sábado, 11 de janeiro de 2020

O pintor Joaquim Marques (1755-1822)

Nasceo em Lisboa pelo tempo do terremoto: depois dos primeiros estudos nas Aulas, applicou-se á Pintura na Fabrica das caixas, ramo de que era director José Francisco del Cusco. 

Paisagem com animais e figuras, Joaquim Marques.
Veritas Art Auctioneers

Depois de passar os 5 annos de aprendizagem, continuou mais dez, até o de 1784, a empregar-se alli mesmo como ajudante para pintar seges, bandejas, &c. 

Paisaje bucólico con familia de pastores descansando cerca de un río con puente, atribuido a Joaquim Marques.
Abalarte Subastas


Por aqueles tempos achava-se Pillement em Lisboa, e era seu visinho; fez amizade com elle, e entrou no empenho de o imitar nas paisagens, e naquelles agradáveis caprichos, a que elle chamava a sua botânica imaginaria, porque se compunhão de flores, e plantas ideaes: cousa que pareceo muito bonita em quanto era rara. 

A southern landscape with figures beside a stream by Joaquim Marques.
Sotheby's

O nosso Marques soube imitar tão bem aquellas galantarias, que todos os curiosos quizerão ter alguma cousa da sua mão, ou fosse em tectos, ou em paredes, ou em painéis, ou em carruagens; nem seria fácil fazer menção de todas: seu Mestre José Francisco, se valia delle quando tinha a fazer cousas de maior empenho. 

Pormenor da casa de jantar do Palacete Pombal, à maneira "pillementina".
Pintura realizada, eventualmente, por Joaquim Marques.
Helena Sofia Braga

José Francisco del Cusco era Napolitano, foi Pintor de esmalte, e pintou em Madrid, para Carlos 3.° alguma loiça esmaltada. Casualmente veio depois a Lisboa por 1763 hum certo LaCroix fabricante de pentes, tinha achado o modo de dissolver o copal, e queria estabelecer huma fabrica de caixas, fez sociedade em 66, ou 67, estabeleceo-se a fábrica aos Aciprestes, e teve vários discípulos, que forão:

Miguel Francisco del Cusco, filho de José Francisco, que succedeo a seu pae na administração da fábrica. Florindo, que morreo moço. João Lopes, Sebastião Clemente Schiapapietra, Manoel dos Santos Freitas, José Pereira, e Luiz António. 

Cena campestre descanso no caminho, Joaquim Marques, MNAA.
Rocha Madaíl

Manoel dos Santos Freitas foi hum dos de maior habilidade, e era bastante empregado; mas dando-lhe a mania para ser admirador enthusiasta dos Francezes que invadirão este Reino, esteve prezo, e na cadêa com as saúdes que fez a Napoleão, escandalizou de tal modo os mesmos facinorosos, que hum delles o ferio gravemente no rosto com a navalha que lhe hia deitar ao pescoço. Foi por tanto degradado para hum presidio da Africa.

Carregadores à beira-rio, e barqueiros, Joaquim Marques.
Rocha Madaíl

Luiz António pertence a huma familia oriunda da Ásia, chamada dos Chinas. Alexandre Metello tendo ido como Embaxador á China no tempo do Senhor D. João o 5.°,fez conhecimento em Macáo com Alexandre Geraldes, Chinez de Nação, e o induzio a que se baptizasse, e viesse com elle para Lisboa. Aqui teve nove filhos de ambos os sexos. António da Silva Geraldes, hum dos mais velhos, aprendeo a pintar com hum estrangeiro, e foi Mestre de seu filho João, e de seu filho Ambrósio José. Fez hum painel para a Ermida do Resgate, e pintava laminas de cobre para os devotos, teve discípulos que pintavão em vidro.

