sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

Petiscos de Lisboa por Eduardo Fernandes, o Esculápio (2 de 3)

[Tabenas de galegos]

Dos "armazéns das iscas" passarei às "tabernas dos galegos", também muito populares em tempos idos e instituídas na cidade pelos cidadãos de Tuy que nela enxameavam, uns abrindo e servindo êsses estabelecimentos, donde passavam mais tarde para as casas de pasto e cafés, e outros carregando com as nossas mobílias, enchendo barris de água nos chafarizes para no-la venderem a vintem cada barril, ou encarregando-se dos recados e da transmissão de missivas amorosas.

Eduardo Fernandes (1870-1945) Esculápio.

Os galegos, com a criação da Companhia das Águas, a aparição da viação acelerada e a intromissão do telefone, deixaram de ter que fazer na cidade e já se não reunem, senão raramente, em grupos pelas esquinas, com as cordas ao ombro, a chapa de aguadeiro e a blusa de condutor da bomba de incêndios.

É uma fauna que quási desapareceu, sendo hoje substituída por homens dos termos de Goes e Arganil, e, se a imigração da Galiza para Lisboa ainda não teve o seu termo, é porque os galegos que já cá estavam e os que chegam vão povoar as casas de comidas e bebidas e os cafés onde tão necessários são ainda os seus valiosos serviços e as suas raras qualidades de gente trabalhadora.

As principais "casas de galegos" dos antigos tempos de Lisboa eram situadas no Bemformoso, na Bica, no Bairro Alto, em Alfama e em Alcântara, onde os moços de fretes e aguadeiros também viviam em colónias ou colmeias, nas suas características "casas de malta", com o seu "capataz", que era em geral quem superintendia nos serviços dos chafarizes, onde os barris faziam bicha e, nas sucessivas faltas de água, governava nos patrícios como ditador.

Tôdas essas "casas de comidas dos galegos" tinham a um canto duas ou três padiolas em que os freguezes faziam as mudanças, acompanhadas de uns trofeus constituidos pelo pau, a corda e o chinguiço que lhes serviam para acomodarem e transportarem o frete nos ombros calejados.

Os freguezes chegavam com os seus barris que lhes serviam de banco, e acomodavam-se junto do balcão onde faziam as suas refeições: carapaus fritos, fressura de porco, petiscos baratos e, por cima ou no fim do repasto, a indispensável "cunca" de caldo, uma tigela com uma caldoça negra, onde despejavam o que lhes restava de vinho no copo, saboreando, então, aquela berundanga com suspiros de íntima satisfação.

Havia menino que, regulando bem os seus "menus" e porque a "cunca" de caldo era de borla, gastava por dia um pataco, ficando-lhe o que fizera nos fretes, nos recados, na venda da água e no trabalho do rescaldo dos incêndios para acumular e comprar "fincas" na terra, onde tinha a mãi dos filhos entregue ao abade.

A antiga Carreirinha do Socorro, como então se chamava ao comêço da rua dos Cavaleiros, onde fica a porta da caixa do teatro Apolo e onde foi fundado o antigo Ginásio Clube, era povoada por essas tascas sórdidas e sombrias, de que era exemplo o "Campainhas", na mesma Carreirinha, esquina do Bemformoso, com as suas campainhas armadas em carrilhão quando se abria a porta, hoje transformado em casa de pasto, loja e l.º andar, tascas que se estendiam depois pelo Bemformoso até ao Intendente e derivavam para o sítio da Mouraria, galgando a seguir outros sítios da capital.

Assim, teve origem a famosa casa do "João do Grão", em frente de demolida praça de toiros do Campo de Santana, casa tão conhecida dos aficionados de então, que a frequentavam à compita com os galegos para saborearem as suas famosas "meias desfeitas", ou seja uma posta de bom bacalhau sueco ou inglês, mlstμrada com uma ração de grão de bico espanhol, muito bem cozido, uma mistura de cebola e salsa picada, sal, pimenta, o fio de azeite e a rega de vinagre que já descrevemos quando tratámos do môlho da conserva das iscas.

Não se calcula o apetitoso sabor dêste petisco e de lamentar é que muitos dos que me escutam não o tivessem provado "in loco", sôbre a mesa ou balcão de pinho da locanda, com o antigo garfo de ferro de três dentes e cabo sem madeira.

