quinta-feira, 23 de novembro de 2017

Um boné por uma cabeça

El-Rei entrou seguido da aia. A lnfanta ergueu-se e El-Rei beijou-a na testa. D. Miguel vinha vestido à paisana e com uma chibatinha na mão. Mostrava um ar satisfeito. 

Retrato de D. Miguel I, Palácio Nacional de Queluz.
Imagem: Portugal Virtual

Deu uma volta pelo quarto cantarolando, e depois sentou-se dizendo:

— Saiba V. A. que acabo de experimentar o mais soberbo cavallo que tenho visto. E não é estrangeiro, é do paiz, pura raça d'Alter. Bello bicho, bello bicho. Leve como uma penna, caminha que desapparece.

D. Miguel I (1802 - 1866), rei de Portugal (1826 - 1834),
Franz Xaver Stöber, segundo Johann Nepomuk Ender, 1826.
Imagem: Wikipédia

— Ora, senhor Rei meu irmão! Porque não anda V. M. devagar? Tomara que acabasse a moda de andarem os Reis sempre a correr. Fico muito assustada sempre que vejo partir V. M. a todo o galope.

Infanta Maria da Assunção de Portugal (1805-1834),
por Nicolas-Antoine Taunay.
Imagem: Grand Ladies

— É porque V. A. não sabe apreciar este prazer, e não gosta senão do passo de sendeiro da sua egoasinba branca. Mas vejo V. A. hoje tão risonha, fóra do seu costume. Grande novidade!

— É porque, disse a Infanta, ha oito dias que procuro fallar a V. M., e não me é possivel encontra-lo. Os politicos trazem-n'o tão occupado... Estou certa de que V. M. seria muito mais feliz, se viesse todos os dias conversar comigo aqui algum tempo, com a sua irmã que muito o estima.

— Então aqui estou. Sempre quero ver o que tem para me dizer. Ahi vae V. A., como costuma, sobrecarregar-me de pedidos para tantos desgraçados, que era preciso que a casa real tivesse as rendas do reitor Mendes para os satisfazer a todos.

— Hoje não tenho mais que um pedido a fazer-lhe, e não è de esmolas nem de pensões, é de palavras e coisa muito facil. Muito facil para V. M., dificil e impossivel para qualquer outra pessoa.

— Ah! Pensa então V. A. que eu posso muito? Os reis não podem nada, ainda mesmo os absolutos. Por exemplo, pensa V. A. que teriam morrido aquelles 18 desgraçados do 4 de infanteria se eu tivesse o poder que V. A. julga?

— Então quem è que abaixo de Deus pode mais n'esta terra do que V. M.?

— As leis, Infanta, as leis; e é necessario cumpril-as a todo o transe. Assim m'o dizem os meus ministros, os meus padres, os meus juizes, emfim toda a gente — respondeu o rei, inclinando a cabeça e cruzando as mãos sobre o peito.

— Senhor, replicou a Infanta, as leis dos homens quando mandam matar não se podem cumprir, porque são contrarias ás leis de Deus.



A.P.D.G., Sketches of Portuguese life (...).
Imagem: Internet Archive

— Vá lá dizer isso aos meus conselheiros! Gritavam logo-aqui d'el-rei! — contra mim proprio.

— Pois grite V. M. — aqui d'El-rei! — contra elles, volte-lhes as costas, e faça a sua vontade.

— V. A. não entende d'isto de governar um povo. Olhe que sempre è um grande pezo e uma grande responsabilidade. Não tenho socego. Estou ás vezes com vontade de mandar dizer a nosso irmão: "Senhor! Deixemo-nos d'estas desintelligencias e d'estes combates. Já estou farto de tantas mortes e de tanto sangue. Venha o meu irmão tomar conta d'isto, e deixe-me socegado com os meus cavallos e as minhas caçadas".

Mas que está V. A. aqui fazendo n'esto bastidor? disse D. Miguel, inclinando-se sobre o pequeno trabalho da infanta. Que bonita coisa! Um pedaço de veludo cor de rosa bordado a oiro; as armas de Portugal; cinco chagas — a religião, sete castellos — a força.

Bandeira de D. João V e nacional de Portugal de 1826 a 1830,
usada pelos miguelistas (ou absolutistas ou realistas).
Imagem: Wikipédia
— É um bonet que estou fazendo para offerecer a V. M. — disse a lnfanta.

— Obrigado, obrigado. Como ha de ficar bonito! E esta quasi prompto — disse El-Rei, continuando a examinar o trabalho.

— Pouco falta, respondeu a Infanta muito satisfeita; mas não lh'o dou se V. M. me não conceder a tal coisa muito facil de que lhe fallei.

— Pois bem, dou-lhe palavra, mas com a condição de que me hade dar o bonet— disse o rei gracejando.