Grupo de sécias e peraltas preparando-se para um passeio no Tejo, Joaquim Marques.
Rocha Madaíl

Luiz António, que era neto de Alexandre Geraldes, e ficou sem pae em 1736, começou a estudar a Arte com hum certo Nicoláo Tolentino Botelho, homem de cor, que fora discípulo de seu tio António da Silva. Da escola do Nicoláo passou para a de José Francisco del Cusco na fábrica das caixas, e nella permaneceo constantemente apezar do partido que por intriga do dito LaCroix se levantou contra José Francisco, a favor de Monsieur Gerarde, novo Mestre de Desenho. Por estes annos veio para a fábrica mais outro Pintor estrangeiro, por appelido o Carobene, que era muito bom, mas esteve pouco tempo.

Pescadores à beira de um rio puxando as redes, Joaquim Marques, MNAA.
Rocha Madaíl

Manoel Caetano desejou, e conseguio ter inspecção sobre muitos Pintores dos que se empregavão em Queluz, e os poz, mesmo os bons, no predicamento de jornaleiros, mas em recompensa lhe fazia grandes interesses, contando ás vezes, segundo o excesso que fingia exigir, hum dia por 2, 3, 4, e mesmo 5 dias. Joaquim Marques que era como Vice-Inspector, e dirigia tudo, utilisava frequentemente 12, 16, 20 rs. cada dia. 

Alegoria ao príncipe-regente D. João, Joaquim Marques.
Rocha Madaíl

Nunca a Arte da Pintura foi tão mecânica, nem a d'Arquitectura tão liberal.

O Cais do Sodré em 1785, Joaquim Marques, MNAA.
Os africanos em Portugal

Morreo a 21 de Maio de 1822. Jaz na Igreja de S. José de Lisboa. (1)


(1) Cyrillo Volkmar Machado, Collecção de memorias... [ed. orig., 1823]

Leitura relacionada:
Rocha Madaíl, Documentação artística do pintor lisbonense Joaquim Marques (1755-1822), Revista Municipal n.° 46, 1950

Artigos relacionados:
O naufrágio do San Pedro de Alcántara
O Tejo de Jean-Baptiste Pillement

domingo, 5 de janeiro de 2020

São João Baptista, o Botafogo

O galeão portuguez chamado S. João Baptista, em que o imperador de Alemanha, e rei de Hespanha Carlos 5.° foi com seu cunhado o nosso infante Dom Luis, chamado "Delicias de Portugal", á conquista de Tunes contra o famoso corsario Heredim Barba-Róxa, não só é celebrado por ser o maior navio, que nos mares da Europa opprimiram as ondas, pois jogava 366 peças de bronze, e sendo redondo continha 600 mosqueteiros, 400 soldados de espada e rodella, e 300 artilheiros; mas também é famoso pelo talhamar, ou serra grande de aço finissimo, que tinha na proa para romper a cadea de Goleta [sabia-se em Portugal, que os mouros haviam atravessado na boca do rio da Goleta uma cadeia de ferro tão grossa, e tão segura que lhes parecia que o estava de poder ser rota]; o que se não poude conseguir da primeira vez, mas sim da segunda, em que o infante Dom Luiz mandou ao piloto, que se fizesse ao mar com volta mais larga, e dadas as vélas todas ao vento (prevenção que faltára na primeira) investiu a cadeia com impulso tão furioso, e vehemente, que a fez em pedaços, levantando uma grande serra de agua.

Galeão português na batalha de Túnis em 1535.
Capture of La Goulette (detail).
Tapestry of the series The Conquest of Tunis This Spanish set of the Conquest of Tunis was woven after the original cartoons designed by Jan Cornelis Vermeyen & woven by Wilhelm de Pannemaker in 1549-1551.
Wikipédia

Entrou o galeão pelo rio, como pelo corro o cavalleiro depois d'uma boa sorte, e começou a lançar tanta immensidade de raios sobre as fortificações dos infieis, que daqui lhe veio o nome, que o vulgo repete (ainda hoje em dia), chamando-lhe o "galeão bota-fogo".

