segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Lisboa e o Tejo em 1650

A armada do parlamento (ou do British Commonwealth)

Em 1650 ocorreu um grave incidente diplomático, no termo da guerra civil inglesa que opôs Carlos I ao parlamento, e que terminou com a execução do rei em Janeiro de 1649. Uma armada de parciais do rei veio refugiar-se no porto de Lisboa e o parlamento enviou outra para bloquear o Tejo. (1)

Vista geral da cidade de Lisboa capital de Portugal antes do terremoto.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

No dia 20 de outubro de 1649, o príncipe Rupert (1619-1682) saiu do porto de Kinsale no navio de comando, o Constant Reformation (40 peças), juntamente com o Convertine (40), navio de comando do príncipe Maurice, o Swallow (36) e o Blackamoor Lady (18), os quais tinham feito parte da esquadra que saíra de Helvoetsluys em janeiro.

Três navios adicionais, o Scott (30 peças), o Mary (14), e o Black Knight (14), eram navios capturados e reconvertidos. A esquadra Realista partiu do sul da Irlanda e atravessou o Golfo da Biscaia em direcção a Portugal. No início do ano, Rupert tinha recebido uma resposta favorável quando escrevera ao rei D. João IV pedindo autorização para basear os seus navios em Lisboa, no caso de ser forçado a deixar a Irlanda.

Depois de uma viagem atribulada durante a qual foram capturadas cinco embarcações os Realistas chegaram a Lisboa por volta do dia 20 de novembro de 1649. Três dos navios capturados foram vendidos e dois incorporados na esquadra como Second Charles (40 peças) e Henry (36). Rupert também comprou um navio holandês, que se tornou o Black Prince (30). O Blackamoor Lady foi vendido e o Convertine posto de parte de modo a financiar armas e tripulação para os novos navios.

Lisbone, Ville capitale du Royaume du Portugal... Pierre Aveline (1656-1722) entre 1680 e 1720.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Apesar da simpatia do rei João IV (1604-1656) por Rupert, o seu "ministro em chefe", o Conde de Miro [(?) o cargo de Secretário de Estado era ocupado por Pedro Vieira da Silva, no texto existe alguma confusão possivelmente com o Conde de Miranda], temer que um apoio aberto aos Realistas ingleses pudesse deteriorar o comércio português e também encorajar o Commonwealth a uma aliança com a Espanha, inimiga de Portugal.

De Miro era apoiado pela comunidade mercantil portuguesa. Os portugueses levantaram objeções à venda da carga de um dos navios capturados e o príncipe Maurice foi impedido de embarcar numa nova viagem para tomar futuras capturas.

Contudo, Rupert e Maurice trabalharam de modo a fortalecer as suas relações em Lisboa fazendo visitas frequentes ao rei João e juntando-se à vida social da corte portuguesa. Travaram amizades com a nobreza local e atá ganharam apoio do clero, que dissera que abandonar os príncipes aos rebeldes ingleses traria desonra a Portugal.

Lisbone, Ville capitale du Royaume du Portugal... François-Philippe Charpentier (1734-1817),
baseada em gravura precedente de Pierre Aveline (1656-1722).

Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

No início de 1650, o Conselho de Estado inglês reconheceu Rupert como pirata e encarregou Robert Blake, General-at-Sea, de destruir a esquadra Realista. Blake saiu de Portsmouth em março de 1650 com uma frota poderosa de 15 navios.

O navio de comando era o George (54 peças), o vice-almirante era Robert Moulton no Leopard (56), o contra-almirante era Richard Badiley no Entrance (46). Os outros navios de guerra eram o Bonaventure (42), o Adventure (40), o John (30), o Assurance (32), o Constant Warwick (32), o Tiger (36), o Providence (30) e o Expedition (30). A frota era suplementada pelo navio de fogo [brulote] Signet e os ketches Tenth Whelp, William and Patrick. 

Charles Vane, irmão de Sir Henry Vane, acompanhou a expedição com a responsabilidade de conduzir as negociações diplomáticas com o governo português, que então não reconheceu o Commonwealth of England.

Lisboa, Terreiro do Paço, A entrada do Embaixador Francisco de Mello e Torres, Dirck Stoop, 1662.
Imagem: Museu da Cidade de Lisboa

A frota de Blake chegou à Baía de Cascais na foz do rio Tejo no dia 10 de Março de 1650. Blake imediatamente enviou uma mensagem ao rei João pedindo o uso do porto de Lisboa para a frota do Commonwealth e a cooperação de Portugal contra os piratas do príncipe Rupert.

