Correndo o anno de 1493, instituiu fr. Diogo de Lisboa, religioso trino, no seu convento da Santissima Trindade d'esta corte, uma confraria intitulada das Chagas de Jesus, e composta de maritimos que andavam na carreira da lndia, e das outras nossas possessões de além mar.
Vrbivm praecipvarvm mundi theatrvm qvintvm Georg Braun [Georgio
Braúnio Agrippinate], ao centro (n° 116) a Igreja das Chagas, á esquerda (n° 115) a igreja e convento de Santa Catarina, em baixo Igreja de S. Paulo, Franz Hogenberg (detalhe), 1598.
Imagem: Wikipedia
Rica pelas muitas esmolas de seus numerosos irmãos, floreceu por largos annos esta confraria sob a protecção do instituidor, que por suas letras e virtudes occupou na ordem os cargos de ministro do convento de Lisboa, e de provincial.
Suscitando-se, porém, desintelligencias entre os frades e a irmandade das Chagas, resolveu fr. Diogo fazer edificar egreja propria para a dita confraria.
Escolheu-se para esta fundação o alto do monte sobranceiro ao Tejo, e visinho do outro chamado do Pico, ou "Belveder", onde mais tarde se erigiu a egreja parochial de Santa Catharina por devoção da rainha d'este nome, mulher dei-rei D. João III (foi erecto este templo em 1557, e dois annos depois instituida a parochia).
Caminhou ligeira a obra, porque o zeloso e activo trinitario não descançou emquanto a não viu concluida, dizendo a primeira missa em o novo templo no dia 30 ele novembro de 1542.
Pelos muitos creditos que tinha em Roma, alcançou o fundador uma bulla do papa Paulo III, concedendo à egreja das Chagas as honras de parochia, com permissão de administrar todos os sacramentos aos maritimos, e dando faculdade á irmandade para nomear capellão, e ter contiguo um hospital para os feridos e enfermos das armadas.
Entre outros privilegios mais concedidos pelo mesmo pontifice, e confirmados por bulla de Urbano VIII, de 23 de outubro de 1623, mencionarcmos um muito honorifico, que foi ser annexada a egreja das Chagas à basifica laterancnse de Roma, com isempção do ordinario, segundo as disposições do concilio tridentino.
Fez-se com grande pompa a trasladação da confraria, saindo esta em procissão com mui ricos andores, e musicas, da egreja da Trindade para a das Chagas, no dia e anno acima referidos. Para que se julgue do esplendor d'esta solemnidade, e da importancia e grandeza da confraria, diremos que contava n'esse tempo, e levava n'aquella procissão uns oitocentos irmãos. (1)
Um dos encantos da nossa Lisboa são os sinos; parecem ás vezes marimbas ethéreas tangidas pela mão dos Seraphins. Pois entre os mais agradáveis e crystallinos campanários figura o das Chagas, o dos tão sonoros tão contentes sinos!
Os seus repiques e menuetes choram tristezas fúnebres a quem vai rio a baixo, dizendo adeus, sem saber por quanto tempo, ao esplendido panorama de Lisboa ; sim, mas quantas alegrias não expandiam, ao repicarem, como era seu officio, quando entravam o Tejo as naus da índia ! quando a alvoroçada Lisboa communicava a noticia de casa em casa! quando toda a população corria para a Ribeira!
O relógio é que não gosava de grande reputação, coitado, a julgal-o por um ditado plebeu: "Em mulher de Alfama, homem do mar, relógio das Chagas, não ha que fiar" [...]
Se a voz dos sinos é tão agradável nas Chagas, outra voz mais bella ressoou n'aquella abóbada: foi a do Padre Antonio Vieira em 14 de Setembro de 1642, prégando ali n'uma festa de Santo Antonio. (2)
Não sobresaía a egreja das Chagas em sumptuosidade de construcção, nem em bellezas de arcbitectura, mas sim na riqueza das alfaias e paramentos. Com as offerendas que continuamente lhe faziam os navegadores, com especialidade da India e do Brasil, foi adquiriudo muitas e custosas peças de prata, e paramentos bordados e franjados de oiro com extremada perfeição.
Igreja das Chagas, Grande Panorama de Lisboa Azulejo (detalhe), c. 1700.
Imagem: Flickr
Succedeu, porém o terremoto do 1.° de novembro de 1755, e perdeu-se quasi ludo isto. A egreja arruinou-se aos primeiros abalos, e depois ateou-se n'ella o fogo, que a reduziu a cinzas. Apenas se salvou alguma pouca prata, e quatro imagens santas.
Igreja das Chagas em Vistas panorâmicas de Lisboa antes do terramoto (detalhe), C. Lemprière, 1756.
Foi estabelecer-se provisoriamente a confraria na capella da quinta Nova, a Sete Rios, propriedade então de Bento Gonçalves Forte. