J. de C.
Auto-retrato do pintor José Rodrigues aos 32 anos (detalhe). Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
A Academia Real das Bellas-Artes nenhumas obras possue d’elle; os duzentos e tantos retratos que pintou, alguns admiráveis, acham- se dispersos, em Portugal e no Brazil ; e os seus quarenta e tantos quadros de cavallete, alguns de merecimento elevadissimo, jazem escondidos em poder de particulares ciosos de tamanhas opulências.
Largo de S Raphael na freguesia de S. João da Praça (detalhe), fotografia de J. A. L. Bárcia. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
A própria reputação de José Rodrigues, tâo intensa outr’ora, esmoreceu e descorou; injustiça inconsciente, que é necessário reparar; e uma das mais efficazes e urgentes compensações cabe á Camara Municipal, zeladora nata dos interesses moraes e materiaes da Cidade: compete-lhe assignalar desde já o prédio, onde este eminente pintor viu a luz no pequenino largo de S. Rapliael, freguezia de S. Joâo da praça, e o outro onde veio a fallecer [...] ()
Rua dos Bacalhoeiros (detalhe), fotografia de J. A. L. Bárcia. A habitação do pintor José Rodrigues é o terceiro andar da segunda casa a contar da direita. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Na Academia encontramos o mocinho, como alumno voluntário no anno lectivo de 1841 para 12 com doze annos, apenas, e admittido a provas em 9 de Outubro de 1841. Dá-se aqui uma circumstancia curiosa: este alumno tinha por condiscipulo um homónymo, nada parente, José Rodrigues de Carvalho, como elle, como elle lisboeta, e como elle aspirante a pintor.
As confusões que necessariamente occorriam a cada passo, incommodavam-n-os; pelo que, requereu oíhcialmente o meu biographado licença para encurtar o nome, chamando-se apenas José Rodrigues, e deixando o Carvalho, apesar de ser já de pae e avô.
Funccionavam na Academia, aquartelada, como Deus era servido, na espelunca de S. Francisco, várias aulas nocturnas, além das diurnas. Das primeiras sei isto:
a aula de Desenho de ornato era regida pelo septuagenário André Monteiro da Cruz, pintor de paizagem e natureza morta; a de Desenho historico, pelo Professor substituto Francisco Vasques Martins; a de Geometria e Architectura civil, pelo hábil Professor substituto José da Costa Sequeira, que ainda conheci, parente proximo do grande Sequeira; a de Modelo vivo, regia-a no 1.° mez Antonio Manuel da Fonseca, Professor eminente de Pintura histórica; no 2.°, o bom Francisco de Assis Rodrigues, Professor de Fscultura ; no 3.°, Domingos José da Silva, discipulo de Bartolozzi, e tratado com consideração pelo áspero Raczynski. Era entre nós Professor de Gravura, e eximio desenhador á penna.
Geniozinhos brincando num regato (gravura em cobre), José Rodrigues. Imagem: Júlio de Castilho, José Rodrigues, pintor portuguez... |
Foram deveras aproveitados os estudos do nosso José Rodrigues, visto como no concurso de Desenho historico do anno lectivo de 42 a 48 obteve, com quatorze annos, um partido de 30S000 reis na copia de baixo-relevo, passando a alumno ordinário em 17 de Outubro de 1842.
Na Exposição de obras dos alumnos, em 22 de Dezembro de 1848, figurou o alumno premiado José Rodrigues, com. o dito baixo relevo desenhado a dois lapis em papel de cor; representava um grupo de meninos, e foi executado em imensões menores que o gesso.
GRUPO DE ARTISTAS No l.° plano sentados, da esquerda para a direita: José Rodrigues, Antonio Manuel da Fonseca, Francisco Augusto Metrass. No 2.° plano: João Christino da Silva, F..., Antonio Victor de Figueiredo Bastos. (Photographia de J. A. Bárcia). Imagem: Júlio de Castilho, José Rodrigues, pintor portuguez... cf. Arquivo Municipal de Lisboa |
Outra gloria e outro incitamento foram para José Rodrigues os condiscipulos que o acaso lhe deu:
João Pedro Monteiro, conhecido pelo "Monteirinho", que em 1843 tinha vinte annos, e cujo lapis, tratado benevolamente pelo severo Raczynski, tâo notável se tornou pela graça e firmeza de toque das suas vistas architectonicas e pittorescas de egrejas e monumentos; Metrass, o perito, o sentimental, o mallogrado Metrass, tão fino no trato, moço então de dezanove annos; o meditativo Annunciaçâo, que orçava já pelos vinte e quatro, e em quem ninguém rastrearia ainda, talvez, o paizagista e animalista que veio a ser; Joaquim Pedro de Sousa, uma esperança para a arte da Gravura, que estudou em Paris com Henriquel Dupont; Antonio José Patricio, infelicissima criatura, a cujo incontestável talento dedicou o snr. Rangel de Lima, que o conheceu, um sentido artigo biographico publicado nas Artes e Letras: e outros, emfim, que deixo de enumerar.