No dia seguinte, apesar disso, os fortes portugueses dispararam tiros de aviso quando Blake tentou subir o rio Tejo em direcção ao lugar de ancoragem de Rupert. Blake concordou em retirar durante as negociações diplomáticas.

Charles Vane negociou uma concessão dos portugueses segundo a qual a frota do Commonwealth poderia entrar na baía de Oeiras no caso de mau tempo. Blake imediatamente aproveitou a oportunidade para ancorar a duas milhas rio abaixo dos navios de Rupert.

Torre de S Julião da Barra, João Christino, c. 1855.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal

Como as negociações continuaram durante as semanas seguintes, os portugueses concordaram em deixar os marinheiros do Commonwealth vir a terra, o que resultou em várias rixas de taberna entre os tripulantes das frotas rivais.

Na sequência de uma alegada emboscada e tentativa de assassínio pelos marinheiros do  Commonwealth quando Rupert e Maurice estavam numa caçada, os Realistas retaliaram enviando um barco disfarçado de venda de fruta armadilhado com uma bomba de fogo, que quase conseguiu rebentar o Leopard.

Noutro encontro, os homens de Rupert atacaram um grupo do Bonaventure que fazia aguada. Um marinheiro foi morto e três outros feitos prisioneiros. Apesar destes encontros, contudo, a situação continuou sem saída.

Mosteiro dos Jerónimos e Torre de Belém, Dirck Stoop, c. 1660 - 1670, 1662.
Imagem: Mauristhuis Museum

D. João IV recusava deixar Blake atacar os navios de Rupert enquanto estes estivessem sob proteção portuguesa, e Rupert não podia arriscar deixar o porto de Lisboa com a poderosa frota do Commonwealth por perto.

Em meados de maio, Blake retirou do rio Tejo, na esperança de enganar a esquadra Realista. Por volta de 21 de maio, Blake apreendeu dez navios mercantes ingleses fretados a uma frota portuguesa que saía para o Brasil.

Quando Blake se ofereceu para libertar os navios se o rei João entregasse os navios do príncipe Rupert, o rei furioso ordenou a prisão de todos os súbditos ingleses em Lisboa conhecidos pela sua simpatia para com o Commonwealth e proibiu Blake de entrar no Tejo ou abastecer água em terra.

D. João, duque de Bragança, Peter Paul Rubens,  c. 1628.
Imagem: Wikipédia

Poucos dias depois, General-at-Sea, Edward Popham reforçou a frota de Blake com mais oito navios: o de 68 peças, Resolution, o Andrew (42), o Phoenix (36), o Satisfaction (26), quatro navios mercantes armados e um muito necessário navio de armazenamento. Popham trouxe ordens revistas pelo Conselho de Estado que autorizavam Blake a atacar os navios mercantes portugueses se o rei João continuasse a obstruir o Commonwealth.

Sob a pressão crescente do  Commonwealth inglês e dos seus próprios conselheiros, o rei João tentou arrajar uma solução honorável para a situação oferecendo o uso da frota portuguesa para escudar a fuga do príncipe Rupert de Lisboa.

No dia 26 de julho, quando oito dos navios de Blake foram a Cadiz reabastecer provisões. A esquadra de Rupert saiu do porto de Lisboa apoiada por dois navios franceses, treze navios de guerra portugueses, alguns barcos de fogo e embarcações mais pequenas.

Rupert em visita à corte de Charles I, Anthony van Dyck, c. 1637.
Imagem: Wikipedia

Os aliados tiveram relutância em afrontar a frota do Commonwealth e apesar de Blake estar determinado em conter a esquadra de Rupert, não quis arriscar um envolvimento total até ao regresso da esquadra de Cadiz.

Durante três dias as frotas opostas manobraram na foz do Tejo com trocas ocasionais de tiros quando Rupert tentava aproveitar as mudanças do vento e da maré para se evadir aos navios de Blake e escapar-se para o mar aberto.

Na manhã de 29 de julho, a esquadra de Cadiz tinha regressado e a frota do Commonwealth tinha de volta a sua força total. Com Blake preparado para lançar o ataque em toda a escala, a frota aliada retirou para o abrigo das armas do porto de Lisboa.

