domingo, 4 de junho de 2017

Silva Porto (falecido a 1 de junho de 1893)

Um delicado impressionista, descrevendo-nos n'uma phrase terna a figura pequenina e discreta de Silva Porto, dizia d'elle: — "Dá o ar d'um Christo que tivesse pedido feriado na ceia dos apostolos..." 

A volta do mercado, Silva Porto, 1886.
Imagem: MNAC

Timido e simples, solitario e doce, franzino e triste, olhos habitualmente adormecidos n'uma morte-luz de saudade, a pelle n'um tom macillento e terroso, as feições grossas e plebêas d'um sensual, modesto no trajar, humilde nas fallas, retrahido nos gestos, Silva Porto passava nas ruas como uma sombra, sem attrahir um olhar, muito cosido com as paredes, muito "João Ninguem" no aspecto, surprehendido talvez de não lhe tomarem contas e talvez mesmo prompto a pedir desculpas de ser o mestre da paizagem com aquella cara...

Era um homem de vida interior, acanhado e cautelloso diante de estranhos, dilatando-se apenas na solidão ou na convivencia d'algum raro intimo. Então, um, outro Silva Porto surgia d'aquélla creatura embiocada para o mundo, um Silva Porto bom burguez, familiar, infantil, por vezes brincalhão, com inoffensivas malicias nos olhos e uma graça ingenua nos ditos, amigo de rir, feliz de viver.

Este Silva Porto que poucos conheceram realmente e o "outro" que descia á vida, receioso, contrafeito, atarantado, explicam, me parece, a feição a um tempo perfeita e pueril, honesta e banal, limitada e sincera, de toa a sua obra.

O seu apego ao solitarismo levou-o ao amor pela paizagem. Diante das arvores pacificas e innocentes, das aguas preguiçosas e sentimentaes, das atmospheras diaphanas e leves, estava inteiramente á vontade.

Pintando figura, necessitava para illudir aquella sua cobardia invencivel, d'um modelo plebêo e inferior que não o intimidasse ou d'alguem que o agradavel convívio lhe fosse habil e lentamente insinuando na sua ambiencia de artista.

Os seus instinctos de exemplar burguez, — tomo a palavra na boa accepção — fazem-no escravo d'uma moral atavica, instinctiva, obrigando-o a cumprir quasi como um officio a sua arte magistral.

À porta da venda, Silva Porto, 1891.
Imagem: O Occidente N.º 445, 1 de maio de 1891

Saía cedo, invariavelmente, e trabalhava o dia inteiro, na aula, no atelier, nas licções particulares, chegando a casa para jantar, extenuado como um operario á volta da officina.

A maior caracteristica nos seus quadros é a probidade de technica : as suas paizagens são verdadeiras, d'uma verdade toda material; dão a região, a hora, o sitio.

Não lhe peçam o lado vasto e mysterioso da natureza, alguma indefinivel surpreza ou qualquer idéa transfigurando-se em sonho immaterial. Não, Silva Porto pinta o que vê e só o que vê.

Trabalha, lucta, esforça-se por conseguir o que tem diante dos olhos, sem deixar a minima coisa ao acaso do pincel. Procura dar o aspecto completo da sua visão e foge systematicamente á improvisação que elle julga uma inferioridade de caracter, uma immora-lidade relativa, embora militas vezes ella sáia feliz e revele talento.

Com certo conde artista, muito affeiçoado a Silva Porto, passou-se uma interessante scena que indica até que ponto ia a probidade do nosso paizagísta. Gostava o conde de pintar e, não raro, aproveitando uma excursão do mestre, partia para o campo a trabalhar ao lado de Silva Porto.

D'uma vez, escolheram ambos o mesmo trecho de paizagem e cada um com sua taboinha tratou de fazer a respectiva mancha. No primeiro plano havia uma arvore tôsca e imperfeita que crescera sem cuidados nem amparo, á mercê do tempo. O conde, apezar d'artísta, era um eminente botanico, professor d'urna escola superior, e começou logo tratando a sua arvore como um especialista e profundo conhecedor da anatomia plastica do modelo.

A pouco e pouco, levado pela sua paixão, ia corrigindo a pobre arvore inculta, detalhava-lhe os ramos, completava-lhe a architectura dos troncos, prendia-lhe symetricamente tufos de folhagem, descia a minucias de recorte da folha, era meticuloso na implantação dos peciolos.