— Ainda mesmo contra a vontade dos seus conselheiros?

— Seja, respondeu el-rei, continuando à ver o bordado; mas com a condição que puz.

— Palavra de rei?

— Palavra de rei, mesmo porque V. A. nunca me pediu nada que me compromettesse.

— Por esse lado não ha que receiar: longe de o comprometter, torna-me mais sua amiga, se é possivel, e receberá as bençãos de immensa gente.

— Vamos a ouvir.

A conversação foi interrompida pela voz de uma aia que disse — O sr. conde de S. Lourenço [António José de Melo Silva César e Meneses, ministro e secretário de estado da guerra do governo de D. Miguel] manda dizer a V. M. se se digna dar-lhe as suas ordens.

— É o que lhe disse ha pouco, exclamou D. Miguel, nunca me deixam.

— Mande-o entrar, disse a lnfanta!

— Vá, se V. A. assim o quer: eu aqui obedeço.

Pouco depois entrou o conde inclinando-se todo. Dirigiu-se primeiro para a Infanta, que carregou as sobrancelhas, e deu-lhe a mão a beijar, voltando-lhe quasi de todo as costas; e beijou depois a mão a El-Bei.

O conde percebeu bem os movimentos da lnfanta, fez-se muito vermelho, e ficou em pé com os olhos no chão.

— Sabe V. M. uma coisa, disse a lnfanta. Hontem foram condemnados a pena ultima mais 22 desgraçados do 4 de infanteria. Talvez V. M. ainda o ignorasse.

— De certo, disse o Rei com a voz um tanto alterada. E como acontece então que V. A. o soube primeiro?

— Peço perdão, interrompeu o conde, se V. M. o não soube ha mais tempo, é porque não teve occasião de ver os papeis d'esta pasta, que estava na sala do despacho desde hontem.

D. Miguel pegou na pasta que o conde lhe offerecia e exclamou.

— Mais sangue, sr. conde, mais sangue! Já tive occasião de lhe observar que estava aborrecido de tanta mortandade.

A.P.D.G., Sketches of Portuguese life (...).
Imagem: Internet Archive

EI-Rei dizendo isto aproximou-se da janella por entre as cortinas.A lnfanta foi para o lado d'El-Rei. Ia passando uma guarda de realistas dos Caetanos, que vinha para o paço, levando adiante da musica grande multidão de povo.

— Como são feios estes realistas! disse a Infanta. E continuou, abaixando a voz — Agora faça-me V. M. favor de despedir o Conde.


Quadros da Historia de Portugal,
Aguarela de  Alfredo Roque Gameiro.
Imagem: www.roquegameiro.org

El-Rei que estava de bom humor disse ao Conde:

— Já vou ter com v. ex.a á sala do despacho.

O conde inclinon-se e saiu. Apenas elle desappareceu, a Infanta pegou vivamente na pasta que El-Bei tinha largado, correu os papeis com a vista, e tirou um dizendo — Aqui estão os nomes dos desgraçados condemnados á morte.

Lisboa vista da Quinta da Torrinha Val Pereiro, gravura de William James Bennett sobre desenho de L. B. Parlgns.
Imagem: Museu de Lisboa

— Que faz Infanta! disse El-Rei. Era melhor que continuasse a bordar o meu bonet.

— Lembra-se V. M. do que me prometteu?

— Lembro, com tanto que V. A. se não esqueça tambem da sua promessa.

— V. M. tem o seu bonet amanhã, se salvar da morte este Luiz Franco, que está na relação dos sentenciados, e por quem eu e tanta gente lhe temos pedido.

El-Rei ticou pensativo por um momento, depois disse: 

— Concedido.

— Ah senhor! Quanto lhe agradeço! disse a Infanta com as lagrimas nos olhos abraçando El-Rei.

— Oh! Infanta, como está commovida! Venha tomar ar. Abram a janella!

Lisboa, Escola do Exercito (antigo palácio da Bemposta), ed. Martins/Martins & Silva, s/n, c. 1900.
Imagem: Delcampe

Uma aia abriu a janella. Estava-se a render a guarda do paço. A multidão que aflluia para ouvir a musica, vendo as pessoas reaes, começou a victorial-as.

— Creia V. M., disse a lnfanta, que nunca mereceu tanto aquelles vivas como agora. Se V. M. m'o permitte vou já acabar-lhe o seu bonet.

— Visto isso, disse D. Miguel rindo e afastando-se da janella, trocou V. A. um bonet por uma cabeça.

E saiu do quarto cortando o ar com a chibatinha [...] (1)


(1) António Avelino Amaro da Silva, O Caramujo, romance histórico original, Lisboa, Typographia Universal, 1863

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