quarta-feira, 6 de maio de 2020

Fado II (recolha em Quadras glosadas, Antonio Bersane Leite, 1804)

Dedicatória à Illma. e Ex.ma Senhora Condeça de Oyenhausen

Marquesa d'Alorna, Franz Joseph Pitschmann, Viena, 1780
Wikipédia
Se o Sol não mandasse ás Plantas 
Amorosos resplendores, 
Pobres Plantas, morrerião
Sem jámais brotarem fiores.

Debil planta he minha Musa,
Tu és o Sol bem feitor,
Que póde, benigna Alcipe,
Dar-lhe alento, e dar-lhe flor.

Tu, que do Monte sagrado
As sagradas Filhas reges,
Que do Téjo os almos Cysnes
Ouves, inspiras, proteges,

Que nas Virtudes és Grande,
Que és das Sciencias o escudo,
Que para gloria de Lysia
Já nasceste Grande em tudo:

Celeste Alcipe, agrilhôa
Os meus Destinos adversos,
Aos pés do teu aureo throno
Acolhe meus rudes versos.

Otoni, e Bocage, ricos…
Do ethéreo Febêo thesouro,
Os seus versos te, oferecêrão
Em brilhantes Aras de ouro:

Bresane he pobre, e mais pobres
Ainda os seus versos são:
Para oferecer-tos formou,
Puro altar do coração,

Mas se Benigna os recebes,
Ao teu escudo seguros,
Hirão á Posteridade,
Calcando os Fados escuros.

Cheios d'Apollo, e de Ti,
Rompendo bravas procellas,
Hirão colocar teu Nome
Muito acima das Estrellas.



Epístola ao Senhor António Bersane Leite [pseud. Tionio, ]

Os Amores ha muito, ha muito as Graças, 
E a Deosa, delles Mái, Mái de teus versos 
Instao que á Patria os dês, que os à Fama.
Tarde cedeu Tionio á voz divina [...]


Manuel Maria de Barbosa de Bocage (detalhe), Henrique Joze da Silva del. Francisco Bartolozzi R. A. sculp.
belas-artes ulisboa

Folguem de Fébo Espíritos mimosos, 
Folga, Tionio, seu querido Alumno: 
"D'entre as Furnas da inveja ou tarde ou cedo
Surge a Gloria em triunfo, e nunca morre".

Bocage



Quadrina I.

Não temo a cruenta Sorte,
Nem imploro o seu favor;
Á Ventura, e á Desgraça
Tenho huma alma superior.

Glosa

Qual zomba do Nóto iroso
Marpesio rochedo duro,
Assim eu firme, e seguro
Zombo do Fado horroroso:
Ou veja o Ceo tenebroso,
Ou em calma, sempre forte,
Tomando a Razão por norte,
E tendo a Virtude ao lado,
Não receio o negro Fado,
Não temo a cruenta Sorte.

Que são Desgraça, e Ventura?
nada são, pois seus efeitos
Durão só em nossos peitos
Quanto a debil vida dura:
Que entorne a Desgraça escura
Sobre mim o pranto, e dor,
Que a Fortuna superior
Dons me prometta a milhares:
Nem me curvo a seus altares,
Nem imploro o seu favor.

Tu me mandas, sã Virtude,
Que eu não mude desta empreza;
Bem qual manda a Natureza
Ao rochedo se não mude:
Já por ti quebrar eu pude
Os laços, que a paixão traça;
Sim, Virtude a tua graça
Faz, por influxo brilhante,
Que eu já mostre igual semblante
Á Ventura, e á Desgraça,

Filosofia, ao clarão
De tuas brilhantes luzes,
Tu me guias, e introduzes,
Nas moradas da Razão:
Alli de meu coração
Me mostras que sou senhor;
Já, graças ao teu favor!
Com hum escudo tão forte,
A Desgraça, ao Fado, á Morte
Tenho huma alma superior.

[...]

IX.

Subi a teu pensamento,
Nunca tão alto subi;
Decahi da tua graça, 
Outro subio, eu desci.

Glosa

Quando ó Marcia, eu suspirava,
Altos bens me promettias,
Quantas vezes me dizias:
Que em teu pensamento estava?
Que alli mesmo Amor formava
Para mim eterno assento?
Que desde o feliz momento,
Em que te jurei fé pura,
Sobre as azas da Ventura
Subi a teu pensamento?

Em lugar tão superiorEu era o mimo do Fado;
Ninguem tão afortunado
Beijou os grilhões de Amor:
Já me esquecia o rigor
Dos tormentos que soffri!
Com que gloria a Amor ouvi
Dizer a Vénus zeloso:
"Mãi nunca fui tão ditoso,
Nunca tão alto subi!"

Tão ufano, ó Nize bella,
Com teus favores me via,
Que os revezes não temia
Da minha inimiga estrella:
Eis que horrísona procella
De improviso o Fado traça!
Fulmina. a mão da Desgraça
Sobre mim ó raio ardente; 
Emfim, Nize , de repente
Decahi da tua graça.

Sim, cruel , me abandonaste;
E com fera tyrannia
Ao lugar, que eu possuia,
Outro feliz elevaste
Mas Amor, a quem faltaste,
Ha de me vingar de ti!
Sentirás, como eu senti,
Entre chammas palpitando,
Os zelos, que soffri, quando
Outro subia, e eu desci.

X.

Esses momentos gostosos,
Que condigo, já passei,
Delles te esquece, tyranna,
Que eu também me esquecerei. (1)


(1) Antonio Bersane Leite, Quadras glosadas, Lisboa, Simão Thaddeo Ferreira, 1804

Informação relacionada:
Historia da litteratura portugueza (Bocage)
A casa onde nasceu Bocage e outras verdades que não pegam

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