Quando Silva Porto deitou os olhos ao estudo do conde, não conheceu a arvore. E levantando-se, muito grave e muito triste, disse: — Está muito bonita, mas não é o que lá está!

E para o resto do dia ficou furioso contra aquelle attentado, emquanto o conde ria a bom rir... Os quadros de Silva Porto vivem prodigiosamente por essa probidade e por essa solidez de factura que tem já de chamar-se individualidade.

Conhecem-se de longe, sem precisar ver quem os assignou, e nada entretanto os domina como garridice ou effeito proposital. A tinta é sempre suave, macia, harmoniosa e beija, e o "truc" é tão admiravelmente disfarçado na justeza e habilidade dos processos que o quadro parece não existir como obra d'arte mas como inexplicavel reducção da propria natureza.

A Salmeja, Silva Porto, 1884.
Imagem: Viagens Pelo Oeste

Silva Porto pinta bem e essa indispensavel qualidade n'um mestre de pintura é adquirida aos poucos, n'uma tenacidade espantosa em individuo portuguez, como consequencia da sua honestidade burgueza se repercurtir na sua vida artistica. É preciso pintar bem "para não enganar o publico"...

Vemol-o, por exemplo, mudar muitas tintas da sua paleta ao reconhecer que certos brancos, alguns amarellos, determinados vermelhos, cresciam ou negrejavam com o tempo, prejudicando o quadro.

Vemol-o tambem estudando todas as suas paizagens ao ar livre, enchendo-se de apontamentos do natural, e queixando-se sempre ao pintar o quadro definitivo no atelier de que lhe faltam documentos. O seu desejo seria levar a grande tela para o campo e ali executar, fielmente, á vista do modelo.

Procurando ser exacto, perseguindo a verdade, chegou a apoderar se da forma. A sua technica, mormente nos ultimos annos, é incomparavel, quasi incomprehensivel; tem segurança, facilidade, largueza.

Quem nos diría, olhando a primeira arvore que Silva Porto pintou, estar ali o futuro compositor da magnifica tela Conduzindo o rebanho?...

O moinho do Gregório, Silva Porto, 1891.
(Casa dos Patudos, Alpiarça)
Imagem: As representações da cidade do Rio...

D'essa primeira arvore, hirta e chata, de côres carregadas e falsas, de folhagem banal e miudinha, pacientemente feita a granulos de tinta, dando-nos a impressão de certas pacotilhas allemãs que imitam grosseiramente hediondas chinezices de exportação, até aos habeis e perfeitos trabalhos do fim da sua vida, que constante e pertinaz progresso, que continua e lenta ascensão, que espantosa e esforçada lucta para ver, para tentar, para conseguir, para triumphar!

O seu ideal é sempre o mesmo: ser probo, pintar o que lá está. E d'este modo attinge um outro: ser pessoal, inconfundível, ser Silva Porto. Estamos habituados a chamar artistas a creaturas que não passam dos dominios d'uma technica habilidosa que adquirem, á força de insistir no tempo e na paciencia, um processo correcto de factura sem originalidade nem individualidade.

São typos frios, astuciosos, preparando a pincelada com a receita dos outros, soffrendo successivos abalos na maneira conforme as influencias proximas, executando como um qualquer ao cabo do mesmo esforço de copia. São incontestavelmente trabalhadores, com grandes qualidades assimilativas, mas ..que chegam ao limiite do molde sem nunca o ultrapassar.

Para physionomia de grande artista falta-lhes a idéa, falta-lhes o caracter na obra, falta-lhes a sinceridade na execução. Não conseguem interpretar; o vôo que alguma vez ensaiam não se libra, é rasteiro, roçando o que vêem sem jamais se levantar ao que sentem... porque nada sentem.

Amor na aldeia, Silva Porto.
Imagem: Hemeroteca Digital

A propria technica vão buscal-a a paletas extranhas, sem nunca tentarem urna tinta de sua lavra: pintam como se usa; a moda limitrophe, sem poder crear. É a historia de quasi todos os nossos pintores que vão estudar lá fóra.

Abdicam da sua nacionalidade e do seu sentimento, mascaram-se de pasticheur, e raras vezes procuram libertar-se da influencia extrangeira. Silva Porto nao foi assim. Andando cinco annos em estudos pela França, Belgica, Hollanda, Inglaterra, Hespanha e baila, ficou sempre genuinamente portuguez.

