quarta-feira, 13 de maio de 2020

Fado VI (recolha em História do Fado)

Os lisboetas de 1792 — principalmente a caixeirada de mercadores e capellistas — acompanhados de rascòas, batiam de sege para os festins bem pagodeados na casa de pasto de Bellas e para as bambochatas nos retiros de Sete Rios e das Larangeiras, onde se batoteava forte, principalmente com os "ofliciaes de gaveta" conforme os arrieiros alcunhavam os caixeiros que sizavam os patrões.

O fado, José Malhoa, 1910.
Wikipédia

Mas a guitarra não tinha logar n'essas pandegas descabelladas. 

Os lisboetas de 1807 continuaram a tradição das patuscadas em Bellas; e os de 1820 limitavam as suas diversões campestres ás batidas de tipóia para esta localidade — que frequentavam em com panhia das michelas de jozésinho de baetão verde, vestido de chita riscada e leuço branco na cabeça e ás burricadas na Oulra-Banda ou para Loures e Lumiar, onde iam vêr a quinta do marquez de Angeja, (hoje propiiedade dos duques de Palmella). 

A guitarra, porém, continuava a brilhar pela ausência. Nas frescatas e nas hortas dos arredores da Lisboa de 1833, guilarreavam-se modinhas [...]

Repetimos que, entre o fadista de 1848, o de 1860 e o de hoje. ha apenas differenças superficiaes, porque a sua fadislite aguda, o seu nervosismo feroz, têem resistido obstinadamente ás investidas tenazes da civilisação. E se o falante de 1848 cantava todo ancho:

O fadista que é fadista,
A geito o ferro manobra,
Mettendo mào aos arames
Dá facada como cobra,

o da actualidade ainda nos vem dizer com uma insondável expressão de guapice: 

Tenho sina de morrer
Na ponta d'uma navalha,
Toda a vida ouvi dizer:
— Morra o homem na batalha!

...

Entre as quadras attribuidas ao estro da Severa, havia as seguintes: 

A Chicória do Sarmento, 
Que bate o fado tão bem, 
Quando "toureia" o Sedvem, 
Chora de contentamento.

Ó D. José cavalleiro, 
Toma sentido na bolla! 
Pode fazer te em patola 
Qualquer fino boi matreiro! 

P'ra mim, o supiemo gozo 
É bater o fado liró, 
E vêr combater c'um boi só 
O conde do Vimioso.

...

N'este manuscripto lia uma decima anonyma dirigida a versas personalidades da epocha.

Voluntária ao Voluntário 
A Ratinha se apegou, 
Dircea aos esses tornou 
Do seu antigo fadario.
A Sal ma ao Secretario 
Deixa pelo Picador, 
D. Izabel, seu amor,
Muda do Papinha ao Papa,
D. Ritta os olhos tapa, 
Villanova faz furor.

...

O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
Le Portugais, Georges Braque, 1911.
Wikipédia; WikiArt
A guitarra, dizem os methodos de ensino, admitte cinco afinações: a afinação natural, a afinação natural com quarta (muito empregada para acompanhamentos), a afinação do fado, a afinação transportada (afinação mais baixa meio tom) e a afinação do violão. 

Mas as afinações que propriamente lhe competem são a natural e a do fado, sendo preferivel a ultima. Os tocadores antigos, os tocadores do lidimo fado, executavam-n'o em ré menor. E, circumstancia a notar, antigamente o cantador não se acompanhava a si mesmo, mas fazia se sempre acompanhar de um guitarrista. 

Os dedos ágeis do tocador corriam rapidamente sobre as cardas da guitarra e davam vôo ao pensamento harmonioso dos auctores dos fados, emquanto as rimas do cantador batiam azas. Hoje, quasi sempre o cantador se acompanha a si proprio.

A voz para cantar o fado é uma voz inclassificável, sui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao jugo lyrannico dos methodos de canto, uma voz que não se subordina aos dietames cathedraticos dos professores do Conservatório. 

E ahi está o motivo porque o Tamagno ou a Palli poderiam fazer fiasco cantando o fado ao pé do Serrano ou da Albertina. E eis ahi a razão por que um interprete de uma partitura deliquescente de Puccini ou de uma partitura descriptiva de Wagner pregaria um estenderete raso, se quizesse antar o fado da Severa ou o fado do João Black.

As primeiras trovas do fado, devidas á mechanina espiritual do povo, eram em quadras; depois usaram-se em quadras glosadas e em decimas; e ultimamente, com o fado modernista, empregam se de novo as quadras e também as quintilhas. Ofado principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, impro- visados à la va comme je te polisse, de que damos as amostras seguintes:

Ulysses era brejeiro,
Era o pae da brejeirada 
Era um bom sapateiro, 
Trabalhava n'uma escada. 

Encontrei Frei João
N'uma manhã de geada,
Com um instrumento na mão, 
Vinha a ser uma guitarra. 

O coelho é manhoso,
Dorme c'os olhos abertos,
Eu durmo c'os meus fechados, 
Porque tenho amores certos.

Na cabana do Zé do Sacho 
Ha uma cruz de madeira,
E n'ella um Christo pregado, 
Feito de pau de gingeira.

Muitos me chamam Antonio, 
E eu Antonio não sou,
O meu nome não é este,
Foi alguém que m'o trocou.

...