Capture of La Goulette.
Tapestry of the series The Conquest of Tunis This Spanish set of the Conquest of Tunis was woven after the original cartoons designed by Jan Cornelis Vermeyen & woven by Wilhelm de Pannemaker in 1549-1551.
Wikipédia

Com elle, sem duvida, se facilitou, e conseguiu a conquista da Goleta, que se afigurava inexpugnavel no dia 13 de Julho do anno de 1535. (1)

*
*     *

Tendo-se assenhoreado dos estados tunesinos, pela expulsão do bey Moley-Hassan, o celebre Barba Roxa, terror da christandade em rodo o Mediterraneo, resolveu o imperador Carlos V accommetter aquella fera no quasi impenetravel covil a que se acolhéra, e d'onde ameaçara com maiores e novos perigos a marinha das potencias christâs.

Conquista de Tunes por Charles V, 1535, segundo original de Jan Cornelisz Vermeyen.
The British Museum

O exercito que Barba Roxa levantára para com elle assegurar o seu dominio; as fortificações que defendiam a cidade de Tunes, e principalmente as do porto da Golleta, que tinham nomeada em toda a Europa, passando, no dizer de muitos, por inconquistaveis, faziam mui difficil, e até arriscada, a empreza de Carlos V. Por taes razões recorreu este soberano ao auxilio del-rei D. João III, solicitando uma armada, e especialmente o grande galeão S. João.

Annuindo no pedido, enviou el-rei D. João III uma esquadra, composta do dito galeão, que ia por capitania, de duas naus, e vinte das maiores caravelas da nossa marinba, com alguns transportes carregados de munições. Era guarnecida esta esquadra com 618 canhões e 2:400 soldados, além dos marinheiros, e de muitos fidalgos que n'ella embarcaram como voluntarios, desejosos de adquirirem gloria. Foi commandada pelo general Antonio de Saldanha, o Velho.

Foi esta armnda reunir-se em Barcelona com a do imperador. Poucos dias depois chegou a esta cidade o infante D. Luiz, irmão del-rei D. João III, que, para participar dos perigos e triumphos d'esta empreza, saíra secretnmentc da cidade de Evora, sem communicar a el-rei o seu intento. 

"...Eu, Senhor, vim rico a esta terra e estou pobre; sou eu muito cobiçoso de natureza, e mal inclinado, porém falta-me habilidade para executar minha condição. De 18 anos tomei as armas em seu serviço; 6 vezes passei em África e lá me nasceram as barbas; mandou-me na armada de levante contra Barba Roxa; fui pessoalmente na tomada de Goleta, onde minha caravela ficou cheia de pelouros de bombardas, de que o muito excelente príncipe D. Luís é boa testemunha"
cf. D. João de Castro, numa carta ao rei D. João III, datada provavelmente de 1539

Armada portuguesa em Socotra, Egipto (detalhe), 1540-1541.
Tábuas dos Roteiros da Índia, Roteiro do Mar Roxo, D. João de Castro, Universidade de Coimbra.
Wikimedia

No dia 31 de maio levantaram ferro as armadas alliadas, conduzindo o imperador e o infante. Como seja estranho ao nosso fim a historia do cêrco e conquista da Goleta e de Tunes, bastará dizer-se que no dia 14 de junho foi tomada a primeira [os auctores portuguezes variam no dia d'este triumpho. A data que lhe assignàmos é a que nos parece mais provavel], e no dia 21 a segunda, fazendo a sua entrada n'esta cidade o imperador Carlos V e seu cunhado, o infante D. Luiz, no meio de enthusiasticas acclamações da tropa vencedora.

Para o prospero successo d'esta empreza contribuiu poderosamente a esquadra alliada, cabendo, porém, a maior gloria d'este feito naval ao galeão S. João, em que ia emharcado o infante D. Luiz.

Era este galeão o maior navio que tem tido até ao presente a marinha portugueza [não é correcto, em 1664 construiu-se um galeão de maiores dimensões, v. artigo dedicado: Padre Eterno]; e dizem que n'aquelle tempo não havia em toda a Europa outro de tão grandes dimensões. Tinha cinco baterias, e n'ellas 366 peças de artilheria de bronze. Na pôpa e na prôa erguiam-se dois alterosos castellos.

