domingo, 9 de junho de 2019

O regresso D. Miguel

Entre 1822-1823 dois elementos da família real, a rainha e o infante D. Miguel, tornaram-se símbolos da contra-revolução portuguesa. A mulher de D. João VI, Carlota Joaquina, transformara-se em heroína da imprensa contra-revolucionária em finais de 1822, pela sua recusa firme em jurar a Constituição e em abandonar o país, corporizando a oposição às Cortes e ao governo liberais.

Lisboa vista da Quinta da Torrinha Val Pereiro, gravura de William James Bennett sobre desenho de L. B. Parlgns.
Museu de Lisboa

D. Miguel, filho segundo do rei, que voltara com a família real em 1821, ao encabeçar o golpe da Vila-Francada em 1823 ficou sendo o referente principal da contra-revolução e, dado que D. Pedro, o primogénito, se colocara à testa do movimento de independência do Brasil [...]

Lissabon von der Quinta da Torrinha - Val de Pereiro. Umgebunge von Lissabon.
Aus der Geographischen Graviranstalt des Bibliographischen Instituts zu Hildburghausen, Amsterdam, Paris u. Philadelphia.
Author: Meyer, Joseph (1796-1856) Society for the Diffusion of Useful Knowledge (Great Britain), 1844.
  Cabral Moncada Leilões

O Terreiro do Paço, palco do “humilhante” desembarque de D. João VI e da demonstração do poder das Cortes, foi evitado por D. Miguel quando regressou em Fevereiro de 1828 [...]

Vista da Praça do Comércio, Henry L'Evêque.

Vindo de Viena de Áustria, com passagem por Paris e Londres [depois de assinados os protocolos de Viena entre Portugal, Inglaterra e Áustria sobre os poderes e as condições do seu regresso a Portugal e traçado o percurso da viagem, com paragens em Paris e em Londres e não por Espanha como pretendia, o Infante sai de Viena de Áustria no dia 6 de Dezembro de 1827. Chegado a Londres em 30 de Dezembro embarca rumo a Lisboa no dia 9 de Fevereiro de 1828. No final de Dezembro a sua próxima chegada era certa], D. Miguel chegou ao Tejo na sexta feira de 22 de Fevereiro de 1828, como lugar tenente e regente do Reino, por nomeação de D. Pedro IV, a bordo da fragata Pérola, a mesma que o levara para o exílio em 1824 na sequência da Abrilada.

A reconstrução do desembarque de D. Miguel em Lisboa, escrita por Oliveira Martins pouco mais de meio século após o acontecimento, ainda que ancorada em testemunhos e memórias dos que viveram ou ouviram contar esse dia, determinou em larga medida a memória e as leituras futuras desse momento. "Portugal inteiro esperava dele a redenção", uns porque que aguardavam que cumprisse as promessas feitas em Viena, outros porque acreditavam que se mantivesse fiel aos princípios expressos em 1824 [...]

"Foi em 22 de Fevereiro (1828) que D. Miguel desembarcou. O rio era um lençol de barcos e bandeiras, uma floresta de mastros, de velas brancas, como bandos de gaivotas voando nas vésperas de temporal. Havia um entusiasmo decidido, uma aclamação espontânea, um furor desenfreado. Repetiam-se os vivas ao rei absoluto, aos Silveiras, à rainha – sem rebuço, na cara dos moderados liberais, corridos da sua fraqueza, cônscios da triste figura que faziam.

Esperava-se que o infante desembarcasse no Terreiro do Paço, e o Senado da Câmara tinha preparado grinaldas e bandeiras; mas o povo todo já corria a Belém, porque se soubera que D. Miguel desembarcaria aí subindo pela Calçada direito ao Paço, à Ajuda. A Pérola, que o trouxera, deitara ferro em frente de Belém, e estavam já a bordo a rainha e as infantas e os ministros, e Clinton o general das tropas inglesas […]. O desembarque, o trajecto até o Paço foi um triunfo: um trovão de vivas, um desespero de gritos, um dilúvio de flores, bandeiras, colchas, foguetes em girândolas!"

[cf. Oliveira Martins, Portugal Contemporâneo, I vol., Lisboa, Guimarães Editores, 8ª ed., 1976 (1ª ed., 1881)]

Desembarque do Augustissimo Senhor D. Miguel no Caes de Belem, Mauricio José do Carmo Sendim.
Museo del Romanticism

Rei chegou, Rei chegou!
Em Belém desembarcou;
Na barraca não entrou
E o papel não assinou!

A Câmara dos Pares, na resposta ao discurso da Infanta Regente pronunciado na sessão de Abertura das Cortes no início de Janeiro de 1828, depois de reafirmar os sentimentos de lealdade à Casa de Bragança, declara que os seus membros "exultam de prazer com a lisonjeira esperança de que dentro em pouco verão entre si mais um Augusto Membro de tão Excelsa Família. A presença do Sereníssimo Senhor Infante D. Miguel, chamado à Regência destes Reinos, desarmará partidos e, reunindo em torno de si todos os Portugueses, lhes afiançará, com as insignes qualidades de Sua Alteza, um próspero futuro, cheio de paz, e felicidade".

