segunda-feira, 29 de julho de 2024

Marguerite por Kisling e Sousa Lopes

Moïse Kisling

Moïse Kisling (1891-1953), pintor de origem polaca, mudou-se para Paris no início do séc. XX. Viveu em Montparnasse, no mesmo edifício que Jules Pascin e Amadeo Modigliani. O nu, o retrato, a paisagem e as naturezas-mortas foram os temas dominantes da sua obra, onde a proximidade a Modigliani se reflecte no desenho dos olhos (...)

Portrait de a soeur de Mme Renée Kisling (détail), Moïse Kisling, 1918
MutualArt

O atelier de Kisling em Paris era, nessa época, um lugar de encontro célebre e quotidianamente frequentado por Modigliani, Soutine, Max Jacob ou Cocteau. Também Diogo de Macedo conheceu Kisling em Paris e contou o seguinte episódio: “Chez Batty, um bistrôt barato, onde se reuniam pintores e poetas, Kisling perguntara-me uma vez:

– Diz-me lá, é verdade que no teu cantinho o meu cunhado, que pinta grandes máquinas para o salão dos pompier, é uma grande figura?

Referia-se a Sousa Lopes, de quem era amigo, à sua maneira. Nós éramos, então, vizinhos na rua Bara, ao pé do jardim do Luxemburgo” (...)

Portrait de a soeur de Mme Renée Kisling (détail), Moïse Kisling, 1919
Christie's

Adriano de Sousa Lopes

O casamento com Guitte (Marguerite Gros Perroux) proporcionou-lhe a amizade do pintor Moïse Kisling e do seu círculo, já que Kisling era casado com Renée, irmã de Guitte.

Sousa Lopes manteve durante toda a sua vida a proximidade com Kisling e, mesmo após a sua residência mais permanente em Lisboa, continuaram a encontrar-se com frequência, durante as férias, no sul de França. (1)

Portrait de Marguerite Gros, soeur de Mme Renée Kisling (détail), Moïse Kisling, 1919
MutualArt

Em 5 de Janeiro (de 1924) inaugura a exposição das obras de guerra no atelier do parque das Necessidades. Destacam-se na imprensa as apreciações de Artur Portela, José Rodrigues Miguéis, Júlio Dantas e Reynaldo dos Santos. Columbano adquire cinco águas-fortes para o Museu Nacional de Arte Contemporânea.

No Verão e até Janeiro seguinte está com Marguerite na Côte d’Azur, residindo em La Berle, commune de Gassin, perto de Saint-Tropez. “Guite” recupera de uma doença. Na Provença pinta retratos, muitas paisagens (ali perto em Minuty e no porto de Saint-Tropez), deslocando-se em bicicleta, e algumas naturezas-mortas ao ar livre.

“Estou a abrir os olhos outra vez, por causa das penumbras da guerra”, escreve em carta a Lopes Vieira (12 Dezembro). Nesses dias terá pintado o conhecido retrato de Marguerite, A blusa azul. Convive com a família Kisling e com o poeta e crítico de arte André Salmon, que os visita na Côte d’Azur. (2)

A blusa azul (detalhe), retrato de Marguerite Gros Perroux, esposa do autor
Adriano Sousa Lopes, c. 1920
MNAC


Em Março de 1927, teve lugar na SNBA a segunda grande exposição individual dos trabalhos do pintor realizados após 1917. Nela, Sousa Lopes apresentou um conjunto de obras de temática diversa, onde se incluíram pinturas a óleo, várias águas fortes e desenhos (quer sobre a Grande Guerra, quer sobre outros motivos). Esta mostra foi levada ao Porto, à Associação Comercial, um mês depois (...)

Retrato de Madame Sousa Lopes (detalhe), Adriano Sousa Lopes, 1927
MNAC

A par destas obras, o pintor voltou ao retrato, numa abordagem radicalmente diferente dos retratos apresentados em 1917 e em que revela outra paixão que, para além da intensidade da experiência de guerra, dominou a sua vida.

São os muitos retratos que fez da sua primeira mulher, Guitte, tais como o “Retrato no Parque”, de que foi assinalada a elegância e a delicadeza de tons, tendo como fundo um lago com nenúfares, ou um outro “Retrato de Madame Sousa Lopes” que José-Augusto França qualificou “como um dos melhores retratos da pintura nacional dos anos 20” (3)


(1) Maria FHP Perez, Adriano de Sousa Lopes, Director do Museu Nacional de Arte Contemporânea (...)
(2) Carlos Silveira Gonçalves, Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), Um pintor na Grande Guerra
(3) Maria FHP Perez, Idem
 
Leitura relacionada:
Carlos Silveira Gonçalves, Adriano de Sousa Lopes (1879-1944), Um pintor na Grande Guerra
Adriano de Sousa Lopes, Conservação e restauro das obras académicas (...)