É caso para dizer com o meu colega Camões ao descrever os encantos da Ilha dos Amores:

Melhor é experimentá-lo que julgá-lo,
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.

O "João do Grão", demolida a praça de toiros, deixou o seu local junto do edifício onde hoje está o Instituto Câmara Pestana e passou-se para a Mouraria, donde mais tarde veiu para a travessa da Palha, a fazer concorrência ao "Gargamalo", outra casa do seu género, e ainda a outras que pela cidade houve e tendem a desaparecer.

Uma delas foi o conhecido "Café dos Anarquistas", em frente da fachada principal do teatro da Trindade, voltando de S. Roque, ou da Misericórdia, como agora chamam à rua, casa bem conhecida dos jornalistas e literatos que viviam a boémia do espírito à roda dos anos em que se proclamou a República.

As "casas dos galegos" eram, em geral, pertença de dois patrícios que se revezavam na sua manutenção, seis meses um e seis meses outro, indo cada semestre um dos sócios para a terra, a tratar dos haveres dos dois, que precisavam de cultura e orientação.

Ambos êles trabalhavam como moiros e se correspondiam nas suas mútuas obrigações, obedecendo regularmente ao "roulement" que se tinham imposto.

Eram coadjuvados por cosinheiros e moços também galegos, gente sóbria e sem apetites, que se sujeitava a uma vida de bicho de cosinha, sem apuros de "toilette", vivendo exclusivamente para a locanda e não se poupando a satisfazer as exigências dos fregueses.

Com as "meias desfeitas", que custavam nêsse tempo uns três vintens, cóm o seu caldo no fim, caldo servido na clássica tigela, a que se chamava uma "rolinha", com mais ou menos "entulho", que assim se denominava o resíduo de couves, nabos e grão com que o caldo era adubado, serviam também o "meio temperado", ou seja a "desfeita" sem bacalhau, e muitos outros saborosos e originais petiscos.

Na cantilena do criado de mesa figuravam o chispe com ervas, que fazia um jantar delicioso, seu chouriço de sangue à mistura; a cabeça de porco e a orelheira, com o mesmo acompanhamento; a carne cosida à galega, com chouriço, presunto, toucinho, arroz e grão; a mão de vaca, ou "meia unha"; e os carapaus fritos, muito bem fritos, a dez réis e a vintém cada um, com a sua competente salada de alface, agriões e vários cheiros.

Claro que o aspecto da casa onde se comia, a indumentária dos galegos, o interior do balcão com as suas grandes pipas, o recheio da cosinha, e, sobretudo, o amanho do páteo, quando os saguões da Baixa tiveram fama de mal apresentados, para não descermos a minucias, não eram muito agradáveis à vista, mas o paladar suportava-os porque ofereciam prazeres que custavam pouco dinheiro e, em vez de repugnarem, eram vivamente apetecidos.

Em uma dessas casas da travessa da Palha se instituiu, por iniciativa do Leonardo, actor brasileiro que esteve algum tempo entre nós, um "Club dos Combatentes", que se reunia para estrondosas ceias numa espécie de gabinete da baiúca. Faziam parte do grupo os actores Inácio, Álvaro Cabral, Alfredo Carvalho e Henrique Alves, Vários jornalistas e escritores há muito falecidos, a quem aqui rendo o preito saudoso da minha homenagem ao seu belo espírito de camaradas e de boémios.

[Casas de Pasto]

