segunda-feira, 3 de abril de 2017

O milagre d'Ourique

Depois de publicado o primeiro volume da Historia de Portugal alguns rumores se levantaram contra o auctor, por causa do milagre d'Ourique.

O milagre d'Ourique, Domingos António de Sequeira (1768-1837), Musée Louis-Philippe, Eu.
Imagem: Joconde

Fogo perdido; uma que outra sentinella avançada. Os olhos penetrantes de Alexandre Herculano viam, atraz d'isto, as massas do exercito disciplinado. Esperava um ataque em forma. 

Não tardou: foi nas entradas de junho de 1850. Era um dia santo; não me lembra se o de Santo António. Creio que sim. 

Os sinos haviam repicado pela manhã, vibrando, festivaes, por aquelle valle fora. Os sinos, que Alexandre Herculano descrevera n'uma das paginas mais brilhantes do seu "Monge"! 

Pois seria no âmbito do templo, em que se ostentava o campanário, que elle tinha cantado, que um padre violento, descomposto, e protervo, com indignação dos homens de bem e jubilo intimo dos hypocritas, havia de insultal-o, procurando levantar contra elle a indignação popular! 

O caso deu brado: teve echos estrondosos! Era pouco antes do jantar, quando entraram a porta D. João Pedro da Camara, D. Gastão da Gamara, e um empregado de toda a confiança de Herculano, homem honradíssimo, chamado Seixas.

D. João da Gamara e D. Gastão, dois rapazes valentes, vinham enfiados e trémulos; o velho Seixas grandemente commovido.

O nome de Herculano, por todos aquelles arredores, não só era querido, mas também profundamente respeitado. 

Alexandre Herculano.
Imagem: Falling into Infinity

Semelhante desacato tinha alcance! Atirar com um nome, como o do auctor do Eurico, á praça publica, cuspido com as injurias de "ignorante, ímpio, e hereje", e isto do alto d'um púlpito, era serio!

D. João da Camara consultou commigo o que se havia de fazer. 

— Contar toda a verdade ao mestre — respondi eu.

D. João da Camara principiou a narrar o facto. Alexandre Herculano enfiava. Depois com o queixo em grande tremor, o que se dava sempre que se commovia, os olhos chispando de justa indignação, atirou uma palmada sobre a mesa do trabalho, que fez saltar papeis, livros e tinteiro, exclamando com ímpeto: 

— Elles querem brigar commigo! Pois agora o veremos! Cinco minutos depois dizia-nos, na apparencia já socegado: 

— Nunca pensei, que chegassem a tanto. Vamos ao jantar. 

E accrescentava, esfregando as mãos:

— Apanham uma lição tremenda!

No fusilar dos olhos, na ruga perpendicular da testa espaçosa, que as sobrancelhas contrahidas tornavam mais funda, na convicção das suas palavras, francamente, sentia-se a força de um gigante. 

N'essa tarde saímos a espairecer pelo valle das Romeiras, e fomos cair á horta.

Herculano, como de ordinário, deu as suas ordens ao caseiro, anafou o pello luzidio das turinas, e não fallou mais no facto. Os olhos tinham a serenidade habitual, mas o brilho era mais intenso. 

Aquella robusta e elevada razão mediu o alcance da lucta, que ia travar-se, calculando o vigor e ao mesmo tempo a prudência, que devia guardar-se, ao atirar dos golpes. Atraz de alguns padres maus ou ignorantes, o clero tinha homens de saber e de talento, que, provavelmente, entrariam no combate.

O jornal "A Nação" contava redactores como Manuel Maria da Silva Bruschy, João de Lemos, Gomes d'Abreu, D. Jorge de Locio, e outros. 

Comquanto entre esses homens alguns, como Silva Bruschy e João de Lemos, fossem ami- gos e admiradores sinceros de Alexandre Herculano, o partido a que pertenciam impunha-lhes o dever de saírem em defeza das suas idéas, porque, no fundo, a batalha ia ferir-se entre a escola liberal e a reacção. 

No dia seguinte, depois do almoço, Herculano sentou-se á mesa do lavor.

Deu um talho nas pennas de pato, e no alto de uma folha do antigo papel almasso, azulado, forte, granulado, escreveu esta destemida antithese: "Eu e o Clero".