"Às quatro horas da tarde “tinha já dado fundo a fragata Pérola, que o conduzia, e da qual saiu imediatamente para a galeota real que o esperava, saltando em terra no cais de Belém.

Suas augustas irmãs, que na mesma galeota se achavam, o receberam cheias de prazer, congratulando-se com ele depois de tão dilatada e penosa ausência; e, entrando na carruagem de estado, se dirigiram ao palácio chamado velho, por ser a actual habitação de sua majestade a imperatriz-rainha […] aonde sua alteza real a cumprimentou, demorando-se o tempo preciso para saciarem as recíprocas saudades […]. No fim desta entrevista passou o mesmo sereníssimo senhor a visitar sua augusta tia […] e depois se dirigiu a ocupar os quartos que lhe estavam preparados no palácio novo de Nossa Senhora da Ajuda, contíguo ao de sua augusta mãe. […]

A Ajuda vista das Necessidades, Charles Landseer, 1825.
Instituto Moreira Salles

A rapidez com que sua alteza real apareceu, entrou e foi para o palácio, não deu tempo nem a que as tropas se formassem, nem a que se pudessem praticar as cerimónias estabelecidas para a sua pomposa recepção. O Senado da Câmara, o juiz do povo e a sua casa dos vinte e quatro, a corte, o corpo diplomático, as autoridades e muitas outras pessoas de distinção, se dirigiram ao real palácio a cumprimentar o mesmo augusto senhor, que se dignou dar beija-mão real nessa ocasião" 

cf. Correio do Porto, n° extraordinário, 23 de Fevereiro de 1828

"[no dia 24 de fevereiro] não quis demorar-se em fazer patente a sua religião e pias intenções para com a mãe de Deus, debaixo da invocação de Nossa Senhora da Conceição da Rocha, que se propôs visitar. Para esse fim se dirigiu desde o Palácio da Ajuda […] com suas augustas irmãs, à basílica de Santa Maria Maior [Sé], aonde assistiram ao soleníssimo Te Deum, que também ali se cantou, pelo fausto motivo da sua chegada a estes reinos [um importante significado político, prende-se com a ausência de Carlota Joaquina nesta cerimónia e nas que se lhe seguiram]" 

cf. Correio do Porto, Fevereiro de 1828

Juramento de fidelidade como regente, dois dias depois (26 de Fevereiro, pelo meio dia), a D. Pedro IV, D. Maria II e à Carta de acordo com o estabelecido em Viena entre as potências: “Juro fidelidade ao senhor D. Pedro IV e à senhora D. Maria II, legítimos reis de Portugal. […]. Juro igualmente […] observar e fazer observar a Constituição política da nação portuguesa e mais leis do país e prover ao bem geral da nação quanto em mim couber”. O juramento decorreu no palácio da Ajuda [...] A crer nos relatos de Lavradio e do visconde de Porchester, D. Miguel esteve pouco à vontade durante todo o acto e jurou em voz "sumamente baixa" [...]

nesse mesmo dia é nomeado um novo governo do qual faziam parte conhecidos inimigos do regime constitucional. D. Miguel terá dito, em resposta às objecções do embaixador inglês, que era composto "de verdadeiros homens de bem, dos quais nenhum pertencia ao partido exaltado e à revolução. Tenho toda a confiança neles, eles não sairão nunca!" [...]

nomeação de novos governadores militares entre 5 e 10 de Março. A medida foi completada em meados de Maio com a dissolução dos regimentos dos Voluntários Reais do Comércio de Lisboa, dos batalhões de caçadores e artilheiros e dos Voluntários de D Pedro e D Maria do Porto [...]

25 de Abril, dia do aniversário de Carlota Joaquina, tem lugar no Senado de Lisboa a célebre aclamação popular "Viva D. Miguel Rei Absoluto" [...] (1)

A 26 de outubro, anniversario natalício de D. Miguel, houve recita de gala em S. Carlos, com assistência do rei e das infantas. É a primeira vez, depois que chegara, que D. Miguel apparece em S. Carlos. Não lhe mereciam grande agrado os espectáculos públicos, solemnes e graves. 

Theatro de São Carlos, Legrand (1839-1847).

Sem embargo, S. Carlos funccionava. Estava ali trabalhando uma companhia de opera, que tinha como director de orchestra Xavier Mercadante. Cantavam-se Adriano na Syria, o Posto abandonado, etc. Representavam-se pantomimas: Moysés no Oréb, por exemplo. Entre as cantoras figuravam a Schiroli, e a Josephina Tuvo. 

É claro que só os realistas iam ao theatro. Os liberaes mais exaltados haviam emigrado; os moderados retraíam-se por cautella. E por mais moderado que fosse um liberal, não se atrevia a ir comprar um bilhete ao camaroteiro Grondona, que era um dos caceteiros miguelistas.