As "casas de pasto", também geridas por galegos, mas bastante mais aceadas, e apropriadas à compostura da capital, eram em grande número e aqui citarei: o "Vigia", da Avenida, perto da rua das Pretas, sucessora de outras que, como ela, desapareceram, filhas de uma célebre locanda onde pontificava "Diogo Alves", o temeroso facínora; a "Estrela de Oiro", da rua da Prata, que acabou há pouco e meteu obras não sei para quê, depois da morte do seu proprietário, o velho Agapito Serra Fernandes, galego de Mondariz, que, muito rico e muito trabalhador, construiu, à Graça, um bairro com o nome do estabelecimento e deixou boa fama de empreendedor e inteligente; a "Flôr de S. Roque" gerida por um galego gordo e anafado, sempre de boné ao lado, com um cosinheiro de suissas, côxo, muito popular no Bairro Alto, casa a que sucedeu o actual "Restaurant Roma"; o "Restaurant Paris", instalado em S. Pedro de Alcântara, esquina da Travessa da Cara, por muito tempo propriedade de um irmão do galego referido, casa onde se deram banquetes de republicanos presididos por França Borges e gente do "Mundo", e que está hoje transformado numa casa de mariscos, depois de ter sido uma "pensão"; os "Irmãos Unidos", que ainda lá estão no Rossio, com as cosinhas para a rua da Praça da Figueira, antiga propriedade dos irmãos Guisados, oriundos de uns galegos, também irmãos, que se associaram na exploração da casa; o "Tábuas"; o "Fórma" ou o "Estrela de Prata" e o "Novo Dia", nas imediações de S. Domingos; o "Valmôr", nas avenidas novas, grande centro de reunião de boémios e fadistas; a "Taberna Inglesa", com os seus célebres bifes, o "Geraldes", o "Campo Grande", o "Restaurant do Corpo Santo" e outros a S. Paulo e no Caes do Sodré; o "Friagem" na travessa da Palha; o "Barracão" ou o "Fortes", à Trindade, perto do Ginásio, hoje substituído por um "bar"; o "Alfaia" na travessa da Queimada, esquina da rua do Diário de Noticias, e o "Primeiro de Maio" na rua da Atalaia; o "Meia Noite" na travessa da Agua de Flor; o "Tacão" na travessa seguinte, onde em ceias bem regadas e famosas se reuniam o Telmo, o Cardoso, o Marcelino Franco e muitos outros actores, jornalistas e artistas; o "Bessa" da rua dos Douradores, propriedade de um minhoto, nascido na raia galega, cujo filho mais velho é hoje mordomo de um Hotel nas águas de Melgaço; o "Pessoa" da travessa de Santa Justa, onde davam, com o nome de "meia económica", um pratinho com uma pequena laranja ou uma maçãsita, nozes, amendoas e figos, meia económica que esqueceu e é hoje substituída com a mesma gíria por um prato de sopa menos avantajado; a "Argentina" na rua do Príncipe, hoje do Primeiro de Dezembro; a "Cova Funda" na rua das Pretas e a "Adega da Figueira", à Praça da Alegria; o "Alvarinho" em S. João da Praça; o "Cartaxeiro" da rua dos Douradores, com o seu "chispe migado"; as "Velhas" na rua da Conceição da Glória, onde a cosinha era manipulada por mulheres da província, que támbém serviam às mesas, casa hoje gerida por uma francesa e pelo seu companheiro, o lutador Manuel Gonçalves; o "João das Velhas", na mesma rua, casa fundada por um antigo criado das Velhas, hoje criado do Café Gêlo; a "Floresta", ainda hoje no largo de D. João da Câmara, junto ao Teatro; o "Quebra Bilhas", o "Colete Encarnado", a "Casa do António Rosa" e o "Restaurant do Campo Grande", êste sucessor da tão frequentada "Nova Cintra", à Calçada de Carriche, todos no actual Campo 28 de Maio e célebres pelos tempos das esperas de toiros, como o "Zé Azeiteiro", cerca da Praça do Campo Pequeno, vindo do páteo do Buraco, onde era freguês assiduo o velho cavaleiro Mourisca, propriedade de um toureiro que, com aquele apodo, muito brilhou na Praça do Campo de Santana e nas da província; a "Chouriça" no Campo de Santa Clara, que reunia os frequentadores e vendilhões da feira da Ladra ; o "Restaurant dos Caminhos de Ferro", a Santa Apolónia; o "Caçador", em Belém; o "Sete e Sete", em Alcântara, grande casarão onde serviam belos jantares, muito conhecido nos tempos da feira que perto se realizava; as "Casas das Geleas", onde serviam magnificas empadas à moda do Alentejo, e ostras com recheio, uma a S. Pedro de Alcântara e outra na rua do Loreto, em frente dos Verissimos, ao Camões; o "Fortes", na rua de S. Bento, na embocadura que leva ao Conde Barão; o "Paco", na rua das Gáveas, sucessor de outro do mesmo nome na rua da Rosa; a "Adega da Figueira", de que já falei, sucessora da "Padeira" da Praça da Alegria ; o "Peixe Assado", a S. Roque, rival de outro "Peixe Assado" da travessa da Palha, onde se comiam as "canôas", postas de pargo ou de pescada com o seu rico môlho e batatinhas, servidas em uns covilhetes de barro que iam ao fôrno e davam nome ao petisco; o "Mealhada", a S. Roque, perto do Largo, propriedade de Cândido Maneiro Bal, galego de nomeada que, por muito tempo dirigiu a fabricação dos pastéis de bacalhau no "Quintão", casa de vinhos de que nos ocuparemos, galego que abriu a casa com um tosco balcão e umas derrancadas mesas de pinho, vendendo aos fregueses sardinhas assadas e um vinho da Mealhada, de rachar pedras, que deu nome ao estabelecimento; o "Santareno", em frente do Teatro do Ginásio, na rua da Trindade, casa ornada de muitas pipas onde se reuniam actores e jornalistas e onde está hoje a perfumaria Robert, vinda da loja que ficava duas portas mais acima; o "Marinho", na mesma rua, esquina da travessa, onde está hoje uma casa de penhores; o "Magina", de que já falámos.