A batalha dos quatro dias (1666), novas tácticas de Rupert, Abraham Storck, c. 1670.
Imagem: Wikipedia

Nos inícios do mês setembro de 1650, o Conselho de Estado chamou Popham com o maior número de navios possível que pudesse dispensar da frota do Commonwealth. O bloqueio de Lisboa era caro a sustentar e os navios eram também precisos para apoiar a invasão da Escócia por Cromwell.

No dia 3 de setembro, Popham partiu para Inglaterra com oito navios, incluindo o poderoso Resolution, deixando Blake com nove navios para observar o príncipe Rupert. Três dias depois da partida de Popham, os realistas aproveitaram as condições do nevoeiro para fazer uma nova tentativa para escapar mas fora avistados e atacados pela frota do Commonwealth.

Durante este encontro, o navio de comando de Rupert, Constant Reformation, foi atacado pelo navio de comando de Blake, George. Uma descarga de tiros do George mandou abaixo o gurupés do  Constant Reformation, e os Realistas foram mais uma vez forçados a retirar para Lisboa.

A batalha de Texel (1673), o fim da carreira de Rupert como almirante, Willem van de Velde the Younger, 1687.
Imagem: Wikipedia

No dia 14 de setembro, Blake avistou a frota portuguesa do Brasil que regressava a Lisboa. Coma autorização do Conselho de Estado para atacar o comércio português, Blake movimentou-se para intercetar a frota. 

Depois de uma batalha de três horas, Blake no George, capturou o navio vice-almirante português, ao mesmo tempo o seu irmão, Benjamin Blake, comandando o Assurance, capturava o contra-almirante. O navio de comando português escapou com a perda do mastro grande.

Apenas nove dos vinte e três navios da frota chegaram a Lisboa; um foi a fundado e o resto capturado. A perda da frota do Brasil, com a sua valiosa carga, que incluía 4.000 arcas de açúcar, foi um sério rombo para a economia portuguesa e finalmente convenceu o rei João a insistir com o príncipe Rupert de que a sua esquadra deveria deixar Lisboa. 

Actriz Margaret Hughes, companheira de Rupert, Peter Lely, c. 1670.
Imagem: Wikipedia

Perto do final do mês de setembro, a frota de Blake foi obrigada a partir para Cadiz para reabastecer e para tratar do saque das capturas portuguesas. Com a partida de Blake, Rupert aproveitou a oportunidade para se escapar. No dia 12 de outubro saiu do rio Tejo com seis navios em direcção ao Mediterrâneo. (2)


(1) Fernando Gomes Pedrosa, A Muleta e a Tartaranha (séculos XV-XX)
(2) BCW Project Prince Rupert at Lisbon (1649-1650)

Leitura adicional:
História de Portugal Restaurado



Notas adicionais:

Os navios portugueses envolvidos no conflito

Santo António da Esperança (1644-1658) — Galeão de 600 t e 40 peças comprado ao Mercatudo em 1644. Em 1651 combateu nas águas do Tejo a armada inglesa do Parlamento. Em 1655 foi dado por incapaz na Baía, mas aparece na Índia (1657-1658). Entrou no combate contra holandeses na barra de Goa em 1657 e 1658.

N.ª S.ª da Luz (1648-1661) — Galeão de 28 peças comprado na Holanda, que era também conhecido por Fortuna e aparece como fragata e nau. Fez parte da força naval que acometeu a armada inglesa do Parlamento que bloqueava o Tejo em 1650. Em 1661, por ser velho, sugeriu-se que fosse entregue à Junta do Comércio.

N.ª S.ª da Conceição (1649-1651) — Galeão de 300 t e 24 peças da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil. Em 1649 largou para o Brasil na armada do conde de Castelo Melhor. Em 1650 saiu a bater-se com a armada inglesa do Parlamento que bloqueava o Tejo.

S. Pedro de Lisboa (1649-1650) — Galeão de 400 t e 34 peças da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil. Em 1649 largou para o Brasil na armada do conde de Castelo Melhor. Em 1650 saiu de armada a bater-se com a armada inglesa do Parlamento, sendo aprisionado pelo inimigo.

S. Francisco (1650) — Galeão da armada de Sequeira Varejão que em 1650 saiu a acometer a armada inglesa do Parlamento que bloqueava o Tejo.