Por este tempo, verdade seja, desenvolvera-se o estro e o saber do nosso Rodrigues. Os applausos dos condiscipulos, os prêmios pecuniários nos concursos, e a medalha de oiro no certame triennal de 1849, tudo isso o animou, o incitou, e deu azas ao seu talento.
Essa medalha, que as mâos da Rainha, a senhora D. Maria II, lhe lançaram ao pescoço, commoveu-o de tal modo, que ao voltar a casa, depois da sessão solemne, vinha n'um estado de perturbação nervosa indefinivel.
Fechou-se no seu quarto, recusou todo o alimento, chorou, chorou, e quando tornou a apparecer aos seus vinha pallido e desfeito como um cadaver. Entre as suas tentativas primarias figura um bello desenho a dois lápis, retrato d’elle proprio aos dezanove: rosto juvenil e imberbe, olhos brilhantes de mocidade, e, como signal de acriançada extravagancia, uma especie de turbante com pluma. É óptima a execução d'esta cabeça copiada ao espelho, e bem tratada até nos últimos pormenores.
O pintor José Rodrigues, com 19 anos. Imagem: Júlio de Castilho, José Rodrigues, pintor portuguez... |
Outro retrato deixou de si o artista; é um vigoroso quadro a oleo, que parece querer lembrar algum collega seu do século xvi.°: pescoço á vela emmoldurado em collarinhos desabotoados e descabidos, capa negra, e gorro.
Auto-retrato do pintor José Rodrigues aos 20 anos. Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa |
Que difterença d’esses devaneios cheios de pujança, para a physionomia cançada e triste do bom José Rodrigues nos derradeiros annos. Não se limitou porém a retratar-se a si mesmo: são dos seus dezoito os primeiros dois retratos pintados já como technico, e por encommenda, em 1847 ; nâo os conheço; sei apenas que representavam D. Maria Rita de ... e José do Sousa, nomes que nada nos dizem hoje [...]
Na lista do proprio autor veem referidos a esse anno [1842] os do General José Frederico Pereira da Costa e de sua mulher, os de seu irmão e sua cunhada o Visconde e Viscondessa de Ovar, o do Dr. Dias de Oliveira, irmão do Conde de Podentes, e o do engraçado artista e bom companheiro de artistas, José Daniel Colaço, depois Barão de Macnamára, Cônsul geral e Ministro de Portugal em Tanger; retrato, que me dizem estar hoje em poder do snr. Francisco de Araújo e Couto.
Bastou o nome de Colaço para me lembrar o rancho alegre e bohemio de artistas, pintores, escultores, caricaturistas, e até amadores sem cotação, que se reunia por esses descuidosos annos, ora n'um café, ora n'um restaurante, ora no saudoso Passeio publico do Rocio, ora n'algurna excursão ruidosa a Queluz ou Cintra: academia de românticos exaltados (como então eram todos os rapazes), bons amigos, namorados lieis, optimos companheiros, para quem um dia bem passado entre sombras era a delicia innocente que melhor os satisfazia.
Cinco artistas em Sintra, João Cristino da Silva, 1855. Imagem: MNAC |
Todos com pouco dinheiro, mas todos com muito talento e muita pilhéria. Cada um, no fim de uma d'essas passeatas á Pimenteira ou a Algés, em cavalgadas de burrinhos, ou francamente a pé, trazia mais oxygenio nos pulmões, e mais alguns esbocetos no album.
Não frequentei o grupo: era novo de mais; nem conheci então estes bons artistas; falo por informações colhidas por 1874 no trato de Christino.
Eram elles: Metrass, fino, débil, sentimental, com seus quês de aristocráta nos usos e nas tendências; Christino, o pujante Christino, talvez a vocação artistica mais exuberante de todo o grupo (segundo pensava Prieto), mas em parte inutilisado pelo excesso mesmo das suas qualidades; Victor Bastos, um tanto altivo, com o seu perfil de antigo cavalleiro das cruzadas, e a justa confiança n’um porvir de gloria;
Cinco artistas em Sintra (detalhe: Victor Bastos, Christino e José Rodrigues), João Cristino da Silva, 1855. Imagem: MNAC |
Annunciaçâo, o Virgilio bucolico da palheta portugueza, o sentimental e vibrante animalista, o profundo devaneador; Bordallo Pinheiro pae, grande talento assassinado a retalho pela burocracia, mas companheiro precioso em sociedade, desenhador, cantor, dançarino, um enthusiasta como tenho visto poucos; Colaço, já mencionado; e além de outros, certamente muito escolhidos, o nosso bom José Rodrigues, ainda quasi alegre, ainda bom commensal, ainda apaixonado por uns olhos negros ou uns olhos azues, mas em cujo sorriso vago e saudoso despontava já o melancólico dos últimos annos.
N'estas pequeninas cohortes de artistas militantes ha sempre uns adventícios, uns curiosos de Arte, annexados ao farrancho. A indole leva-os para as lidas do desenho, mas a vida afastou-os do tirocinio. Não teem o saber; teem apenas o gosto; extasiam-se com delicias perante uma paizagem, mas náo a sabem expressar [...] (1)
(1) Júlio de Castilho, José Rodrigues, pintor portuguez..., Lisboa, Livraria Moderna, 1909
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