Alfredo Marceneiro. Mundo Grafico n.° 60, 31 de março de 1943 |
Nasceu em Lisboa este popular e apreciado cantador de Fado que, como seu irmão Julio Duarte, o começou cantando desde muito novo, em várias casas particulares e festas de beneficência, nas quais era convidado a tomar parte por outros cantadores da velha guarda que muito apreciavam a sua voz e começavam a vêr nôle um genuíno fadista de alma e coração.
Agradando sempre, Alfredo Duarte nunca faltava então a êsses benefícios, ao tempo chamados "Veladas sociais", e assim começou a impôr-se como cantador dos mais apreciados, bastando o seu nome no programa de qualquer festa de Fado para atrair o público.
É curioso registar porque lhe chamam, geralmente, Alfredo "Marceneiro", sendo o seu verdadeiro nome Alfredo Rodrigo Duarte.
De facto, o nosso biografado exerce a profissão de marceneiro, e foi em 1930, numa festa promovida pelo cantador e poeta popular Manuel Soares (do Intendente), no Club Montanha e em homenagem aos cantadores Alfredo dos Santos "Correeiro" e José "Bacalhau" que éle se tornou conhecido por Alfredo "Marceneiro". Convidado a tomar parte nessa festa e não sabendo a comissão organizadora como havia de anunciá-lo, pois sómente sabia que éle era Alfredo e marceneiro, Manuel Soares remediou o caso, lembrando que o anunciassem Alfredo "Marceneiro", o que não pareceria estranho numa festa em que também cantava um Alfredo "Correeiro"...
E assim Alfredo Duarte, agradando extraordinariamente nessa festa como já havia acontecido em tantas outras, ficou sendo conhecido por Alfredo "Marceneiro".
Alfredo Marceneiro. A. Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, 1937 |
Levado pelo velho fadista Monteiro ou na companhia de outros cantadores da velha guarda, Alfredo Duarte cantou muita vez nos retiros do Caliça, Bacalhau, José dos Pacatos e no Romualdo, acompanhado à guitarra pelo dr. Borges de Sousa e Carlos da Maia, com a assistência da melhor sociedade. Foi ali que cantou pela primeira vez a sua "marcha", acompanhado à guitarra por aquele ilustre médico.
Cantou no Teatro de S. Luiz, no Teatro Avenida, no Coliseu dos Recreios (na peça "História do Fado", do distinto poeta Avelino de Sousa), Apolo, Eden-Teatro (numa festa organizada pelo actor Almeida Cruz), no Capitólio, Politeama, Maria Vitória, Clube Olímpia e outros, tendo cantado ultimamente no Retiro da Severa, Solar da Alegria, Café Mondego e em várias festas de homenagem a colegas seus e récitas de beneficência.
Tem nove discos gravados e é autor das seguintes músicas : "Marcha Alfredo Marceneiro", "Fado do Cravo", "Fado do Louco", "Fado Alexandrino", "Lembro-me de ti", "Fado Pierrot", "Fado Maria dos Anjos", "Fado Bailarico", "Fado da minha guitarra" e "Fado Pagem". O Fado da opereta "Pão de Ló", conhecido por "Fado do Soldado", foi inspirado num dos seus fados. Alfredo Duarte conhece todas as nossas províncias, tendo feito uma digressão artística com Ercília Costa [v. artigo dedicado], Alberto Costa e Rosa Costa [v. artigo dedicado].
Troupe Guitarra de Portugal. Em pé: João Fernandes, Rosa Costa e Santos Moreira. Sentados: Alfredo D. Marceneiro, Ercília Costa e Alberto Costa. Fadoteca |
Em 1922, com Alfredo dos Santos "Correeiro", cantou uma noite no "João das Velhas", a pedido da notável actriz Vera Vergani que ali se encontrava a cear com a actriz Loiza Satanela, o ilustre poeta Silva Tavares, os actores Estevam Amarante, Nascimento Fernandes e Manuel Santos Carvalho, tendo sido, como aquele seu colega, delirantemente aplaudido.
Em 1924, tomando parte num concurso de fados organizado no Coliseu dos Recreios pelo emprezário Artur Emauz, e no qual o seu colega João Maria dos Anjos ganhou uma medalha de ouro, foi contractado por um mês para cantar o Fado no Chiado-Terrasse.
Alfredo Duarte possue também uma medalha de ouro ganha num concurso de fados realizado há anos, no Sul-America, na rua da Palma; e uma taça de prata que lhe foi Conferida por votação do público, numa festa de homenagem ao pugilista Francisco de Brito (Britinho), realizada no Teatro Joaquim de Almeida, em 1929.
Cantou em diversas festas organizadas pelo Clube Tauromáquico, num passeio fluvial e numa jornada ao Tamariz e ao Casino Estoril, promovidos por um dos sócios daquele Clube, e numa festa oferecida pelo banqueiro Ricardo Espirito Santo à embaixada alemã, na qual cantaram também os seus colegas Ercília Costa, Filipe Pinto e Jaime Duarte, acompanhados pelo guitarrista Armando Augusto Freire ("Armandinho") e pelo violisla Martinho de Assunção.
