domingo, 10 de maio de 2020

Fado V (recolha em História da poesia e Cancioneiro popular)

Em Portugal é outra a causa; pobre nacionalidade morta, é a túnica sobre que pairam os dados. Triste presentimento, tristíssimo, tanto mais, quanto se apossa de uma alma ainda crente no meio da corrupção deste pequeno Baixo Império. Colligir a poesia popular portugueza agora, no momento do transe, é como a garrafa ao mar que se atirava nos naufrágios: é para que se saiba que existiu este povo que também soffreu e cantou [...]  (1)

Fado, como a xacara moderna, em que a acção senão tira da vida heróica, é uma narração detalhada e plangente dos successos vulgares, que entretecem o existir das classes mais baixas da sociedade. 

Ha o "fado do marujo", "da Severa", "do Soldado", e o "do Degradado" que se despede das moças da vida. 

Tem o fado a continuidade do descante, seguindo fielmente uma longa narrativa, entremeada de conceitos grosseiros e preceitos de moralidade com uma forma dolorosa, observação profunda na descripção dos feitos, graça despretenciosa, com uma monotonia de metro e de canto, que infunde pesar, principalmente na mudez ou no ruido da noite, quando os sons sáeim confusos do fundo das espeluncas, ou misturados com os risos dos lupanares. rythmo do canto é notado com o bater do pé e com desenvoltos requebros; a dança e a poesia auxiliam-se no que se chama bater o fado. 

Dos caracteres que temos apontado, principalmente do narrativo, é que vem o nome a esta forma, de Fado ou "facto"; a canção de gesta da edade media, acompanhando as transformações sociaes tornou-se o Fado moderno. Da côr sensível de fatallidade, que ha na poesia do povo, pareceria talvez provir o nome á forma que mais se inspira d'esse sentimento. É uma analogia falsa. 

Chama-se "fadista" ao vagabundo nocturno que anda modulando essas cantigas; nome que vem do velho francez "Fatiste", poeta, que Edelestand du Méril pretende que tivesse vindo do islandez "fata", vestir, em vez do grego phatisein, que suppõe tradição erudita de mais para se tornar popular. (2)

Caricatura do typo fadista no cortejo
com que os estudantes da Escola Polytechnica de Lisboa
celebraram a publicação do "Decreto do cuspo".
cf. Alberto Pimentel, A triste canção do Sul, 1904.
Fadistas

Tudo quanto o fado inspira
E o que só me entretem; 

Pois quem do fado se tira 
Não sabe o que é viver bem. 

Eu heide morrer no fado, 
Seguir os destinos seus; 
O chinfrim será meu brado, 
A banza será meu Deos. 

Se o padre santo soubesse 
O gosto que o fado tem, 
Viera de Roma aqui 
Bater o fado também. 

Fado da Severa 
(Versão de Coimbra) 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que uma fadista morreu; 
Hoje mesmo faz um anno, 
Que a Severa falleceu.

O Conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
A tua Severa morreu.

Corre á sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
"Adeos, oh minha Severa,
Bôa sorte Deos te dê!

Lá n’esse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos Anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.

Até o proprio Sam Pedro
Á porta do céo sentado,
Ao ver entrar a Severa,
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um signal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O fado perdeu seu rumo."

Morreu, já faz hoje um anno
Das fadistas a rainha,
Com ella o fado perdeu
O gosto que o fado tinha.

Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou.

Fado do marujo
(Versão de Coimbra)

Triste vida a do marujo,
Qual d’ellas a mais cansada;
Por uma triste soldada
Passa tormentos! [Bis]

Andar á chuva e aos ventos
Quer de verão, quer de inverno;
Parecem o proprio inferno
As tempestades!

As nossas necessidades
Obrigam a navegar,
E a passar tempos no mar,
E aguaceiros.

Passam-se dias inteiros
Sem se poder cosinhar;
Nem tão pouco mal assar
Nossa comida!

Arrenego de tal vida,
Que nos dá tanta canseira!
Sem a nossa bebedeira
Nós não passamos!

Quando socegado estamos
No rancho a descansar,
Então é que ouço gritar:
Oh leva arriba!

O mestre logo se estriba,
Bradando d esta maneira :
"Moços, ferra a cevadeira
E o joanete."

Também dá o seu falsete
Não podendo mais gritar:
"Cada qual ao seu logar
Até ver isto!"

Mais me valera ser visto
Á porta de um botequim,
Do que vêr agora o tim
Da minha vida!

Quando parece comprida
A noite p’ra descançar,
Então é que ouço tocar
Certa matraca.

O somno logo se atraca,
Meu coração logo treme,
Em cuidar que heide ir ao leme
Estar duas horas.

Lembram-me certas senhoras
Com quem eu tratei em terra.
Que me estão fazendo guerra
Ao meu dinheiro.

Foi um velho marinheiro,
Que inventou esta cantiga;
Embarcado toda a vida
Sem ter dinheiro. (3)


(1) Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga
(2) História da poesia popular portuguesa por Theophilo Braga
(3) Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga

Sem comentários: