O fado, José Malhoa, 1910. Wikipédia |
Mas a guitarra não tinha logar n'essas pandegas descabelladas.
Os lisboetas de 1807 continuaram a tradição das patuscadas em Bellas; e os de 1820 limitavam as suas diversões campestres ás batidas de tipóia para esta localidade — que frequentavam em com panhia das michelas de jozésinho de baetão verde, vestido de chita riscada e leuço branco na cabeça e ás burricadas na Oulra-Banda ou para Loures e Lumiar, onde iam vêr a quinta do marquez de Angeja, (hoje propiiedade dos duques de Palmella).
A guitarra, porém, continuava a brilhar pela ausência. Nas frescatas e nas hortas dos arredores da Lisboa de 1833, guilarreavam-se modinhas [...]
Repetimos que, entre o fadista de 1848, o de 1860 e o de hoje. ha apenas differenças superficiaes, porque a sua fadislite aguda, o seu nervosismo feroz, têem resistido obstinadamente ás investidas tenazes da civilisação. E se o falante de 1848 cantava todo ancho:
O fadista que é fadista,
A geito o ferro manobra,
Mettendo mào aos arames
Dá facada como cobra,
o da actualidade ainda nos vem dizer com uma insondável expressão de guapice:
Tenho sina de morrer
Na ponta d'uma navalha,
Toda a vida ouvi dizer:
— Morra o homem na batalha!
...
Entre as quadras attribuidas ao estro da Severa, havia as seguintes:
A Chicória do Sarmento,
Que bate o fado tão bem,
Quando "toureia" o Sedvem,
Chora de contentamento.
Ó D. José cavalleiro,
Toma sentido na bolla!
Pode fazer te em patola
Qualquer fino boi matreiro!
P'ra mim, o supiemo gozo
É bater o fado liró,
E vêr combater c'um boi só
O conde do Vimioso.
...
N'este manuscripto lia uma decima anonyma dirigida a versas personalidades da epocha.
Voluntária ao Voluntário
A Ratinha se apegou,
Dircea aos esses tornou
Do seu antigo fadario.
A Sal ma ao Secretario
Deixa pelo Picador,
D. Izabel, seu amor,
Muda do Papinha ao Papa,
D. Ritta os olhos tapa,
Villanova faz furor.
...
O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910. Le Portugais, Georges Braque, 1911. Wikipédia; WikiArt |
Mas as afinações que propriamente lhe competem são a natural e a do fado, sendo preferivel a ultima. Os tocadores antigos, os tocadores do lidimo fado, executavam-n'o em ré menor. E, circumstancia a notar, antigamente o cantador não se acompanhava a si mesmo, mas fazia se sempre acompanhar de um guitarrista.
Os dedos ágeis do tocador corriam rapidamente sobre as cardas da guitarra e davam vôo ao pensamento harmonioso dos auctores dos fados, emquanto as rimas do cantador batiam azas. Hoje, quasi sempre o cantador se acompanha a si proprio.
A voz para cantar o fado é uma voz inclassificável, sui generis, com modulações e inflexões não sujeitas ao jugo lyrannico dos methodos de canto, uma voz que não se subordina aos dietames cathedraticos dos professores do Conservatório.
E ahi está o motivo porque o Tamagno ou a Palli poderiam fazer fiasco cantando o fado ao pé do Serrano ou da Albertina. E eis ahi a razão por que um interprete de uma partitura deliquescente de Puccini ou de uma partitura descriptiva de Wagner pregaria um estenderete raso, se quizesse antar o fado da Severa ou o fado do João Black.
As primeiras trovas do fado, devidas á mechanina espiritual do povo, eram em quadras; depois usaram-se em quadras glosadas e em decimas; e ultimamente, com o fado modernista, empregam se de novo as quadras e também as quintilhas. Ofado principiou por se cantar com versos ingenuamente populares, impro- visados à la va comme je te polisse, de que damos as amostras seguintes:
Ulysses era brejeiro,
Era o pae da brejeirada
Era um bom sapateiro,
Trabalhava n'uma escada.
Encontrei Frei João
N'uma manhã de geada,
Com um instrumento na mão,
Vinha a ser uma guitarra.
O coelho é manhoso,
Dorme c'os olhos abertos,
Eu durmo c'os meus fechados,
Porque tenho amores certos.
Na cabana do Zé do Sacho
Ha uma cruz de madeira,
E n'ella um Christo pregado,
Feito de pau de gingeira.
Muitos me chamam Antonio,
E eu Antonio não sou,
O meu nome não é este,
Foi alguém que m'o trocou.
...
Le Portugais, Georges Braque, 1911. O Fado (detalhe), José Malhoa, 1910. WikiArt; Wikipédia |
Quando o fado não é tocado para acompanhar o canto, os guitarristas bordam sobre elle os arabescos da sua phantasia musical, arrancam ao instrumento variações que percorrem toda a gamma chromatira dos extases amorosos, das idealidades scismadoras, dos affectos jubilatorios.