Há duas passagens interessantes na vida fadista do nosso biografado, que não deixamos de relatar: Quando a popular e aplaudida cantadeira Ercília Costa eslava no Hospital de Santo António dos Capuchos onde sofrera uma operação cirúrgica, Alfredo Duarte, regressando altas horas da noite duma festa de beneficência na Escola 1, na companhia duns amigos, não obstante já ser proibido terminantemente cantar o Fado em serenatas, não resistiu à tentação e, pedindo aos seus amigos que vigiassem as embocaduras das ruas, não surgisse algum policia ou guarda nocturno, cantou um dos seus mais enternecidos fados, em homenagem àquela sua colega.
Uma outra ocasião, estando a cantar o Fado no Clube Olímpia, varreu-se-lhe da memória os versos finais da última décima. Enervado, parou subitamente de cantar e desculpou-se, indo sentar-se, aborrecido, a um canto da sala.
Minutos depois, recebia de Silva Tavares, Amadeu do Vale e Carlos Dubini, que se encontravam a uma mesa, um cartão com a seguinte quadra que ele conserva como recordação dessa noite:
Alfredo, a lua memória,
Falha-te, embora resistas,
Mas has-de ficar na História
Como o maior dos fadistas.
Também como noite memorável entre tantas que marcam na sua carreira de cantador, Alfredo Duarte descreve-nos a que mais o impressionara:
Já havia terminado uma festa de Fado em que ele e alguns dos mais aplaudidos cantadores haviam tomado parte, no Parque Mayer, quando ali apareceram o dr. António Menano e o cavaleiro D. Ruy da Camara, que iam propositádamente para ouvir a sua colega Maria Emilia Ferreira. Uma parte do público já havia saído, e Alfredo Duarte conversava à porta com alguns amigos, refugiado na sua caracleristica modéstia. Acedendo ao pedido daqueles, Maria Emilia Ferreira cantou primorosamente como sempre um dos seus fados castiços, e logo o dr. António Menano retribuiu, deliciando a assistência com a sua linda voz num dos seus notáveis fados-canções. Quando acabou, alguém lhe disse e a D. Ruy da Câmara, que o Alfredo "Marceneiro" ainda se encontrava ali. Solicitado imediatamente por êles, Alfredo Duarte acedeu, cantando num fado da sua autoria "O pintor", letra do poeta popular Henrique Rêgo. Ao terminar, alvo duma carinhosa ovação, ouviu o dr. António Menano dizer, aplaudindo-o ainda entusiásticamente:
— O que êste homem cantou com tanto sentimento estava eu a vêr! É um grande fadista!
Foi esta, segundo Alfredo Duarte nos diz, a noite que, até hoje, melhor gravou no seu espirito. Por ser aquela letra, do seu vasto e escolhido repertório, uma das que Alfredo Duarte mais aprecia, com a sua transcrição vamos concluir os dados biográficos dêste popular e aplaudido cantador.
O pintor
Mote
Encostado sem brio ao balcão da taberna,
De nauseabunda côr e tábua carcomida,
O bêbado pintor co'o lápis desenhou
O retrato fiel duma mulher perdida.
Glosas
Era noite invernosa e o tento desabrido
Num louco galopar ferozmente rugia,
Vergastando os pinhais, pelos campos corria,
Como um triste grilheta ao degredo fugido.
Num antro pestilento, infame e corrompido,
Imagem de bordel, cenário de caverna,
Vendia-se veneno à luz duma lanterna
À turba que se mata, ingerindo aguardente,
Estava um jovem pintor, atrofiando a mente,
Encostado sem brio ao balcão da taberna.
Rameiras das banais, num doido desafio,
Exploravam do artista a sua magra féria,
E êle na embriaguês do vinho e da miséria,
Cedia ás tentações daquele mulherio.
Nem mesmo a própria luz, nem mesmo o próprio frio,
Daquele vasadouro onde se queima a vida,
Faziam incutir à corja pervertida.
Um sentimento, bom d'amor e compaixão,
P'lo ébrio que encostava a fronte ao vil balcão,
De nauseabunda côr e tábua carcomida.
Impudica mulher, perante o vil bulício
De copos telintando e de boçais gracejos,
Agarrou-se ao rapaz, cobrindo-o de beijos,
Perguntando a sorrir qual era o seu oficio;
Ele a cambalear, fazendo um sacrifício,
Lhe diz a profissão em que se iniciou,
Ela escutando tal, pedindo-lhe, alcançou
Que então lhe desenhasse o rosto provocante,
E num sujo papel, o rosto da bacante
O bêbado pintor com um lápis desenhou.
Retocou o perfil e por baixo escreveu,
Numa legível letra o seu modesto nome,
Que um ébrio esfarrapado, com o rosto cheio de fome.
Com voz rascante e rouca à desgraçada leu.