http://arquivomunicipal2.cm-lisboa.pt/xarqdigitalizacaocontent/PaginaDocumento.aspx?DocumentoID=255820&AplicacaoID=1&Pagina=1&Linha=1&Coluna=1

Outras casas mais somenos se abriam em outros pontos da cidade, como, na travessa da Espera, o "Farta-Brutos", baiúca instalada em uma loja para a qual se descia por dois degraus, e administrada por um galego hercúleo, antigo cosinheiro de bordo, casado com uma mulher muito franzina que servia às mesas.

— Chamam-me o "Farta Brutos", dizia o galego, para me chamarem bruto, quando, afinal, os brutos são êles... 

A casa era muito bem freqüentada por gente de jornais e de teatros. Entre os fregueses, figurava o Reinaldo, chefe da claque do teatro da Trindade e bombeiro voluntário, de quem o cenógrafo José de Almeida, com a sua mania de falar em verso, dizia:

Há um bombeiro chamado Reinaldo, 
Só chega ao fogo depois do rescaldo. 

Certa noite, estava o "Farta Brutos", que tinha o apelido de Fortes e já morreu, a dormitar, encostado ao balcão, com as mangas arregaçadas, quando entrou na locanda o Biscaia, boemio do tempo, companheiro do Reinaldo, que andava quási sempre com o seu grão na aza. Vendo-o em tal posição, começou a cofiar·lhe uma das mãos e a cantar, como na "Viúva Alegre":

Tua mão está fria...

O galego acordou, pôs-se em pé e gritou:

— Pudera! Não havia de estar fria! Eu estive "alá" dentro a "labá los" copos!

Continuando na série das casas onde se petiscava, citar·lhes-ei o "Magrinho", da rua do Telhal, célebre cosinheiro de Coimbra, muito apreciado ali pelos académicos, em cuja casa de Lisboa pontificavam a Bárbara, mulher de armas, de rara formosura e largo cadastro de desordeira, e a Júlia Florista, cantadeira de fados, que precedeu as actuais, irmã da actriz Maria de Oliveira, que foi também florista e corista do Trindade e morreu no Brasil; a "Culinária do Faustino", empresa de jantares que esteve largos anos na loja onde hoje está o "Paladium", tendo morrido há pouco tempo o Faustino, que era um cosinheiro de mão cheia; a casa do "Reinata", na rua Jardim do Regedor, sendo o "Reinata" um velho cosinheiro das feiras, rival do "Pincha", do "Carapetino", do "Machadinho" e da "Maria Botas", que confeccionava belas petisqueiras; (1)