A primeira mulher que tocou o fado corrido na guitarra foi a Manasinha, catraia da Madragòa em 1850. Foi ella que o ensinou ao cantador Paixão, o primeiro também que tocou o fado corrido na guitarra.
Ao fado corrido segue-se o fado da Cotovia, cuja lettra desconhecemos. Depois, vem o primeiro fado de Pedrouços, original de A Branco, composto em 1849, e o fado choradinho, anterior a 1850, que serviu de modelo a outros fados. Este fado canta-se com os versos seguintes:
Quem tiver filhas no mundo
Não fale das desgraçadas.
Porque as filhas da desgraça
Também nasceram honradas.
Não sei que quer a desgraça
Que atraz de mim corre tanto;
Hei de parar e mostrar-lhe
Que de vêl-a não me espanto.
Fui encontrar a desgraça
Onde os mais acham prazer;
Amor, que dá vida a tantos,
Só a mim me faz morrer.
Das filhas da desventura
Devemos ter compaixão,
São mulheres como as mais,
Filhas de Eva e de Adão.
Eu quero bem á desgraça,
Que sempre me acompanhou,
Mão pcsso amar a ventura,
Que irem cedo me deixou.
Eu fui a mais desgraçada
Das filhas da minha mãe,
Todas tem a quem se cheguem,'
Só eu não tenho ninguém.
Debaixo do frio chão,
Onde o sol não tem entrada,
Abra se uma sepultura,
Finde o fado a desgraçada.
E Deus que tudo perdoa,
E a VIrgem Nossa Senhora,
Hão de ouvir a alma que implora
Salvação á peccadora.
...
Le Portugais, Georges Braque, 1911. WikiArt |
Attribuem a paternidade d'este fado ao Sousa do Casarão. Os collectors do Cancioneiro de musicas populares consideram-n'o como o lypo primordial dos fados populares lamentosos.
A versão coimbrã do fado da Severa, recolhida e publicada pelo sr. Theophilo Braga a paginas 140 do seu Cancioneiro Popular, é como se segue:
Chorae, fadistas, chorae,
Que uma fadista morreu;
Hoje mesmo faz um anno,
Que a Severa falleceu.
O Conde de Vimioso
Um duro golpe soffreu,
Quando lhe foram dizer
A tua Severa morreu.
Corre á sua sepultura,
O seu corpo ainda vê:
"Adeos, oh minha Severa,
Bôa sorte Deos te dê!
Lá n’esse reino celeste,
Com tua banza na mão,
Farás dos Anjos fadistas,
Porás tudo em confusão.
Até o proprio Sam Pedro
Á porta do céo sentado,
Ao ver entrar a Severa,
Bateu e cantou o fado.
Ponde no braço da banza
Um signal de negro fumo,
Que diga por toda a parte
O fado perdeu seu rumo.
Morreu, já faz hoje um anno
Das fadistas a rainha,
Com ella o fado perdeu
O gosto que o fado tinha.
Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa se finou;
O gosto que tinha o fado
Tudo com ella acabou.
Mas o Cancioneiro de musicas populares insere este:
Quando lhe foram dizer:
Maria Severa morreu!
Chorae, fadistas, chorae,
Que a Severa já morreu,
Fadista como ella
Nunca o fado couheceu!
Conhecemos mais uma quadra com variantes, publicada pelo sr. Visconde de Castilho na Lisboa Antiga:
Ponde no braço da banza
Um laço de negro fumo,
E este signal diga a todos:
Que o fado perdeu o rumo!
A Severa — cuja memoria fulge atravez dos annos com o tremor luminoso de um astro — excitou a veia poética popular, ha ainda mais as dez quadras seguintes, abusivas á Severa, sendo as duas primeiras publicadas pelo sr. visconde de Castilho na Lisboa Antiga e as oito ultimas recolhidas da tradiç-ão oral:
Assim como as flores vivem
Minha Severa viveu,
Assim eoino as flores morrem
Minha Severa morreu.
Levantae lhe um mausoléu
Co'um negro cypreste ao lado,
E o epitaphio que diga:
"Aqui jaz quem soube o fado"
Quando a Severa falleceu,
O Vimioso adorado
Disse, vertendo lagrimas:
Morreu o mimo do fado!
Severa, linda Severa,
Foste a princeza do fado,
Foi o que Vimioso ouviu
'ma manhã quando sergueu.
Eu vou cantar a Severa
N'esta bella occasião;
O seu fado é d'encantar
Vae direito ao coração.
O fado da Severa tem outro que o completa, o fado do Vimioso. Este pertence, evidentemente, a época posterior, mas inserimil-o aqui por ser o complemento d'aquelle. É formado de dezoito quadras:
Quem lhe vê a fãce morena,
Quem vê seus olhos tyrannos,
Nada vê que mais captive,
Ainda que viva mil annos. (1)
(1) Historia do fado
Leitura relacionada:
Cancioneiro popular colligido da tradição por Theophilo Braga
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