Não se desenraizou da sua terra; ao contrario, parece que a ausencia da patria, roendo-o de saudades, avigorou o amor que lhe tinha, e a inadaptação a um meio extranho, artificial, hostil e complicado de mais para o seu fatalismo de plebêo e para a sua credulidade infantil, fez pungir essas tristes e nostalgicas idéas que depressa o trouxeram para Portugal, na ancia de outra luz e melhor ceu.

Casa minhota, Silva Porto.
Imagem: Hemeroteca Digital

Uma vez na patria, fazendo arte, nunca se esqueceu de prover ás necessidades caseiras e ao equilíbrio material da sua vida. Dá lições particulares, rege uma cadeira na Academia e ainda os motivos que escolhe de preferencia para pintar são os que seduzem promptamente o comprador.

Azenha no Minho [ou Lugar do Prado (Santa Marta-Minho)], Silva Porto, 1892.
Imagem: MatrizNet

O Minho com a sua paizagem maneirinha e doce, temperada de suavidades de luz e melodiosa na orchestração das côres, fornece-lhe uma serie facil de ensaios, apontamentos e pequeninas telas, sempre disputada pelos amadores.

Os arredores de Lisboa, poeirentos e baços, os campos ribatejanos, certos trechos pittorescos da provincia, encontram em Silva Porto não só o pintor inegualavel de fidelidade mas tambem o representante sincero duma clientela.

A sua arte tem um lado pratico, é quasi sempre um modo de vida. Vemol-o, por exemplo, fixar o preço dos seus quadros pelo tamanho da tela e não pela qualidade de pintura. A maravilhosa "Cabeça de camponeza", realisada com um amor e urna delicadeza d'inspirado, é vendida por sessenta mil réis como qualquer mancha de natureza rustica e banal.

Cabeça de camponeza, Silva Porto.
Imagem: Hemeroteca Digital

E quem estranhasse o facto, encontrava o pintor, timido e. envergonhado, desculpando-se : — Então havia de pedir mais dinheiro por um bocadinho tão pequeno de pintura?! 

Este feitio medroso de negociante prendeu lhe as azas para a concepção d'uma larga obra em que as suas extraordinarias aptidões de paizagista e animalista se immortalisassem por alguma coisa mais do que a virtuosidade.

Ao seu lado faltou aquelle anjo que, no dizer ingenuo de Corot, descia do ceu para lhe pintar as melhores telas... Nas reproducções que acompanharn estas ligeiras notas encontrará o leitor, que por infelicidade nunca lograsse ver os quadros de Silva Porto, a expressão da realidade attingida pelo paizagista ao cabo d'um esforço paciente e pertinaz de longos annos.

Algumas parecem instantaneas copias photographicas, tão flagrante é a acção do quadro, tão nitida a movimentação da scena. Na "Barca de passagem", o rio, as arvores, os montes, o carro de bois, a barqueira são d'um naturalismo perfeito... e impassivel.

Barca de passagem em Serreleis [Viana do Castelo], Silva Porto, 1892.
Imagem: Matriz.net

Nas "Ceifeiras", uma das suas melhores telas, o quadro dá espantosamente essa seara dos suburbios de Lisboa, d'um amarello convalescente, e nas figuras ha um vislumbre de evocação poetica que raramente se encontra no artista, tão raramente que só nol-a recordam mais dois quadrositos seus: um com o estudo d'uma manhã de neblina no Tejo e outro em que ha uns cavallos bebendo.

Ceifeiras (ou Colheita), Silva Porto, 1893.
Imagem: Wikipédia

No quadro "Conduzindo o rebanho", d'uma factura admiravel, inegualavel, unica, o virtuoso parece querer mostrar-nos todos os seus recursos na clara e nitida execução d'um trecho altamente complicado.

Conduzindo o rebanho (Arredores de Lisboa), Silva Porto, 1893.
Imagem: MNSR

N'essa extraordinaria tela de quasi dois metros, juntam-se todas as maiores difficuldades d'uma paizagem. A luz é a do meio dia em agosto, o ceu abafa n'um calor de trovoada, o terreno é o d'uma azinhaga dos arredores de Lisboa; piteiras, silvas, uma oliveira carcomida e velha, tudo poeirento e sequioso, n'uma atmosphera de febre; pela vereda pedregosa uns carneiros, um pastor, um burro e uma lavadeira, levantando uma poeirada asphixiante.