Ataque em La Goletta, com Túnis em segundo plano, Frans Hogenberg.
Wikipédia

Não sabemos a medida d'este vaso colossal. Mas, em um folheto attribuido ao dr. Jorge Coelho, que se presume ser escripto em tempo del-rei D. João III, diz-se que a sua quilha tinha comprimento e meio da maior nau da lndia. O numero de pessoas que transportou à tomada da Goleta pôde lambem servir para se ajuizar das extraordinarias dimensões d'este navio verdadeirnmente extraordinarias para aquella epocha. Além da tripulação, que deria ser muito numerosa para poder marear similhante navio, levou este a seu bordo 600 mosqueteiros, 400 homens de espada e rodela, e 300 artilheiros.

Reprodução tardia de um galeão português na batalha de Túnis em 1535.
Ataque em La Goletta, com Túnis em segundo plano (detalhe), Frans Hogenberg.
Wikipédia

Conforme referem os nossos historiadores, tinha este galeão no beque um talhamar de aço, com o qual rompeu, á segunda investida, a cadeia de ferro com que os moiros fecharam a entrada do porto da Goleta. Porém, não obstante o testemunho de varios escriptores, o silencio de outros muito auctorisados faz duvidoso este facto. Entretanto, é incontestavel que o referido galeão, ao qual o povo deu o nome de "Bota fogo" pelo muito que de si vomitava, prestou grande serviço n'aquella memoravel acção, não só pela actividadc do seu fogo, mas lambem por ser dirigido de uma posição superior, que ficara a cavalleiro dos outros navios da armada e das proprias baterias do porto.

Tunis, Civitates Orbis Terrarum, Georg Braun (1541-1622), Franz Hogenberg (1540-1590), 1574.
OpenEdition

Diz o citado folheto do dr. Jorge Coelho, que este galeão fóra construido nas Portas do Mar [dava-se o nome de tercenas das Portas do Mar a um dos arsenais de marinha de Lisboa, o qual era situado onde hoje vemos o mercado do azeite e edificios adjacentes, à Ribeira Velha], em Lisboa, pelo mestre João Gallego; que se começára a 29 de agosto de 1533, e que, empregando-se na sua construcção 230 operarios, se lançou ao mar no dia 24 de junho do ano seguinte.

Quando falleceu o cardeal rei D. Henrique, em  31 de janeiro de 1580, ainda existia ancorado no Tejo o famoso galeão S. João Baptista. Sabido que D. Antonio, prior do Crato, filho bastardo do infante D. Luiz, sendo um dos sete pretendentes á coroa por morte ele seu tio, o cardeal rei, fez-se aclamar rei de Portugal, em Santarern, aos 19 de junho do mesmo anno, e poucos dias depois em Lisboa. Tentando oppor-se, durante o seu ephemero reinado, á entrada da esquadra e do exercito de Castella, mandou fundear defronte de Belem o galeào S. João e mais alguns outros navios de guerra; e elle, com as suas tropas, mal armadas e sem disciplina, foi postar-se junto á ponte de Alcantara. Tudo isto, porém, foi baldado. Ao cabo de fraca resistencia, a esqundra castelhana surgiu em frente de Lisboa, e o exercito do commando do duque d'Alba, depois de haver derrotado e afugentado o prior do Crato e a sua hoste, entrou na cidade, onde acclamou a el-rei D. Filippe II.

D. João III e o núncio apostólico da Índia, ou A partida de São Francisco Xavier em 1541, José Pinhão de Matos, c. 1730.
Wikipédia

Em todo o reinado de D. João III não fizeram progressos as sciencias nauticas, bem como a arte de construcçào e apparelho. Construiram-se muito maiores naus e galeões do que até entrão; elevando-se a sua lotação de 400 a 800 e 900 toneladas. Mas commettia-se o erro de não pôr a mastreaçüo e o panno em harmonia com as proporções, força e estabilidade dos cascos. Foram estes defeitos causa de muitos desastres, porque os navios ficavam assim em más circunstancias para poderem resistir ao impacto dos ventos e á furia das vagas. (2)


(1) O Panorama n.° 239, 1841
(2) Archivo Pittoresco n.° 47, 1867

Artigos relacionados:
Padre Eterno

Mais informação:
VxMag
Master of Seas