Comprada em asqueroso matadoiro
Sanguinosa forçura, quente, e inteira,
E cortada por gorda taverneira,
Cujo cachaço adorna um cordão d'oiro;
Vista do Convento de Sto Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa (detalhe), Henri L'Évêque/Francesco Bartolozzi. ComJeitoeArte |
Cabeças de alho com vinagre e loiro,
E alguns carvões, que saltam da fogueira,
Fervendo tudo em vasta frigideira,
C'os indigestos figados de touro;
Suavissimo cheiro, o qual augura
Grato manjar, mas que por causa justa
Dá um sabor, que nem o dêmo o atura;
Isto é chanfana, e sei quanto ella custa;
Deu-me o berço, dar-me-hia a sepultura,
A não valer-me a vossa mão augusta.
[Nicolao Tolentino d'Almeida] (1)
SONETO LI
D'alto barrete, á laia de turbante,
Os braços nus, a faca na cintura,
Co'um pano por timão á dependura,
Trabalha o Isidro, a turco similhante:
A ceia da chanfana Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904 |
Do elastico bofe inda pingante,
Da barriga do porco alva gordura,
Faz por tal modo uma tal fritura,
Que aos toneis cheios toca a sé vacanle!
Esta, príncipe augusto, é que eu approvo,
Chanfana sancta, assás famigerada,
Com que o turco amotina o vosso povo:
O peor é, que lambe d'estocada
Aos peraltas o seu cruzado novo.
Menos a mim, que nunca paguei nada!
Antiguidade da Chanfana
SONETO LII
Depois que ao som do berço me cantava
Velha enrugada modas bolorentas,
A voz soltando pelas sujas ventas,
Q'em vez de somno medo me causava:
Cena de bordel com frades, Nicolas Delerive. FRESS |
Depois que para a eschola eu só andava
Expondo-me do mundo a mil tormentas,
E minha avó nas contas já sebentas
Para que eu fosse bom sempre rezava:
Vi até agora em portas de baiuca
Bofes, pimentos, alhos, e cebolas
Em caçoula fervendo já caduca:
Este guisado, pois, de corriolas
A tal chanfana ser ninguem retruca,
Petisco de malsins, de mariolas.
Descripção da Chanfana
SONETO LIII
Em pequenas barracas de madeira
No campo do curral vejo espichado
Em torto prego o bofe ensanguentado
De velho boi, já cheio de lazeira:
Pintando uma bulha entre dois bêbados, Nogueira da Silva. Obras completas de Nicolau Tolentino de Almeida... 1861 |
Alli de Isidro, Almeida, Talaveira (*)
E de outros taes, a quem ergueu o fado,
Todo o negocio foi principiado
Por indigesta gorda forçureira:
Alli de bodegões bando infinito
O seu tassalhão compram de semana,
Que descalços á porta vendem frito:
A qualquer que ali passa o cheiro engana:
Gasta os seus cobres, e depois afflicto
A vomitos conhece o que é chanfana.
(*) Casas de pasto mui nomeadas em Lisboa
Retrato da casa onde se vende a Chanfana
SONETO LIV
Em casa terrea com dous bancos sujos,
Meza de pinho a quem um dos pés falha,
D'estopa em cima sordida toalha,
E de roda fumando alguns marujos:
O chanfaneiro (typo gallego) Nogueira da Silva Archivo pittoresco n° 35, 1860 |
A porta sempre cheia de sabujos,
E defronte sentada sobre palha
De Guiné, e d'Angola essa canalha,
Vendendo mexilhões, e caramujos:
De louro á porta um grande molho atado,
Cortina rota, e sobre o fogareiro
Da chanfana o banquete costumado:
Pois quem vir isto assim fuja do cheiro,
Que se entrar por querer d'este guisado
Sairá sem comer, e sem dinheiro.
Retrato do Mal-cosinhado (*)
SONETO LV
Lá onde d'antes era situada
Essa antiga Ribeira, em negras choças
Estão vendendo enlabuzadas moças
Arroz com açafrão, sardinha assada:
Painel de azulejos, A Casa dos Bicos e o mercado da Ribeira Velha, século XVII. Museu da Cidade de Lisboa |
Soccos nos pés, as pernas sem ter nada,
Roupinhas de bacta, argolas grossas,
Aos tostões dos galegos fazem mossas
Co'o feijão, com a isca, e co'a canada:
Alli de humilde boi já esfolado
O molle bofe se lhe vai frigindo,
E em prato o põem, que nunca foi lavado:
Toda a plebe á chanfana vai surgindo;
Mas depois sáem d'este coe damnado
Ora dando encontrão, ora caindo.
