, porque em geral fizeram bem pouco. Não admira ; quem poderá ter gosto em trabalhar aqui?

José Malhoa

Malhôa apresenta um quadro "Embraçar cebolas" onde ha a admirar a belleza dos últimos planos, 

Embraçar cebolas, José Malhoa, 1896.
Imagem: Biblioteca Municipal de Figueiró dos Vinhos no flickr

expõe também alguns retratos, sendo muito interessante pela delicadeza de tons e fina expressão o da condessa de Proença-a-Velha.

Retrato da condessa de Proença-a-Velha, José Malhoa, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896


Retrato da Ex.ma Sr.a Maria X. Moncada; Retrato do Manuel João [da Costa]

Retrato de Manuel João da Costa, José Malhoa, 1896.
Imagem: MatrizNet

António Ramalho

Ramalho continua dormindo á sombra dos louros, e depois, nas horas de espreguiçamento, pinta alguma coisa, para não nos esquecermos d’elle, mostra-nos uns explendores de luz a dizer-nos: veem vocês, se eu quizesse... e volta ao somno. Arranjava uma bella cama aquella palha fresca áos, "Milhos de S. Miguel [Alto Minho]". Que dormideiras conseguiriam entorpecer o vivo espirito d’esse rapazote que, correndo atraz da Arte, como outros correm atraz de borboletas, veiu parar a Lisboa, merecendo uma epopeia, e que de Paris nos deslumbrou com a magia do Lanterneiro? Ah Ramalho, Ramalho...

Graças a Deus

Graças a Deus, António Ramalho, 1896.
Imagem: invaluable

A colheita das abóboras (Nevogilde); Mendigo

Mendigo, António Ramalho, 1896.
Imagem: António Ramalho no YouTube

Estudo


Ernesto Condeixa

Condeixa escolheu um interessante assumpto na antiga historia portugueza para o seu quadro "El-Rei D. Fernando I e o Infante D. Diniz" mas a interpretação é inferior ao que o artista podia dar.

El-Rei D. Fernando I e o Infante D. Diniz, Ernesto Condeixa, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Acho fraca a expressão geral das figuras, mau o gésto de D. Fernando, de que a physionomia exprime bem, na contracção, a cólera. Gósto da attitude contida de D. Leonor Telles, e acho boa a execução de alguns accessorios, principalmente do tapete que cobre o pavimento. E bastante crua a luz que entra, coada, pelos vidros de cores.


A quinta do Marquez de Bellas em dia de romaria; O pinhal da Fonte Eireira (Bellas); Um pescador (recordação de Paço d'Arcos); Uma officina de lanterneiro; Um cantinho de quintal.

Luciano Freire

Luciano Freire continua trabalhando sem ruido, mas conscienciosamente. A "Bucólica" é um bello estudo de poente, vae-se a luz perdendo em gradações no extremo horisonte, e nas encostas, onde os rebanhos correm buscando o aprisco, a noite cerra-se n’uma melancolia de escuridão que se condensa. "Inverno" é uma" pochade" bem feita; Freire sempre teve predilecção pelas brunas. Na "Tresmalhada" acho pouco estudados os animaes. O "Retrato de Silva Porto", apesar da semelhança, é de pouca expressão. Em todos os trabalhos d’este artista encontro, porém, uma sinceridade que me seduz e me faz tel-o em grande apreço.

Scena rustica [Gado tresmalhado?], Luciano Freire, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

João Vaz

Vaz continha a serie das suas marinhas, dando-nos este anno uns bocadinhos da luminosa costa do Algarve. E um artista que estacionou; agradam sempre os seus bonitos trabalhos, todavia ás vezes, como em "Um canto de Lisboa", uma meticulosa exactidao dá-lhe uma rigidez photographica.

Um canto de Lisboa, João Vaz, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896


Tarde d'outomno (Setubal); Bahia de Lagos;Um bairro pobre no Algarve (Faro); Barra de Portimão; Rochedos á beira-mar (Lagos); Litoral.

Marques de Oliveira

Do Porto, Marques de Oliveira enviou ao Grémio duas das suas bellas paysagens; 

O amieiro da Pena; Manhã (Ponte d'Este).

Manhã (Ponte d'Este), Marques de Oliveira c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Manuel Henrique Pinto

Obras
cf. Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896


Na horta

Na horta, Arte Pintura Manuel Henrique Pinto, c. 1896.
Imagem: Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896

Caminho da horta; Ribeira da Lavadeira.

Torquato Pinheiro uma collecção de pequenas paysagens, algumas tocadas com bastante sentimento, e Costa [António José da] uns quadros de flores que, principalmente, "Camélias e Junquilhos" deveras bem executados.