S. João (1650) — Galeão da Companhia Geral do Comércio do Estado do Brasil que no regresso do Brasil, em 1650, sendo navio-chefe de Antão Temudo, se bateu nas águas do Tejo com a armada inglesa do Parlamento.

Santo António de Mazagão (1650-1654) — Galeão de 18 peças que também aparece como nau. Em 1650, de regresso da Índia, furou o bloqueio do Tejo da armada inglesa do Parlamento. Navio-chefe da armada aparelhada no Tejo para combater a armada do Parlamento. Ia armado de 36 peças. Em 1652 saiu de Goa para a reconquista de Mascate e em 1654 foi no socorro a Ceilão numa armada que destroçou uma esquadra de três naus holandesas. No regresso a Goa, perseguido por uma armada holandesa, encalhou e perdeu-se.

S. Pedro e S. João (1650) — Galeão que em 1650 largou numa armada a combater os ingleses do Parlamento que bloqueavam o Tejo. Combateu na segunda saída.

N.ª S.ª da Natividade (1650) — Galeão que em 1650 largou numa armada a combater os ingleses do Parlamento que bloqueavam o Tejo. Foi tomado pelos ingleses, apesar da bravura com que se houve na luta.

N.ª S.ª da Estrela (1650) — Galeão que também dava pelo nome de Santa Maria da Estrela. Em 1650 fez parte da armada que saiu a combater os ingleses do Parlamento que bloqueavam o Tejo.

S. Lourenço (1650-1658) — Galeão que em 1650 saiu numa armada a combater os ingleses do Parlamento que bloqueavam o Tejo. Em 1658, incluído na armada, combateu os holandeses que bloqueavam Goa.

Santa Cruz (1650-1656) — Nau de 500 t e 33 peças que também aparece como navio, galeão e fragata. Em 1650 saiu a acometer a armada inglesa do Parlamento que bloqueava o Tejo, incluída na força naval de Sequeira Varejão.

N.ª S.ª da Candelária (1641-1651) — Galeão de 700 t e 26 peças. Tomou parte na empresa de Cádis em 1641. Em 1644 largou para a Índia na armada de viagem do cabo Luís Velho. Tendo regressado em 1646, voltou à Índia no ano seguinte. Em 1650 bateu-se na costa com a armada inglesa do Parlamento. (a)

Sobre os navios de pesca (muletas) capturados

Esta armada do parlamento, que esteve junto à barra desde finais de março até finais de setembro de 1650, no dia 13 de junho apresou alguns barcos de pesca portugueses.

Segundo uma fonte inglesa, eram 16, dois dos quais conseguiram fugir. Numa carta do rei de Portugal ao embaixador em Londres, de 7 de agosto de 1650, eram 14, que costumavam fornecer abastecimentos aos navios ingleses na barra de Lisboa.

No dia 24 de junho o rei D. João IV enviou cartas ao governador do Algarve e ao conde da Ericeira informando que os Ingleses apresaram umas tartanas que andavam a pescar. Ficamos assim a saber que andavam a pescar perto da barra de Lisboa pelo menos 16 tartanas, as 14 apresadas e as duas que conseguiram fugir.

É a primeira vez que se tipifica a embarcação que pesca com rede tartaranha: é a tartana, tal como a tartana francesa que pesca com rede tartana. Até aí era dita barca, barco, tartaranha, chincha ou chinchorro. A muleta com rede tartaranha já aparecera em 1634 e 1645, mas como designação genérica.

Em 1672, numa postura da câmara de Lisboa, as embarcações que pescam com chinchorros são muletas: "porque as muletas de chinchorros são barcos mais pequenos que as chinchas, e não podem acomodar as redes sobre o leito com as bolas de barro, pelo muito volume que fazem, com que os barcos podem correr algum risco, se lhes permite possam usar de chumbadas nas duas paredes da rede a que chamam rede de mão, com tanto que em todo o caso usem das bolas de barro em toda a cuada, por ser esta a que arrasta toda a criação e desfaz a ova".

A bitola da malhagem que havia sido estabelecida, mais pequena, "se deve entender só para as tartaranhas, e não para as chinchas e chinchorros, porquanto antes se lhes deve dar malha com que possam tomar sardinha, que é o para que estes barcos têm a principal serventia". (b)

(a) António Marques Esparteiro, Catálogo dos navios brigantinos (1640 - 1910)
(b) Fernando Gomes Pedrosa, A Muleta e a Tartaranha (séculos XV-XX)

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