Mais informação:
Adriano de Sousa Lopes, Centro de Arte Moderna Gulbenkian
Moïse Kisling Catalogue raisonné en préparation

domingo, 7 de julho de 2024

Silva Porto, retratos de Adelaide

A portaria de 18 de Setembro nomeia dois pensionistas no estrangeiro: Silva Porto e Marques de Oliveira. Seguem juntos para Lisboa embarcando, rumo a França, em 29 de Outubro.

Qualquer equívoco nas repartições oficiais ocasionou um atraso na primeira mensalidade, como se depreende de uma carta de 11 de Dezembro, assinada pelo conselheiro António José Torres Pereira, enfermeiro mor dos Hospitais, director dos Negócios Administrativos do Ministério do Reino, na qual, em resposta a outra do pensionista, se diz estarem à disposição dos interessados, pela Agência Financial de Londres, as importâncias relativas aos meses de Novembro de 1873 até Junho de 1874 (à volta de 54.200 réis mensais).

Retrato de Adelaide Torres Pereira (detalhe), Silva Porto
Fundação Casa de Bragança

A demora, acrescenta o zeloso funcionário, foi por «não constar nesta Rep., nem o dia da sua partida, nem mesmo o da sua chegada a Paris». O conselheiro Torres Pereira morava no prédio junto ao Hospital da Ordem Terceira, frente ao pátio e traseiras da Academia de Belas Artes. Do seu rancho de filhos faz parte a menina Adelaide, ao tempo com uns onze anos, onze inocentes e risonhas primaveras.

Retrato de Adelaide Torres Pereira, Silva Porto
Varela Aldemira, Silva Porto (1850-1893)

Quem ousaria adivinhar? O pensionista de Paris, homem de contas certas, ao reclamar os dinheiros atrasados, dirigia-se ao seu futuro sogro. Por sua vez, o ilustre burocrata da capital, ao dar plena satisfação a um jovem artista seu desconhecido, estava escrevendo àquele que deverá ser um genro modelo (...)

A constituição de um lar estava no temperamento do paisagista crematístico, afeiçoado às do- çuras de uma existência regrada, e, para isso, o antigo arquitecto faz projectos calculados e orçamentados, avareza no trabalhar e gastar, diferente das unhas de fome na vulgar razão do amealhar.

Retrato de Adelaide Torres Pereira, Silva Porto
Fundação Casa de Bragança

Em 25 de Abril, precisamente o dia da abertura da grande Exposição da Promotora, de que já nos ocupámos, o pintor dirige uma carta à sua prometida Adelaide Torres Pereira, «a linda menina que mora defronte», dizia-se no pátio da aula de paisagem, a filha mais distinta do conselheiro Torres, ilustre burocrata conhecido dos pensionistas.

No canto superior da missiva, um raminho de flores impresso em relevo colorido precede as «duas palavras: amar e ser amado». A noiva está em Benfica: o artista não a esquece, apesar da distância impedir «contemplá-la maior número de vezes....

Retrato de Adelaide Porto, Silva Porto, 1882
Museu Nacional Soares dos Reis


Hoje é a abertura da Exposição, que certamente impede a visita habitual, rogando desculpas. O acontecimento maior para o artista, mal aflora na austera e sucinta epístola: a Exposição, uma palavra só, tudo, e por ela sacrificar a vida inteira, sem faltar um ano à chamada. A doença e o luto pelo pai da noiva atrasam o casamento, efectuado dois anos depois (...)

O Álbum ou Conversando, Silva Porto, 1885
(Maria Augusta Bordallo Pinheiro e  Adelaide Torres Pereira)
Varela Aldemira, Silva Porto (1850-1893)

O álbum, recolhido intimismo de duas senhoras, a esposa do artista e uma amiga folheando páginas ilustradas (mais conhecido por Conversando). Na pintura de interior, Silva Porto vence a timidez, garboso na presença de modelos familiares, os de casa e os de particular aproximação, o campónio humilde, a mansa bestiagem que não recusa a pose, amigos sem exigências para o caso de o retrato ficar menos «parecido». (1)


(1) Varela Aldemira, Silva Porto (1850-1893)

Artigos relacionados:
Silva Porto (falecido a 1 de junho de 1893)
Silva Porto (pequena biografia)
António Carvalho da Silva Porto, breve roteiro
etc.

Leitura relacionada:
Sara Beirão Antunes, Osdesenhos de Silva Porto no acervo artístico da SNBA
Ana Catarina Dantas, Silva Porto - Vida, Obra e a Sociedade Nacional de Belas Artes

Mais informação:
João Macdonald, Projecto L7885 Grupo do Leão

Tema:
Grupo do Leão

sábado, 6 de julho de 2024

Typos e costumes populares

Podendo considerar que durante séculos coexistiu uma apropriação entre as elites e o povo foi, de facto, com a pintura tardio-setecentista, com nomes como Jean-Baptiste Pillement (1728-1808), Alexandre-Jean Noel (1752-1834) e Nicolas Delerive (1755-1818), que vemos surgir, pela primeira vez, pequenas cenas de costumes inseridas na pintura de paisagem, um dos géneros pictóricos mais divulgados na época.