Por entre esses quadros, que formam sempre o fundo d’uma exposição, viam-se pequenas manchas de paysagem, flores e estudos, merecendo interesse, trabalhos de alumnos da Academia, ainda incorrectos, mas sérios, trabalhos de amadores provando boa aptidão, e, á mistura, alguns horrores, que o jury, apesar da diminuição já sensivel de télas a expor, devia excluir ainda.

Mas, conclusão final, o que se sentia, não obstante o concurso poderoso de dois artistas novos a chamarem vivamente a attenção, era um arrefecimento de enthusiasmo da parte dos artistas; apresentaram alguma coisa que tinham feito, mas pouco ou nada se preoccuparam com a exposição uns, e outros faltaram.

E a apathia do publico que os desanima.

Alguns applausos que colhem, alguma remuneração que para o seu trabalho obteem, não é verdadeiramente a esse publico, para quem se abrem as exposições, que os devem; é geralmente dos amigos, de algum raro amador, que conhece os ateliers, de algum rico discipulo que deseja a seu turno lisongear o mestre, e isto limita-se a uma troca de attenções e obséquios para que não vale a pena affrontar a critica e dar-se á forte canceira de trabalhar com ardor.

V

Roque Gameiro

Na sala destinada ao desenho e a aguarella dominavam como de costume, os dilectantes. Notava-se uma boa aguarella de Gameiro "A epistola" excellente retrato com solido desenho e uma grande frescura de tintas.

A epístola, Roque Gameiro, 1895.
Imagem: Das Culturas

D. Carlos de Bragança

Seduzia também pelo seu chic o grande quadro do sr. D. Carlos "Gado á bebida"; deixou-me, porém, relativamente frio este regio trabalho d’arte, a mim que, quando vou ao Grêmio, demoro sempre, preso por um novo encanto, diante d'aquella primorosa "Marinha" do Ribatejo, que me assombrou quando appareceu em publico, revelando a extraordinária aptidão artistica que eu ignorava existir no chefe d’estado. 

Gado à bebida, D Carlos de Bragança, 1896.
Imagem: Fundação da Casa de Bragança

Póde considerar-se um bom trabalho o que Sua Magestade expõe este anno, mas é muito menos sincero e muito menos sentido, visa ao effeito e tem grandes incorrecções no desenho dos animaes; apesar d'isso é superior a quasi todas as obras que n’aquella sala o acompanham, e é necessário que o sr. D. Carlos se dedique com bastante amor á arte para que possa apresentar-nos successivamente obras que são extraordinárias para um amador, e satisfariam a consciência de muitos artistas.


A fonte velha da aldeia (arredores de Merceana)

A fonte velha da aldeia (arredores de Merceana),
Ribeiro Cristino, c 1896.

Estrada de Portalegre a Marvão; Pôr do sol á beira mar (Praia da Consolação); O rocio de Portalegre; A Judiaria d'Obidos.


Paizagem em Odivelas; Paizagem (em Lagares d'El-Rei); Paizagem em Louza (aguarela).

A esculptura brilhava pela ausência; um busto da sr.a Falker representava todo o distincto grupo de esculptores portuguezes.

Uma interrogação. Este bello movimento para a arte moderna, que ha annos se manifestou em Portugal, irá, pela frieza d’um publico ignaro, pela desattenção que os homens públicos dão a tudo-que verdadeiramente interessa ávida intima do paiz, anniquillar-se e perder-se, sem que deixe em documentos que os vindouros consultem provas da sua vitalidade collectiva? Ficará como uma manifestação sporadica, dois ou tres nomes apenas representando uma originalidade indiscutivel? E um receio bem justificado na derrocada incessante da nossa vida nacional. Os nossos melhores artistas refugiando-se em Paris, honram a patria de que são filhos, mas podemos bem chamar-lhe artistas portuguezes?

Soffrendo as influencias da escola e do meio, debaixo de um céu de tão diversa luz, ouvindo constantemente n’uma lingua estranha expressar sentimentos que não são bem os nossos, tendo diante dos olhos rostos e figuras bem diversas, a sua arte é forçosamente a arte do paiz em que vivem e não uma arte nacional. Se Silva Porto nos deu, por amor, toda a encantadora paysagem portugueza, se Columbano, na intransigência do seu caracter, não acceita imposições de escola, e se guia pela visão que lhe illumina o espirito, tendo a coragem de viver na obscuridade que occulta o artista portuguez, outros, como Sousa Pinto, de tão notável talento, hão de desnacionalisar-se.

Se os artistas encontrassem no paiz, de que a nostalgia os persegue mesmo entre os mais radiantes explendores da civilisação, o acolhimento que o seu talento merece e o incitamento tão necessário aos que trabalham, decerto não iriam viver entre estranhos, e as suas obras, influenciadas pelo sentimento nacional, seriam bem nossas, e teriamos em poucos annos uma pintura portugueza, em que se encontraria a nossa flora, os nossos costumes, as nossas tradições, os nossos bellos typos meridionaes, tudo quanto nos interessa e comnosco vive.