(*) prostíbulo (ou local), v. carta analisada na revista Lusitânia, Fascículo Camoniano (V e VI), 1925
Feito por auctor anonymo, e dirigido ao Príncipe D. José, sobre o mesmo assumpto do soneto LI
(pareceu conveniente reunir aqui, posto que de auctores diversos, esta e as seguintes composições, dirigidas todas ao mesmo assumpto, e feitas na mesma occasião)
SONETO LVI
Se um veloz javali, que vai fugido,
Vossa Alteza seguisse, e por acaso
Por caminho embrenhado, e pouco raso
D'arbustos cheio, e mattos desabrido:
Retrato de D. José, príncipe do Brasil (1761-1788), por Miguel António do Amaral. Cabral Moncada Leilões |
Se por matal-o em fim, tendo corrido
De distancia, e de tempo um longo praso,
Perdido dos criados, n'este caso
Na choça d'um pastor fosse acolhido:
E se o pobre pastor, tendo primeiro
Alhos, sal, e pimenta na cabana,
As entranhas frigisse de um carneiro:
Falto de fiambres, já crescendo a gana,
(Negra é a fome!) talvez já pelo cheiro
Vossa Alteza soubesse o que é chanfana.
Ao mesmo
SONETO LVIII
Não é esta, senhor, a de que fala,
Á chanfana do fígado do touro,
Nem se aduba com alhos, nem com louro,
Como o tal Tolentino quiz pintal-a:
Retrato de Nicolau Tolentino, Giuseppe Trono. Agostinho Araújo, Tipologia votiva e lição literária: o caso Tolentino |
Uma carne, que deixam de sangral-a,
Mais ascorosa que a do matadouro,
Com toucinho, que o ranço fez cor d'ouro,
E pedregoso arroz, que o dente estala:
Carneiro resequido, e não assado,
Galinha, que mais couta que anno e dia,
Com os seccos pasteis sem ter picado:
Eis aqui de que fala a fidalguia;
Isto é chanfana, insípido bocado,
Que forjam os cyclopes da ucharia,
(Pedro Caetano Pinto de Moraes Sarmento)
Ao mesmo
SONETO LIX
Tolentino, senhor, foi quem traçou
Da chanfana o retrato natural;
Bem que sem pimentão, toucinho, e sal
Muito mal o guizado temperou:
Lobo apenas o Isidro nos pintou
De turbante adornado, e de avental;
Posto que uma imagem tal e qual
Da mais fina chanfana nos mostrou:
Pinto toma os pinceis da phantasia,
E subindo ao sentido figurado,
Foi colorir as fezes da ucharia:
Seu quadro é bom; seria consumado,
Se a sua tão creança fidalguia
Não tivera no quadro respirado
(Luis Joaquim da Frota) (2)
Preside o neto da rainha Ginga
Á corja vil, aduladora, insana:
Traz sujo moço amostras de chanfana,
Em copos desiguaes se esgota. a pinga:
Manuel Maria de Barbosa de Bocage (detalhe), Henrique Joze da Silva del. Francisco Bartolozzi R. A. sculp. belas-artes ulisboa |
Vem pão, manteiga, e chá, tudo é catinga;
Masca farinha a turba americana;
E o ourango-outang a corda á banza abana,
Com gestos e visagens de mandinga:
Um bando de comparsas logo acode
Do fofo Conde ao novo Talaveiras;
Improvisa berrando o rouco bode:
Applaudem de continuo as Moleiras
Belmiro em dithyrambo, o ex-frade em ode;
Eis aqui de Lereno as quartas feiras. (3)
Se eu podera ir de tralha, ir á surdina
Por ahi! Forte sede, e forte gana
De zurrapa, de atum, de ti, chanfana,
De ti, que dos pingões és golosina!
Vista da Cidade de Lisboa tomada da Junqueira (detalhe), Henri L'Évêque/Francesco Bartolozzi. ComJeitoeArte |
Que tempo em que eu com sucia, ou grossa, ou fina,
Para a tia Anastácia (a tal cigana)
Ia, e vinha depois co'a trabuzana
A remos, no mar roxo, ou á bolina!
Quando has de consentir, cruel Fortuna,
Ao magro, de olho azul, de tez morena
O bem d'andar a flaino, e d'ir á tuna?...
Mas ai! Maldicto som, que me condemna!
Dize, oh Fado, ao bizouro, que não zuna...
Ahi me chama algum — "Alma pequena!" (4)
(1) Obras completas de Nicolau Tolentino de Almeida... 1861
(2) António Lobo de Carvalho, Poesias joviaes e satyricas,
(3) Obras poéticas de Bocage (volume I)... 1875
(4) Idem
Leitura relacionada:
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.
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