a casa do "António das Caldeiradas", ou "António da Barbuda," em Belém, sob os arcos do prédio onde se figuravam as aldeias, na Exposição, e onde o antigo marítimo, com as suas enormes suissas negras, armado de uma colher de pau e de um tacho de cabeça, confecclonava as mais exquisitas "caldeiradas" ou "bouilhabaisses" rivais das de Marselha, que tanto deliciaram o célebre tenor Gaiarre e outros cantores de S. Carlos, ali levados pelo Rafael Bordalo, por Júlio Cesar Machado e outros artistas e escritores do tempo; a casa das "Marianas", à Escola do Exército, onde, no intervalo das aulas, ia munir-se do almôço o Paulino, um preto que era alferes aluno e foi demitido do exército pela sua vida desregrada, acabando em escrevente do tabelião Cornélio, com cartório no Rossio, junto à "loja do Povo"; a casa de uma velha, na rua da Inveja, onde os alunos da mesma escola ceiavam, por três vintens, um quarto de pão, dois pasteis de bacalhau e dois decilitros, menu que era aumentado ao domingo e custava um tostão. Esta Velha tinha um filho, que os estudantes tomaram à sua conta, porporçionando-lhe os meios e dando-lhe lições e explicações para fazer o curso dos liceus, depois do que se formou em direito.

Outras casas, que a série é interminável : e "tia Iria", a Campo de Ourique, na antiga rua de S. Lulz, onde se jantava admlràvelmente e sempre em boa companhia de artistas e literatos; a "casa dos bifes à cortador", um talho na rua das Pretas onde, por quatro vintens, forneciam um bife que se não podia tratar por tu; o "Zé Gordo", de S. Sebastião da Pedreira; o "Constante" e o "Baldanza", casas de galegos nas imediações do govêrno civil, onde eram de apetite, como nas casas congéneres, a dobrada com Vidrilhos, a fressura de porco, a "meia unha", já citada, e os pivetes, feitos das últimas vertebras do rabo do boi, de que se faz também a preciosa sopa; as lulas e os chocos, grelhados ou de caldeirada, sem o negro que os faz confeccionar à espanhola com o nome de "calamares en su tinta"; um restaurante boémio ornamentado por vários artistas que o filho do Faustino teve por uns meses num terceiro andar da rua Serpa Pinto ; o "Club dos Excentricos", casa que, na actual rua da Misericórdia, ocupada o prédio onde esteve a redacção do Mundo e hoje está a do Diário da Manhã, gerida pelo Simplicio, dos carros da carreira de Mafra, e pelo antigo "repórter" e chefe da polícia secreta Albino Sarmento, casa que fez época, com a sua enorme concorrência de boémios e boémias e com as suas ceias até altas horas, tendo sido o primeiro cabaret que se fundou em Lisboa; o "carpinteiro da travessa do Forno", onde se comiam as belas sardinhas assadas, muito frequentado por Fialho de Almeida, D. João da Câmara, o "Pinlurinhas" e outros.

— Quem é aqui o senhor D. João da Câmara? Preguntou de uma vez certo policia ao grupo citado, ao autoar um dêles por uma trangressão e ao dizer-lhe outro que não procedesse, porque estava ali o senhor D. João da Câmara e poderia ser·lhe bom.

— Somos nós todos! Respondeu o "Pinturinhas", que fôra o transgressor. E o caso acabou à gargalhada.

A propósito, contarei que êste "Pinlarinhas", o saudoso Figueiredo, tinha muita graça, referindo-se dêle entre outras, uma anecdota que não me canso de citar.

O "Pinturinhas", quando os seus fatos estavam coçados, mandava-os virar, como todos os pelintras, mas, quando, depois de virados, ainda mais coçados estavam, mandava-os voltar à primeira forma. De uma vez, apareceu no alfaiate com um sobretudo que já tinha ido duas vezes à "Outra Banda", pelo que o "sastre" depois de o examinar, exclamou:

—  Ó senhor Figueiredo, olhe que isto já foi virado duas vezes e eu, agora, não posso... — É que eu Vinha cá, ó mestre, interrompeu o Pinturinhas, a ver se você m'o punha assim... — (as duas mãos num só plano, palma contra costas, enfiando o olhar).