O alumno da Escola de Bellas-Artes que realisa o sonho atormentador de alcançar o pensionado em Paris, muito util pela defficiencia do ensino em Portugal e também pela educação que devem dar-lhe os museus e as exposições, onde póde estudar todos os primores da arte antiga e moderna, se tem talento que lhe permitta luctar com a concorrência de Paris, necessita muita coragem e laços bem fortes a prendel-o á patria para que volte definitivamente.

Os que voltam veem sempre cheios de enthusiasmo, com um arsinho de pedantismo ás vezes, mas dentro em pouco caheim n’uma apathia indolente, procuram como taboa de salvação um logar de professorado, e por ahi se esterilisam, dando pouco do que promettiam. A culpa não é d’elles.

Se é necessário muito tempo para que um ramo qualquer da educação publica se faça, se é difficil convencer a nossa burguezia, que tanto gasta nas bijouterias de chic banal que vem do extrangeiro, em empregar annualmente algum d’esse dinheiro na compra de obras d’arte, protegendo assim os nossos artistas, mais é para lamentar que seja difficil conseguir que os homens públicos attendam devidamente a este assumpto de magna importância.

A acquisição para o Museu Nacional das obras de pintura e esculptura de um real valor que apparecessem, seria o prémio mais desejado pelos artistas e o mais de molde a animar as Bellas-Artes. A acquisição annual para as escolas industriaes de algumas pequenas télas de mérito, justa e rigorosamente escolhidas,, seria também incitamento para que trabalhassem e bem.

A desculpa da pobresa das finanças não é acceitavel, porque a verba a destinar para este fim seria relativamente pequena, quando em coisas de todo inúteis e insensatos esbanjamentos se dispendem sommas muito maiores.

Animar e proteger os nossos artistas, procurando avigorar em todos os ramos das Bellas-Artes o sentimento nacional, é uma bella tarefa, que tão pequena attenção vae merecendo. Tudo quanto se faça pela arte é pouco, mas parece que desconhecemos a sua consoladora influencia nos destinos da humanidade.

Abril de 1896. (1)

(1) Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), 1898

Leitura relacionada:
Catalogo illustrado da 6ª exposição de arte promovida pelo Grémio Artístico em 1896
O Occidente N.º 625, 5 de maio de 1896
Branco e Negro, abril de 1896
José Augusto França, O essencial sobre Columbano Bordalo Pinheiro
Margarida Elias, Columbano Bordalo Pinheiro e as Caldas da Rainha



Na educação d’um povo, verdadeiramente civilisado, devem entrar elementos que o preparem para receber a impressão suggestiva d’uma obra d'arte, qualquer que seja a sua natureza, a sua fórma, o seu modo de ser. Se a arte não é, como diz Veron, senão uma resultante natural do organismo humano, constituido de modo que encontra um goso particular em certas combinações de fôrmas, linhas, cores, movimentos, sons, rythmos e imagens, também é certo que sem uma previa cultura essa disposição natural do homem ficará rudimentar, como aquellas flores de que admiramos a formosa opulência e que, bravas e incultas, mal parece terem dado origem aos bellos exemplares que a cultura nos offerece.

A cultura intellectual precisa para se receber a suggestão emotiva da obra d’arte é simples, umas leves noções de esthetica bastam para abrir á imaginação do homem uma larga janella sobre o campo em que as manifestações d’arte apparecem, com a harmonia que as torna bellas, ou com a força que as eleva ao sublime.

Toda a obra d’arte deve ser mais ou menos comprehendida por aquelles que vivem no meio que a produz, ou ella se dirija ao grupo escolhido que representa o apuro da selecção espiritual d’esse meio, ou, simplesmente, falle para toda a multidão que a escuta; mal, porém, da multidão se a não ouve, porque estará surda para as mais delicadas e harmónicas vibrações. Mas a melhor parte d’essa educação publica é aos artistas que compete. São elles, qualquer que seja o ramo d’arte a que se consagrem, que, elevando-a acima dos proprios interesses, dedicando-lhe a melhor porção da sua alma, traduzindo com sinceridade as suas emoções, a farão comprehender por outras almas, cujo sentir deve estar em muitos pontos d’accordo com o seu.

As exposições, meio porque as artes plasticas, cujos productos são geralmente destinados a um particular, faliam com a collectividade publica, devem procurar influir o mais poderosamente possivel sobre essa collectividade, e os artistas que a ellas concorrem attenderem a que as obras expostas não pertençam á cathegoria das que enchem os bazares do commercio, mas ao numero escolhido das que tem logar no coração do artista e que elle firmou com orgulho ou com amor.

A exposição do Grêmio Artístico, este anno, mais escolhida que a do anno anterior, está ainda assim longe de corresponder ás esperanças dos que muito desejam.

