sexta-feira, 24 de junho de 2022

Na Cantareira com as memórias de Raul Brandão

Esta Foz de ha cincoenta annos, adormecida e doirada, a Cantareira, no alto o Monte, depois o farol e sempre ao largo o mar diaphano ou colérico, foi o quadro da minha vida. Aqui ao lado morreu a minha avó; no armário, metido na parede como um beliche, dormiu em pequeno o meu avô, que desapareceu um dia no mar com toda a tripulação do seu brigue, e nunca mais houve noticias d'elle.

Retrato de Raul Brandão e de sua esposa, D. Angelina Brandão, Columbano, 1928.
MNAC

Lembro-me da avó e da tia Iria, de saia de riscas azues, sentadas no estrado da sala da frente, e possuo ainda o volume desirmanado do Judeu que ellas liam, com o Feliz Independente do mundo e da fortuna e as Recreações philosophicas do padre Theodoro dAlmeída.

Ouço, desde que me conheço, sahir do negrume, alta noite, a voz do moço chamando os homens da companha: — O sê Manuel cá para baixo paro mar! — Vi envelhecer todos estes pescadores, o Bile, o Mandum, o Manuel Arraes, que me levou pela primeira vez, na nossa lancha, ao largo. Ha que tempos ! — e foi hontem ... A quarenta braças lança-se o ancorote.

Gaya, Grupo de pescadores, c. 1900.
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

Na noite cerrada uma luzinha á proa; do mar profundo — chape que chape — só me separa o cavername. Deito-me com os homens sob a vela estendida. Primeiro livor da manhã, e não distingo a luz do dia do pó verde do mar. Nasce da agua, mistura-se na agua com reflexos baços, a claridade salgada que palpita, o ar vivo que respiro, o oceano immenso que me envolve. — Iça! iça! — e as redes sobem pela polé, cheias de algas e de peixe, que se debate no fundo da catraia.

Voltamos. Já avisto, á vela panda, o farolim, depois Carreiros; um ponto branco, alem no areal, é o Senhor da Pedra, e a terra toda, roxa e diaphana, emerge emfim, como uma aparição, do fundo do mar.

A onda quebra. Eis a barra. Agora o leme firme!... As mulheres, de perna nua, acodem á praia para lavar as redes, e o velho piloto mór, de barba branca, sentado á porta da Pensão, fuma inalterável o seu cachimbo de barro. O azul do mar, desfeito em poalha, mistura-se ao oiro que o céo derrete.

Porto, Barco de pesca, c. 1900.
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

Mais barcos vão aparecendo, vela a vela : o Vae com Deus, a Senhora da Ajuda, o Deus te guarde, e os homens, de pé, com o barrete na mão, cantam o "bemdito", tanta foi a pesca. — Quantas dúzias? — Um cento! dois centos! — Nas linguetas de pedra salta a pescada de lista preta no lombo, a raia viscosa, o ruivo de dorso vermelho, ou, no inverno, a sardinha que os bateis carreiam do mar inexgotavel, estivando de prata todo o caes.

Ás vezes o peixe miúdo e vivo é tanto, que não bastam os almocreves com os seus burros canastreiros, as varinas com os seus gigos, nem as mulheres de saia ensacada e perna á mostra, para o levarem, apregoando-o, por essa terra dentro. Dá-se a quem o quer, faz-se o quinhão dos pobres.

Pescadores na Cantareira c. 1900.
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

Em setembro são as marés vivas. Mais tarde cresce do mar um negrume. Acastefam-se as nuvens no poente, e forma-se para o sul uma parede compacta que tem legoas de espessura. A voz é outra, clamorosa, e, á primeira lufada, bandos de gaivotas grasnam pela costa fora, anunciando o inverno que vem próximo.

O quadro muda, e os homens morrem á bocca da barra, na Pedra do Cão, agarrados aos remos, sacudidos no torvelinho da resaca, o velho arraes de pé, as duas mãos crispadas no leme, cuspindo injurias, para lhes dar animo, e todo o mulherio da Povoa, de Matosinhos, da Afurada — vento sul, camaroeiro içado — com as saias pela cabeça, salpicadas de espuma e molhadas de lagrimas: — Ai o meu rico homem! o meu filho que o não torno a ver! — E chamam por Deus, ou insultam o mar, que, inverno a inverno, lh'os leva todos para o fundo.

O que sei de bello, de grande ou de útil, aprendi-o n'esse tempo: o que sei das arvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo... Depois não aprendi coisa que valha. Confusão, balbúrdia e mais nada. Vacuidade e mais nada. Figuras equivocas, ou, com raras excepções, sentimentos baços. Amargor e mais nada. Nunca mais. Nunca Londres ou a floresta americana me incutiram mistério que valesse o dos quatro palmos do meu quintal. Nunca caça ás feras no canavial indiano foi mais fértil em emoção e aventura, que a armadilha aos pássaros na poça do Monte, com o Manuel Barbeiro.

Porto, Foz do Douro, Pescador concertando redes de pesca, c. 1900.
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

Uma nora, dois choupos, a agua empapada, e, entre as hervas gordas como bichos, pegadas de bois cheias de tinta azul, reflectindo o céo implacável de agosto. Os pássaros com as azas abertas desconfiam e hesitam: a sede aperta-os, o sol escalda-os. Mal pousam na armadilha agarramol-os com ferocidade. Chiu!. . . Uma andorinha descreve lá no alto um circulo perfeito, e vem, no vôo desferido, arripiar com o bico a agua estagnada. Toca n'uma palheira de visco — é nossa! Já tiveste nas mãos uma andorinha? E pennas e vida phrenetica. E essa vida pertence-te!. . . Só ao fim da tarde regressava a casa com os bolsos cheios de rans e os olhos deslumbrados.

Nenhuma figura torva, nem o Anti-Christo, me communicou terror semelhante ao do inofensivo Manco da esquina, que escondia de manhã a barba que lhe chegava ao umbigo, entre o peito e a camisa, para a sacar de noite, quando sahia á estrada... Sou capaz de te dizer qual o tom verde de certos dias, quando o pecegueiro bravo encostado ao muro floresce. O murmúrio da minha bica não me sae dos ouvidos até á hora da morte.

Bateira da Afurada.
Arquivo Municipal do Porto

Quasi todos os meus amigos — o Nel, que não tornei a ver... — são d'essa epocha. D'outras impressões mais tardias não restarão vestigios, mas tenho sempre presentes os mesmos pinheiros mansos — que já não existem — acenando para a barra, e alta noite acordo ouvindo o rebramir do mar longinquo.

Nos dias de desgraça é sempre a mesma voz que chama por mim... Olha, olha ainda e extasia-te: o rio parece um lago, e um bando de gaivotas desfolhadas alastra sobre a tinta azul, com laivos esquecidos do poente. Bóia espuma na agua viva que a maré traz da barra... E não ha cheiro a flores que se compare a este cheiro do mar.  (1)

Cantareira, Foz do Douro — 1918 (1)


(1) Raul Brandão, Um coração e uma vontade: memórias, Coimbra, Atlântida, 1959

Leitura relacionada:
Raul Brandão, Os Pescadores, Paris, Ailland, 1923, 326 págs, 127,7 MB

Mais informação:
Raul Brandão: Um percurso
Evocação de Raul Brandão (Vitorino Nemésio recorda a figura de Raul Brandão)
Inauguração do monumento a Raul Brandão
Porto, de Agostinho Rebelo da Costa aos nossos dias

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