Continuando na enumeração das casas de comidas: temos ainda a "Adega do Maleiro", à Calçada do Sacramento, que ainda hoje existe, e a "Adega do Estucador", na Calçada do Combro, junto ao Quartel dos Paulistas, em frente à travessa da Condessa do Rio; o "Quintalinho" à Cruz do Tabuado; a "Flor da Praça", em frente ao mercado da Praça da Figueira, antiga taberna de peixe frito, que em tempos emparelhava com as das ruas dos Canos, frequentadas por mulheres do bairro e "rufias"; o "Campainhas", à Rua Fernandes da Fonseca, de que já falei; a "Casa de Pasto do Intendente"; a "Adega do Ribatejo", também denominada "Caldo Verde", que atravessa do beco do Fôrno para a rua do Jardim do Regedor; a "Provinciana", no mesmo beco, sucessora do "Carpinteiro"; o "Bomjardim", na travessa de Santo Antão, onde fazem agora as refeições a cinco escudos e vendem os "miomas", as "bifanas", ou "bifes entalados", os passarinhos fritos e outras gulodices; a "Casa do João Borges", no Parque Mayer, pertença do antigo avançado que se celebrisou na propaganda da República; o "Restaurant Internacional", a "casa Cadete" e a "Adega do Barbaças", na travessa da Palha; outro "Restaurant Internacional" e o "Café Central", ao fundo da Calçada do Carmo ; os "Cesteiros", na travessa da Palha, no largo do Regedor e em frente da praça, onde vendem petisquinhos para "fazer boca" ao vinho verde e maduro, por entre armações de cestos de vindima e pipas; o "Marinho", antiga casa de comidas na travessa da Palha; a "Adega dos Periquitos", ao Desterro; o "Vilarinho"; o "Gambrinus" e a "Casa dos Capilés", na rua Eugénio dos Santos; a "Cabeça de Toiro", na rua da Palma, hoje na rua dos Douradores, com uma cabeça negra de cornupeto ao fundo, embalsamado; o "Ano Novo"; a "Estrela" e a "Central da Mouraria" à Mouraria; a "Casa Farinha" e a "Primavera" do Bemformoso, onde, como em geral nas casas mais populares e barateiras, vendem "metades de meias doses", a preços convenientes para os comensais que vão sósinhos, comendo na última muitos refugiados estrangeiros; a "Adega dos Presuntos", no beco da Barbaleda, onde se fizeram grandes patuscadas com gente de teatro, em uma das quais até o falecido escritor Baptista Diniz, revestido de hábitos talares, prégou um sermão que ficou memorável; a "casa de pasto da Rua da Palma", em frente do Apolo, onde hoje está um depósito de tabacos; a "Flôr do Socorro"; o grande "restaurant" e casas de comidas da Estefânia; as casas de pasto dos sítios de Sapadores e do Castelo; o "azeiteiro da travessa da Queimada", esquina da rua da Atalaia, onde esteve a redacção do "Diário", o "Gibraltar", no Caes do Sodré; a "Adega dos Antónios", na rua dos Douradores, onde, ainda há pouco, um tipo entrou, comeu e não pagou pela razão de se chamar António; a "Nossa Terra"; a "Cervejaria Paris"; a "Colombo"; a "Estrêla"; o "Café Peninsular"; o "Café Amazonas"; a "Adega do Dão" e a "Adega Progresso", no Arco Bandeira; "A Rosa de Maio", ao Pote das Almas, em frente à Boa Hora, onde vão almoçar os advogados; A "Flor da Primavera" e o "Restaurant União" na rua do Crucifixo; o "Morgado dos Leitões" em frente ao Grandela; a "Casa de pasto O Galo", que havia a S. Julião; a "empresa de jantares do Franco", que esteve uns anos na rua Ivens onde eu gastei em jantares. que custavam cinco tostões, os primeiros 15.000 reis que ganhei; a "Favorita" e o "Freddys", restaurante Vienense, com petiscos feitos por um hungaro, o Violinista Trincher, no Parque Mayer, além de outras casas mais somenos; a "Tijuca", na travessa da Glória; a "Cervejaria Alemã", na rua do Alecrim, sucessora do "Chat-Noir", casa francesa onde se fizeram grandes pândegas com mulheres; o "Jansen", cervejaria entre as ruas do Alecrim e Paivla de Andrade. junto à conhecida fábrica de cerveja, onde faziam uns primoros;os bifes e instalaram depois o "Refiro da Severa", rival do "Solar da Alegria" e do "Café Luso", tão conhecidos dos cantadores e amadores do fado; a "Tia Leonarda", antiga casa de petiscos da velha rua do Carvalho, hoje de Luz Soriano, esquina da travessa das Mercês, casa instituída por uma provinciana de boas formas e simpático aspecto que atraiu à locanda escolhida freguesia de artistas e literatos e onde o caricaturista Bordalo Pinheiro, com vários redactores do Século e de outros jornais, tiveram noites inolvidáveis; o "Restaurant Familiar", ou dos "Rapazes", que são hoje uns velhos, "casa de galegos" da rua da Trindade, fundada pelos dois criados do "Café dos Anarquistas", que ainda hoje vende petiscos em conta e trata bem a freguesia, instalado nos abandonados claustros do convento da Trindade; a sucursal da "Palmeira", conhecida casa de comidas do Põrto, que se instalou. com os seus vinhos verdes e petiscos portuenses, na rua do Crucifixo.