Não ha palavras que expliquem sufficientemente o effeito deste quadro; é preciso tel-o visto para se comprehender até que ponto ia a consciencia do pintor escravisando se á exactidão da scena. Diante d'esta paizagem, onde o artista se preoccupou apenas em nos revelar que "sabe pintar", é que se sente bem a falta que lhe fez um pouco de ideal, de commoção, de sonho, a divinisar-lhe aquellas inexcediveis faculdades de technica.

Seria um nunca acabar descrever mesmo summariamente as tresentas ou quatrocentas telas que deixou. São rapidas manchas, pequenos estudos, trechos d'arvoredo, notas animalistas, casas alpendradas, engenhos d'agua, marinhas, regadas, costumes e trajos minhotos, scenas de campinos, mulheres fiando, riachos verdosos, recantos rusticos... 

De vez em quando, uma mulher de Santa Martha, de Avintes, de Miadella ou da Maia, apparece com seu lenço á chineza e jaleco de riscas, saia entrançada de côres como um arco-iris, com suas resplandecentes arrecadas nas orelhas e grilhão de muitas voltas ao pescoço, as meias de neve, a chinellinha ponteaguda no bico do pé...

Rapariga dobando, Silva Porto.
Imagem: Hemeroteca Digital

Outras vezes, é uma saloiasita nubil e fresca, de roupinhas pobres e lavadas, humilde e casta, um lenço vermelho descaído para os hombros, um sorriso meio acanhado na bocca inexpressiva, saloiasita como a d'essa "Cabeça de camponeza", tão cheia de caracter e de graça, que um amigo meu, enfeitiçado pela suave e encantadora modelalação da pequenina tela, intitulou a "Jocunda portugueza".

Pena é que toda essa obra valiosa e vastissima esteja em mãos de particulares, sujeita aos acasos da fortuna e a problematicos destinos no futuro. Os poderes publicos, sempre distrahidos com as rotinices da machina politica, esqueceram-se de adquirir, em época propria, os indispensaveis documentos para a historia do maior paizagista portuguez, e assim succede, é vergonha dizel-o, que no Museu Nacional das Janellas Verdes ha apenas uma pequena tela de Silva Porto, que, por maior infelicidade, não pertence á sua ultima feição de technico pujante e incomparavel.

Campinos, Silva Porto.
Imagem: Hemeroteca Digital

Coisas caracteristicas da nossa terra...

O seu ultimo quadro, por concluir, parece-me que pertencia ao Gremio Artistico e deve estar hoje na Sociedade Nacional de Bellas-Artes. É uma linda mancha de côr, com uma atmosphera fluida e luminosa, onde se recortam os ramos floridos de duas macieiras.

O terreno, em tres gradações de verde, duma pastada larga, alonga-se a perder de vista. Ha certos pontos em que as tintas apparecem ainda sobrepostas tal como o pincel, á pressa, as colheu na paleta, sem tempo de fundil-as completamente. É um valioso e interessante documento para quem pretender algum dia estudar o processo de pintar de Silva Porto.

Macieiras em flor [MNSR, existe uma tela homónima no MNGV], Silva Porto, 1893.
Imagem:  flickriver

As Macieiras em flór appareceram na exposição do Gremio, um anno depois da morte do paizagista. Todos os dias, em frente do quadro, os visitantes deixavam o tapete coberto de flores.  (1)


(1) Manuel Penteado, Silva Porto, Serões n.º 6, dezembro de 1905  [ilustram o artigo as seguintes gravuras: Amor na aldeia, Á porta da venda, pertencente a Sua Magestade a Rainha; Cabeça de camponeza, pertencente a S. M. El-Rei; A salmeja, pertencente a S. M. El-Rei; Rapariga dobando, pertencente ao sr. Ferreira das Neves; Azenha no Minho, pertencente ao sr. A. Torres Pereira; Conduzindo o rebanho, pertencente ao sr. conde do Ameal; A volta do mercado, pertencente á familia Anjos; O moinho do Gregório, pertencente ao sr. H. Pinho da Cunha; Ceifeiras, pertencente ao sr. conde do Ameal; Casa minhota, pertencente á Sociedade Nacional de Bellas-Artes; Macieiras em flor, pertencente á Sociedade Nacional de Bellas-Artes; Campinhos, pertencente a S. M. a Rainha Senhora D. Maria Pia]

Artigo relacionado:
António Carvalho da Silva Porto, breve roteiro

Informação relacionada:
Catalogo dos trabalhos de Silva Porto expostos na Escola de Bellas-Artes de Lisboa, em junho de 1894, Lisboa, Typ. Franco-Portugueza, 1894

Temas:
Grupo do Leão
Pintura

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