At the mouth of the River Tagus, Jean-Baptiste Pillement
MutualArt

De facto, é neles que encontramos os primeiros apontamentos do universo bucólico, absorto na inocência e simplicidade dos costumes rurais, apesar que não de forma explícita ou centralizada a nível de temática e enquadramento (...)

Aqueduto das Águas Livres, Alexandre Jean Nöel, 1792
(vista a jusante dos arcos com a Ermida de Sant'Anna)
Biblioteca Nacional de Portugal

Ao mesmo tempo que se davam os primeiros passos na representação dos populares nas artes em Portugal, os relatos dos viajantes e militares, ora com o fenómeno do Grand Tour, ora proporcionados pelas campanhas da Guerra Peninsular, concentravam um interesse pelos seus tipos característicos, costumes e infra-estruturas.

Feira da Ladra na Praça da Alegria em Lisboa (década de 1810), Nicolas Delaerive
MNAA

Estas aventuras turísticas a que se votaram William Beckford (1760-1844), Robert Southey (1774-1843), Lord Byron (1788-1824), Hans Christian Andersen (1805-1875), entre tantos outros, são autênticas resenhas de costumes civis ou populares que ao longo do século XIX serão amplamente reinterpretadas.

Aqueduto das águas livres, ponte e ribeira de Alcântara, século XIX
(cf.
William Beckford,  Sketches of the Country, Character, and Costume, 1808-1809)
Cabral Moncada Leilões

Alguns viajantes foram também gravadores, o que resultou numa tradução “directa” em imagens de tais costumes civis ou populares.

Vista do aqueduto de Lisboa, Henri l'Évêque, 1809
Cabral Moncada Leilões

Desenvolve-se então a gravura de costumes conhecendo-se nesta altura nomes como Nicolas-Louis-Albert Delerive (1755-1818), Zacharie Félix Doumet (1761-1818), Henry L’Évêque (1769- 1832), William Bradford (1779-1857), Jorge Bekkerster Joubert (1813-?) ou João Macphail (1816?-1856), sendo pioneiros a fazer circular imagens sobre os tipos populares portugueses que poucos anos depois viriam a ser reinterpretadas e aumentadas por outros gravadores e artistas, como por João Palhares (1810-1890), Manuel de Macedo (1839-1915), Alfredo Roque Gameiro (1864-1935), Alfredo Morais (1872-1971), Alberto Souza (1880-1961) ou até pelo figurado escultórico de Teixeira Lopes Pai (1837-1918) (...)

Aqueduto de Lisboa, Tomás da Annunciação, c. 1850.
Biblioteca Nacional de Portugal

Assim, imbuídos do espírito dos nossos escritores e da escola romântica estrangeira, Augusto Roquemont (1804-1852), Tomás da Anunciação (1818-1879), Francisco José de Resende (1825-1893), Leonel Marques Pereira (1828-1892), António José Patrício (1827-1858), João Cristino da Silva (1829-1877) e Manuel de Macedo (1836-1915), proporcionarão a estabilização do género, sustentando a retoma às origens, a procura da simplicidade rural, elogiando a saúde e qualidade de vida pré-industriais, representando de forma esbelta, proporcional e numa paleta excepcional, os usos e costumes portugueses (...)

Vista de uma parte da feira do Campo Grande, Tomás da Anunciação, c. 1850.
Biblioteca Nacional de Portugal

Com desenvolvimento litográfico e tipográfico dos meados do século XIX, vemos João Palhares a editar por três vezes uma extensa série de litografias denominadas de Costumes Populares Portugueses.
[...]

Guarda Municipal de Lisboa
Typos Costumes Portugueses, João Palhares, c. 1850
Biblioteca Nacional de Portugal

De tiragem significativa, mas até hoje não apurada, desconhece-se maioritariamente a proveniência das imagens representadas (se por um lado algumas imagens são reinterpretações doutros gravadores, por outro, determinados “tipos populares” surgem só nas suas litografias).

Novamente entendemos que as gravuras são muito “de inspiração”, sem noção das circunstâncias sociais, ou até mesmo dos factores determinantes, como económicos e geográficos, para a escolha de determinada indumentária em relação às designações e regiões atribuídas. (1)


(1) Gil Sousa Pinho, Decursos e discursos da tradição (...), 2021

Leitura relacionada:
Agostinho Araújo, Experiência da natureza e sensibilidade pré-romântica em Portugal (...), 1991
As Figuras de Costumes Populares de José Joaquim Teixeira Lopes