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910.
WikiArt; Wikipédia
O fado mais antigo é o fado do marinheiro. Segue-se-lhe o fado corrido, que parece ter sido o primeiro modelado por aquelle, e que se cifra na execução do acompanhamento, sem variações. 

Quando o fado não é tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bordam sobre elle os arabescos da sua phantasia musical, arrancam ao instrumento variações que percorrem toda a gamma chromatira dos extases amorosos, das idealidades scismadoras, dos affectos jubilatorios. 

A primeira mulher que tocou o fado corrido na guitarra foi a Manasinha, catraia da Madragòa em 1850. Foi ella que o ensinou ao cantador Paixão, o primeiro também que tocou o fado corrido na guitarra. 

Ao fado corrido segue-se o fado da Cotovia, cuja lettra desconhecemos. Depois, vem o primeiro fado de Pedrouços, original de A Branco, composto em 1849, e o fado choradinho, anterior a 1850, que serviu de modelo a outros fados. Este fado canta-se com os versos seguintes: 

Quem tiver filhas no mundo 
Não fale das desgraçadas. 
Porque as filhas da desgraça 
Também nasceram honradas. 

Não sei que quer a desgraça 
Que atraz de mim corre tanto; 
Hei de parar e mostrar-lhe 
Que de vêl-a não me espanto.

Fui encontrar a desgraça 
Onde os mais acham prazer; 
Amor, que dá vida a tantos, 
Só a mim me faz morrer. 

Das filhas da desventura 
Devemos ter compaixão, 
São mulheres como as mais, 
Filhas de Eva e de Adão. 

Eu quero bem á desgraça, 
Que sempre me acompanhou, 
Mão pcsso amar a ventura, 
Que irem cedo me deixou. 

Eu fui a mais desgraçada 
Das filhas da minha mãe, 
Todas tem a quem se cheguem,' 
Só eu não tenho ninguém. 

Debaixo do frio chão, 
Onde o sol não tem entrada, 
Abra se uma sepultura, 
Finde o fado a desgraçada. 

E Deus que tudo perdoa, 
E a VIrgem Nossa Senhora, 
Hão de ouvir a alma que implora 
Salvação á peccadora.

...

Le Portugais, Georges Braque, 1911.
WikiArt
Depois d'esles fados, apparece o fado da Severa, que remonta aos meiados do século xix, porque foi com posto em tempo da mulher que llhe deu o titulo, e que, como vimos, morreu anleriormenle a 1850. 

Attribuem a paternidade d'este fado ao Sousa do Casarão. Os collectors do Cancioneiro de musicas populares consideram-n'o como o lypo primordial dos fados populares lamentosos. 

A versão coimbrã do fado da Severa, recolhida e publicada pelo sr. Theophilo Braga a paginas 140 do seu Cancioneiro Popular, é como se segue:

Chorae, fadistas, chorae,
Que uma fadista morreu;
Hoje mesmo faz um anno,
Que a Severa falleceu.

O Conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
A tua Severa morreu.

Corre á sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
"Adeos, oh minha Severa,
Bôa sorte Deos te dê!

Lá n’esse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos Anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.

Até o proprio Sam Pedro
Á porta do céo sentado,
Ao ver entrar a Severa,
Bateu e cantou o fado.

Ponde no braço da banza
Um signal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O fado perdeu seu rumo.

Morreu, já faz hoje um anno
Das fadistas a rainha,
Com ella o fado perdeu
O gosto que o fado tinha.

Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou.

Mas o Cancioneiro de musicas populares insere este:

Quando lhe foram dizer: 
Maria Severa morreu! 

Chorae, fadistas, chorae, 
Que a Severa já morreu, 
Fadista como ella 
Nunca o fado couheceu! 

Conhecemos mais uma quadra com variantes, publicada pelo sr. Visconde de Castilho na Lisboa Antiga:

Ponde no braço da banza 
Um laço de negro fumo,
E este signal diga a todos: 
Que o fado perdeu o rumo!

A Severa — cuja memoria fulge atravez dos annos com o tremor luminoso de um astro — excitou a veia poética popular, ha ainda mais as dez quadras seguintes, abusivas á Severa, sendo as duas primeiras publicadas pelo sr. visconde de Castilho na Lisboa Antiga e as oito ultimas recolhidas da tradiç-ão oral:

Assim como as flores vivem 
Minha Severa viveu,
Assim eoino as flores morrem 
Minha Severa morreu.

Levantae lhe um mausoléu 
Co'um negro cypreste ao lado, 
E o epitaphio que diga: 
"Aqui jaz quem soube o fado" 

Quando a Severa falleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lagrimas:
Morreu o mimo do fado!

Severa, linda Severa,
Foste a princeza do fado,
Foi o que Vimioso ouviu 
'ma manhã quando sergueu. 

Eu vou cantar a Severa 
N'esta bella occasião;
O seu fado é d'encantar 
Vae direito ao coração. 

O fado da Severa tem outro que o completa, o fado do Vimioso. Este pertence, evidentemente, a época posterior, mas inserimil-o aqui por ser o complemento d'aquelle. É formado de dezoito quadras: 

Quem lhe vê a fãce morena, 
Quem vê seus olhos tyrannos, 
Nada vê que mais captive, 
Ainda que viva mil annos. (1)


(1) Historia do fado

Leitura relacionada:
Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga

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