Tôdas estas casas fôram sucedâneas do "Mal Cosinhado", de antigos séculos, e do "Talaveiras", do século XVIII, velhos "chanfaneiros" de Lisboa, quando se chamava "chanfana" à fressura de porco, e Bocage dizia num soneto:

Se eu pudesse ir de tralha, ir à surdina
Por aí! Forte sêde e forte gana
De zurrapa, de atum, de ti, chanfana,
De ti que dos pingões és gulosina!

Que tempo em que eu, com súcia, ou grossa ou fina,
Para a tia Anastácla, a tal cigana,
Ia e vinha depois co'a trabuzana
A remos, no mar rôxo, ou à bolina!

Henri L'Évêque, Vista do Convento de Sto Jerónimo de Belém e da Barra de Lisboa.
ComJeitoeArte


"Ir de tralha", explica Bocage numa nota, é andar de capote em dialecto marujal. A Anastácia, cigana, segundo uma outra nota do mesmo, era uma semi-taberneira da rua dos Algibebes, afável nos negócios, a quem o poeta invejava as postas de pescada, mais do que o carácter e a graduação.

Vieram depois casas de pasto já desaparecidas: o "Penim", que teve larga fama; o "José "Romão"; o "José das Aranhas", ao Cais do Tojo; o "Pinto Cambalhota"; a "Pomba de Oiro" e o "José Manuel", à Horta Sêca; a "Tia Rosa", que eu já não conheci, bem como o "Ferreira", da mesma Horta Sêca, onde faziam deliciosamente cabeça com feijão.

[Restaurants e Cafés]

Contrapondo às casas que citei, teve e tem Lisboa, além de "cabarets" várlos que todos conhecem, e levaria multo tempo ainda a citar, famosos restaurantes e cafés, como o "Suisso", o "Leão de Oiro", o "Martinho da Neve", ou o "Martinho da Arcada", no Terreiro do Paço, e o "Martinho do Largo de D. João da Câmara", o "Aurea", o "Café Chiado", as duas "Brasileiras", do Rossio e do Chiado, o "Nicola" e o "Chave de Oiro"; os cafés "Portugal", "Madrid", "Aviz", "Primeiro de Dezembro"; o "Negresco", o "Palladium", a "Abadia", a "Chic", o "Ledo Triste", o "Marrare" e o "Montanha", onde faziam belos bifes afogados em leite; o "Salão de Chá", na rua do Ouro, num primeiro andar à esquina de Santa Justa; A "Central", "restaurant chic" da mesma rua, sucessora da confeitaria "Fernandes"; o "Restaurant Rosa Araujo", sucessor da grande confeitaria da rua de S. Nicolau, do grande e obeso presidente da Câmara, que iniciou as obras da Avenida; a "Padaria Inglesa", ao Conde Barão e depois a S. Julião, onde se vende pelo Natal o "Plum Puding"; o "Restaurant Portugal" e outro" Café Madrid", na rua Paiva de Andrade, que já acabou; o "Benard", no Chiado; o "Ferrari", na rua do Almada; o "Baltresqui", na rua de El·Rel; a "Charcuterie" da rua Nova do Carmo e outras onde vendem as "galantines", os "boadins", a "lange à l'écarlate" e outros plteus de origem francesa; várias casas alemãs, onde vendem , como na da rua do Oiro, enchidos e especialidades germanlcas; o antigo "Restaurant do Augusto", na antiga travessa do Secretário da Guerra, frente ao Ginásio onde pontificava a Maria Juliana, celebrada boémia; o "Restaurant Silva", num primeiro andar da rua Serpa Pinto, perto do Casino onde se fizeram as célebres conferências, que há pouco desapareceu; o "Café da Trindade", nos baixos do teatro, onde está a Companhia dos Telefones, notável pelas ceias, que se davam por ocasião dos bailes de máscaras, onde tanto nome deixaram a Conceição Fadista, a Jacinta, cantadeira de fado, que morreu em Coimbra; o "Melo da Gaitinha" ou o "Melo da má língua", oficial superior reformado do Ministério da Instrução, hoje de provecta idade e socegado, mas, nos seus tempos, de se lhe tirar o chapeu; o "Augusto Pouca Roupa", bombeiro voluntário que vivia com uma francesa que morava em frente do Ginásio, por cima do "Santareno", mestre sala dos bailes e famoso pauliteiro, rival nas silabadas e asnelras do cavaleiro tauromáquico José Bento de Araújo; os valsistas John, velho corista da Trindade, que morreu há pouco; o "Britinho", hoje retirado, e o "Augusto Cordeiro", informador de jornais e pai da actrlz Georgina Cordeiro; o "Sena", actor e empregado da Biblioteca Nacional, velho valsista; além da Berrlnche, da Milagros, da Catalina, da Encarnacion e de outras espanholas da vida airada, que deram que falar.