Esta, louca de dor, para o jovem correu,
E beijando-lhe o rosto, abraça-o de seguida...
Era a mãi do pintor, e a turba comovida,
Pasma ante aquele quadro original, estranho,
Enquanto o pobre artista amarfanha o desenho:
O retrato fiel duma mulher perdida. (2)
(1) Norberto de Araújo cf. Alfredo Marceneiro, aqui mora o fado
(2) A Victor Machado, Ídolos do fado, Lisboa, Tip. Gonçalves, 1937
Leitura relacionada:
Alfredo Marceneiro, aqui mora o fado
Lisboa no Guiness
Redes sociais:
Alfredo Marceneiro 'aqui mora o fado' (fb)
Valdemar Marceneiro 'aqui mora o FADO' (YouTube)
Alfredo Marceneiro (flicker)
Outras referências (em actualização)
O pregão é só um! O artigo é que muda...
Alfredo Marceneiro cf. Alfredo é só fado, RTP 1969
* * *
Os fados de expressão lírica e romântica na discografia de Alfredo Marceneiro (em actualização) :
The Fabulous Marceneiro (1961)
Senhora do monte, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Lembro-me de ti, Linhares Barbosa (1893-1965), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O amor é água que corre, Augusto de Sousa, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Mocita dos caracóis, Linhares Barbosa (1893-1965)
A viela, Guilherme Pereira da Rosa, Fado cravo, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Ironia, Armando Neves (1899-1944), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A casa da Mariquinhas, Silva Tavares (1893-1964), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Amor De Mãe, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A Menina Do Mirante, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Andrade Ferreira, José Maria de, Revista contemporanea de Portugal e Brazil, n° 4, Vol. III, 1861
O lenço, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O bêbedo pintor, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Leilão, Linhares Barbosa (1893-1965)
Bairros de Lisboa (v. 2006), Carlos Conde (1901-1981), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes e depois (v. 2006)
A camponesa e o pescador (v. 2006), Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes e depois (v. 2006)
A minha freguesia (v. 2006)
Antes e depois (versão alternativa, v. 2006)
Há Festa Na Mouraria (1965)
Há festa na Mouraria, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado balada, Silva Tavares (1893-1964), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Orfãzita
Despedida, Carlos Conde (1901-1981), Fado cravo, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Os velhinhos, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Colchetes d'oiro , Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Marceneiro
Fado laranjeira, Júlio César Valente, Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Empate dois a dois
Bailado das folhas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O Natal do moleiro, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
As fontes da minha aldeia, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Alfredo Marceneiro e o Fado (1971) [Os Melhores Da Música Portuguesa (2006)]
O pagem
Rainha Santa
Sonho Dourado
Cabaré, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Moinho desmantelado, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Avózinha
Quadras Soltas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Remorso, Linhares Barbosa (1893-1965)
Nos Tempos Em Que Eu Cantava (1972)
Foi na velha Mouraria, Fernando Teles (1891-1958), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Domingo d'agosto
Tricana, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Oh águia, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Depois do Carnaval
Nos tempos em que eu cantava
Café das camareiras, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A minha freguesia
O Pierrot, Linhares Barbosa (1893-1965)
Três tabuletas, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Outros (sem referência discográfica)
Cabelo branco, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Antes que queira não posso, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
A Lucinda camareira, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado bailado, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
O louco, Henrique Rego (1893-1963), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Marcha do Alfredo, Gabriel de Oliveira (1891-1953), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
Fado cravo, Fernando Teles (1891-1958), Alfredo Marceneiro (1888-1982)
É tão bom ser pequenino, Linhares Barbosa (1893-1965)
Janela da vida, Carlos Conde (1901-1981), (1888-1982)
cf. Alfredo Marceneiro, Discogs, Três grandes compositores do fado tradicional
* * *
Poetas populares do fado tradicional
Carlos Harrington (1870-1916)
Avelino de Sousa (1880-1946)
Gabriel de Oliveira (1891-1953)
Fernando Teles (1891-1958)
Silva Tavares (1893-1964)
Linhares Barbosa (1893-1965)
Henrique Rego (1893-1963)
Frederico de Brito (1894-1977)
António Amargo (1895-1933)
Amadeu do Vale (1898-1963)
Armando Neves (1899-1944)
Carlos Conde (1901-1981)
Clemente Pereira (1903-1986)
João da Mata (1906-1947)
Radamanto (1908-1972)
Conde de Sobral (1910-1969)
Domingos Gonçalves Costa (1913-1984)
Artur Soares Pereira (1921-2011)
Maria Manuel Cid (1922-1994)
Lopes Victor (N. 1922)
Moita Girão (1923-2013)
António Vilar da Costa (1924-1988)
Artur Ribeiro (1924-1988)
João Dias (1926-1979)
Jorge Rosa (1930-2001)
Isidoro d’Oliveira (1934-2013)
Manuel Andrade (1944-1966)
cf. Poetas populares do fado tradicional
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