quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Finis terrae

A última vista da cidade será uma cortina de gaivotas enfurecidas a levantarem-se entre mim e o Tejo.

Na altura estarei, ou estou ainda, sentado num café-snack do Terreiro do Paço junto ao cais dos cacilheiros, com uma larga vidraça a separar-me do rio. Café Atinel, que nome mais estúpido. Olho as mesas vazias e pergunto-me por que razão é que um sítio assim, tão privilegiado, consegue estar desconhecido. Por mim não quero outra coisa: barcos que chegam, barcos que partem, gente de entrar e sair a servir-se ao balcão, e eu sentado em cima do Tejo.

Lisboa, Atinel (Lenita) bar, Cais dos cacilheiros, ed. Cómer
Delcampe


Tal como estou tenho a cidade pelas costas. Comércio, multidão, Europa, fica tudo para trás. Lá as pessoas andam todas a perguntar as horas umas às outras, enquanto que neste reduto para aqui esquecido sabe-se do correr do dia pelo mudar da cor do Tejo, e não me digam que não é uma felicidade estar-se assim, à mesa sobre as águas, com gaivotas a saírem-nos debaixo dos pés e a passarem-nos a dois palmos dos olhos num bailado de gritaria.

Esplanada junto da Estação Sul e Sueste (Atinel/Lenita), Artur Pastor (1922-1999), década de 1980
As Cores de Lisboa


Tempo bom, o desta solidão. tempo melhor ainda, lembram os eméritos de biblioteca num ulissiponês de fazer inveja , quando se via a olho nu o promontório da Lua por toda essa costa além. Tempo, dizem, em que nas margens da Outra Banda havia areias que escorriam ouro (Marco Terêncio fala disso) e pastagens celestes onde as éguas emprenhavam pelo vento. Tempo de poeiras luminosas e lágrimas lunares. E de pérolas. e de tritões. Tritões cantadores como aquele que consta da Descrição da Cidade de Lisboa de Damião de Góis." (1)


(1) José Cardoso Pires, Lisboa, Livro de Bordo, vozes, olhares, memorações, Lisboa, Dom Quixote, 1997

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