O rei não apparecia em S. Carlos, nem no theatro do Bairro Alto, que dava O surdo na estalagem, o Medico por força, a Izabel 1.a da Rússia. A falta de concorrência, devida aos sobresaltos políticos e ao abandono em que o rei deixava os theatros, apesar d'elle próprio gostar de representar, fez com que os melhores artistas nacionaes emigrassem para o Brazil. 

Para lá foram a Ludovina e alguns collegas, lodos de primeira plana. O Theodorico, para poder viver, metteu-se de gorra com D. Miguel, lisonjeava-o fazendo-se amante de toiros, e na praça do Salitre soltava piadas aos malhados. As infantas gostariam certamente de poder ir ao theatro, de exhibir as toilcttes talhadas pela Levaillant, que morava na rua de S. Francisco da Cidade, e pela Burnay, que tinha atelier na rua do Alecrim [Madame Burnay, avó do actual conde do mesmo titulo, annunciava-se como modista de sua alteza a sereníssima senhora infanta D. Maria d' Assumpção].

Lisbon ,Largo do Pelourinho, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, c. 1830.
Biblioteca Nacional de Portugal

Mas, decididamente, D. Miguel não queria constranger-se a ter que estar aprumado no camarote real durante algumas horas. Preferia aos espectáculos de gala as serenatas no Paço, que o não obrigavam á immobilidade de um autómato, para que não tinha génio. 

Lisbon from the chapel hill of Nossa Senhora do Monte, Drawn by Lt. Col. Batty, 1830.
Biblioteca Nacional de Portugal

Em 29 de setembro, dia do santo do seu nome, houve beijamâo na Ajuda, e á noite serenata nas Necessidades. A 9 de novembro desse anno, D. Miguel fazia trotar as mulas que puxavam o seu carrinho de passeio em caminho de Caxias. Acompanhavam-n'o as duas irmãs. As mulas espantaram-se, o carrinho voltou-se. 

O rei fracturou o fémur da perna direita, D. Izabel Maria ficou ferida na região frontal, e D. Maria da Assumpção contusa na coixa esquerda. Foi D. Miguel conduzido em maca para Queluz.

Retrato de D. Miguel I, Johann Ender, Palácio Nacional de Queluz.
  Portugal Virtual

Assistiram-lhe durante a enfermidade o seu amigo barão de Queluz, e os outros cirurgiões da real camara, Jacintho José Vieira, António Joaquim Farto e Manuel Lopes de Carvalho. As infantas restabeleceram-se de pressa, mas o concerto da real perna foi demorado.

Durante o tratamento, a corte cahiu em maior monotonia. Interromperam-se as toiradas e as caçadas no Alfeite ou em Mafra. Não havia divertimento nenhum, o rei estava de perninha, como dizem os lisboetas. Começou então uma longa serie de Te-Deums pela saúde do rei, tantos, pouco mais ou menos, como tinha havido pela sua acclamação. Dois dias antes do Natal, o rei poude levantar-se. Os médicos assistentes deram-lhe alta. Os miguelistas cantavam:

D. Miguel é bonito, 
é bonito e bem feito. 
Quebrou as pernas, 
Ficou sem defeito! (2)

D. Miguel I e suas irmãs dando graças a Nossa Senhora da Conceição da Rocha, 29 de janeiro de 1829.
Cabral Moncada Leilões
*
*     *

Em julho de 1833, a expedição commandada pelo conde de Villa Flor, depois duque da Terceira, desembarca no Algarve, a esquadra liberal, sob as ordens de Napier, destroça no cabo de S. Vicente a esquadra miguelista, e Villa Flor, marchando sobre Lisboa, vai apossar-se da capital.

O duque do. Cadaval, sacrificando a sua opinião ao conselho dos chefes militares, aterrados, não oppozera resistência, abandonara Lisboa, como já se tinha abandonado o Porto um anno antes, retirara para o Campo Grande, marchara para Coimbra, a procurar apoio nas forças que D. Miguel, com Bourmont, trouxera do norte. 

Lisbon from Almada, Drawn by Lt. Col. Batty, Engraved by William Miller, 1830.
Imagem: Wikimedia

Á approximação do exercito de D. Pedro, o terror domina em Lisboa o espirito de todos os miguelistas, que se sentem desamparados com a retirada do duque do Cadaval. Verdadeiramente desorientados, reunem-se no Rocio, na noite de 23 para 24 de julho, e, no meio de uma grande confusão de terror, resolvem fugir para onde podem, especialmente para Santarém, n'um êxodo precipitado, em que o cansaço, o medo e a colera-morbus os vão dizimando. (3)


(1) Maria Alexandre Lousada, A contra-revolução e os lugares da luta política. Lisboa em 1828.
(2) Alberto Pimentel, A ultima côrte do absolutismo em Portugal, Lisboa, Liv. Férin, 1893
(3) Idem

Mais informação:
Documentos com referência a Miguel I (1802-1866), rei de Portugal

Leitura relacionada:
Os reis da casa de Braganca na Decadencia e na Queda da Monarquia Portuguesa no Ultimo Seculo, 1810-1910
Miguel I, King of Portugal, 1802-1866 (Internet Archive)
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