A Brazileira, publicidade na revista Tiro e Sport, 25 de fevereiro de 1906.
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Citarei ainda o "Tavares Rico" e o "Tavares Pobre", do simpático Manuel Caldeira, desaparecidos e leiloados há pouco, cuja história está já feita por "Tinop" [v. Lisboa d'outros tempos Vol. II]; o "Aquário" e a "Clementina", ao Jardim do Regedor; a "Pastelaria Marques", no Chiado; o "Rendez-voas des Gourmets", que esteve na rua do Oiro; a "Garrett", no largo das Duas Igrejas, onde hoje está uma sucursal do "Notícias", e o "Imperial", que esteve na rua do Príncipe.

A propósito do "Tavares Rico", quero-lhes citar um caso. Há muitos anos, o rei D. Carlos foi de visita a Évora com numerosa comitiva da qual eu fazia parte como "repórter" do "Século". Fômo-nos hospedar para a vivenda do milionário Baraona, onde ofereceram ao rei uma caçada, durante a qual foram abatidos uns vinte veados que o monarca generosamente ofereceu à comitiva.

Coube-me um dos bichos e calculem o meu desapontamento quando, chegado a Lisboa, fui intimado a retirá-lo do vapor. Se chamasse uma carroça e o levasse para casa, a familia exautorava-me, pelo que decidi ir ter ao "Tavares Rico" com o Manuel Caldeira.

Em resumo: almocei e jantei, durante uma semana, à barba longa, no "Tavares" e a carne de veado foi, durante oito dias, um "petisco de Lisboa".

E agora, não lhes cito mais casos, remetendo os mais curiosos dêste meu auditório para os livros do saudoso "Tinop" [v. Lisboa d'outros tempos, Vol. II], que tão bem fez a história dos cafés de Lisboa, dêsde o "Café do Grego", do Caes do Sodré, a que sucederam o "Londres", o "Royal", o "Briths Bar" e outros, até ao "Botequim das Parras", dos tempos de Bocage, ao "Botequim do Gonzaga", no Rossio, onde está o "Gêlo", e ao "Botequim do Marcos Filipe", ao Pelourinho, citados por Luiz Augusto Palmeirim, e para o recente livro Volúpia, do talentoso publicista e meu presado amigo Albino Forjaz de Sampaio, que se ocupa do assunto. (2)


(1)  Olisipo n.° 16, outubro de 1941
(2)  Olisipo n.° 17, janeiro de 1942

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Chanfana (1 de 2)
Chanfana (2 de 2)

Leitura relacionada:
Alberto Pimentel, O lobo da Mandragôa, romance original illustrado... 1904
As Iscas com Elas ou Iscas à Portuguesa...
No tempo dos francezes
Lisboa d'outros tempos Vol. II
Historia do fado
A triste canção do sul
Lisboa na rua
Lisboa Illustrada
etc.