Silva Porto faz lá muita falta Não sao só as suas formosas paysagens, que tão intensamente animavam aquellas paredes, de que se sente a ausência, mas é da sua alma, que também animava o Grémio com o seu enthusiasmo d’artista sincero, e com o seu conselho de mestre. Acima de tudo a arte, era a sua norma. Ninguém como elle dirigia os interesses de todos para o ponto culminante que nenhum deve desfitar, e, conciliador de vontades, era quem melhor sabia destruir os effeitos perniciosos da ciumeira azeda, que, como diz Fialho d’Almeida, envenena os agrupamentos d’artistas.

Deplorável effeito, talvez, d’esse veneno foi a questão trazida para o soalheiro dos jornaes a proposito de Salgado e dos quadros destinados á exposição de Berlim, questão em que não sei, nem me preoccupa o saber, quem tem razão, mas na qual lamentei a fórma porque os artistas, amesquinhando-se a si, vão de vários modos prejudicar a arte.

As pequenas coteries que, guerreando-se mutuamente, desprestigiam artistas de mérito a favor de nullidades mais ou menos espaventosas, também pelo Grêmio agitam as suas marottes.

Uma excessiva febre de ganhar, dominando o nobre interesse da gloria, vae-se denunciando fortemente. Se o jury de admissão teve este anno o bom senso de ser mais severo para com as phantasias do diletantismo, por outro lado commetteu, a meu vêr, uma falta grave, começando a fazer aos estatutos o mesmo que os governos teem feito á Carta Constitucional.

Esta infracção de leis, hoje a favor de um artista do mais elevado mérito, e de quem sou o maior admirador e sincero amigo, benificiou a actual exposição, mas ameaça as exposições futuras, porque, aberto o exemplo, póde depois qualquer banal influente reclamar a cada passo eguaes concessões, e d’ahi resultará uma desordem inadmissível.

Digo e direi sempre desassombradamente o que penso, não sacrificando a minha opinião ao prazer de nenhum dos membros do Grêmio, e, preferindo a associação aos associados, prefiro, também, aos interesses d’ella o grande interesse da Arte, fim grandioso para que devem convergir todos os esforços. O Grêmio Artistico excita, porém, o meu zelo de amador apaixonado da pintura; vêl-o elevar-se, á altura d’uma grande instituição, seria para mim a satisfação d’um ardente desejo. Esta associação artistica, unica no seu genero em Portugal, creada e dirigida polos melhores artistas portuguezes, é, na ausência absoluta dhnteresse dos governos pelas cousas d’arte, uma instituição séria e util, quasi imprescindivel; mas, por isso mesmo, adquire também serias responsabilidades.

Cônscia do muito que póde, e do nobre fim a que devem tender todos os seus esforços, poderá adquirir os fóros d’uma academia dirigente, com applauso de todos. Desviando-se do caminho que as próprias circumstancias da vida artistica cm Portugal lhe indicam, não passará d’uma reunião de elementos mal cimentados, periclitantes, e terá de ceder o logar a outra, melhor organisada, que, pela necessidade absoluta de uma instituição d’esta ordem, terá forçosamente de a substituir.

A actual exposição, embora não seja rica, está longe de ser banal, e basta a analyse dos elementos novos que apresenta para que interésse á critica e offereça motivos de ensinamento.

Os dois artistas que este anno se estreiam no Grêmio são do caracter mais opposto nos seus processos e na sua maneira subjectiva; um é extremamente decorativo, outro profundamente expressivo. Carlos Reis tenta deslumbrar pelas vibrações fulgentes do colorido, e Columbano apresenta-nos o triumpho do claroescuro sobre a illusão da côr. O colorista sacrifica, ao seu instinctivo desejo de brilhar, algumas vezes a verdade, esfriando o enthusiasmo dos sinceros, que ávidos procuram a fonte da emoção, o outro esquece a cor, apaga os detalhes, quando não servem para exprimir uma feição do conjuncto, deixa vivas apenas as phisionomias, as ideias, toda a porção possivel do ser moral das suas obras.

A observação d’estes dois artistas, d’um caracter tão diverso, é o maior attractivo da exposição. Os trabalhos de Salgado, descurados ou insignificantes alguns, mas demonstrando outros o grau de superioridade do artista, distinguem-se também.

Quanto aos restantes direi, embora me peze dizel-o áquelles de quem sou amigo, apresentam um ou outro quadro que se salva pelas naturaes qualidades do artistas, mas nenhuma obra que se saliente, nenhum esforço que mereça applauso; mesmo entre os novos, embora alguns provem que se applicam e trabalham, nada apparece de extraordinariamente promettedor. (2)


in Ribeiro Arthur, Arte e artistas contemporaneos (II), 1898

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