Este titulo foi uma das coisas, que asperamente lhe censuraram os seus adversários, alguns de estatura elevada e de pulso vigoroso. 

A penna rangia sobre o papel, traçando linhas direitas, como se fossem pautadas, da lettra do mestre, firme, clara, e egual, como o seu caracter! 

De tempo a tempo depunha a penna no grande tinteiro antigo de latào, estendia o braço direito com a mão forte e espalmada sobre as folhas já escriptas, reclinando-se no espaldar da cadeira, e correndo a mão esquerda pela testa inspirada, ampla e luminosa.

Eu, sentado defronte d'elle, no logar onde habitualmente trabalhava, não lhe perdia um movimento, e, ao escrever estas linhas, aviva-se-me a impressão, que sentia então — uma espécie de susto!

As ondas de luz de um magnifico dia de junho entravam pela janella. O sol frechava as aguas serenas do Tejo, que, estremecendo, faiscavam em faúlhas de prata.

O silencio era apenas interrompido pelo sino da torre, redondo e sonoro, que batia as ho- ras e os quartos. 

O grande luctador, n'aquella tranquillidade apparente, na força da vida e do talento, vibrava os primeiros e tremendos golpes da rija espada, no prologo de uma das suas mais renhidas batalhas! Era uma imponente figura!

Ao jantar esteve de excellente humor, e de tarde passeámos como de ordinário. 

No dia seguinte, chegando quasi ao epilogo do seu opúsculo, o grande historiador exclamava, com esta eloquência:

"Quando a egreja, envolvendo a fronte no véo da sua immensa tristeza, e sentindo humedecer-lhe os pés o sangue humano, vertido pelo ferro sacerdotal, contempla aterrada o futuro, ha dor de individuos, a que seja licito um brado?"

ooOoo

O "Eu e o Clero", como era de esperar, accendeu a questão na imprensa!

O jornal "A Nação" acudiu ao seu posto de honra. Censurou os padres, que insultavam o caracter e o talento de Alexandre Herculano, floreou cortezmente o ferro deante do mestre, caiu em guarda, mas em seguida atirou-lhe os primeiros botes.

D'alli a pouco, Alexandre Herculano estava debaixo do fogo de todas as baterias inimigas, e elle só, respondendo, avançando, carregando, e já a trepar ao assalto, com a espada nos dentes, para os acutilar na brecha! 

Visão de D. Afonso Henriques, Frei Manuel dos Reis, 1665.
Imagem: MatrizPix

A lucta continuou. Eu parti a 5 de agosto d'esse anno — 1850 — para a ilha da Madeira, e voltei no principio de março do anno seguinte. Ainda se batalhava!

Para se ver o vigor intellectual do grande historiador, deve notar-se que, durante todo aquelle grave conflicto, não alterou em nada os seus hábitos; nunca deixou de vir duas vezes por semana á Torre do Tombo, continuando a escrever a Historia de Portugal!

Como succede em todas as coisas, por maiores, por mais solemnes que sejam, não faltaram os episódios cómicos.

Certo padre, a quem Alexandre Herculano, para espairecer, dissera uns gracejos, n'uma carta impressa, devolveu-lhe o papel dentro de um grande sobrescripto; mas de tal modo vinha "perfumado", que foi preciso acudir á agua de Colónia, para desinfectar o quarto! 

Casa de Alexandre Herculano na Ajuda, Largo da Torre, Alberto Carlos Lima, década de 1910.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa

O clérigo, nos transportes do seu furor, apellou para a mais grossa das pulhas de carnaval! A explosão de cólera do padre, coitado, só podia ser comparável á explosão de gargalhadas, em que rebentámos, Herculano e eu! (1)


(1) Bulhão Pato, Memórias Vol. I, Scenas de infância e homens de lettras, Lisboa, Typographia da Academia Real das Sciencias, 1894

Leitura relacionada:
Alexandre Herculano, O Monge de Cistér, Tomo I, Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1918
Alexandre Herculano, O Monge de Cistér, Tomo II, Lisboa, Aillaud e Bertrand, 1918
Alexandre Herculano, Eu e o Clero, Lisboa, Imprensa Nacional, 1850

Leitura adicional:
Ana Isabel Buescu, Alexandre Herculano e a polémica de Ourique...

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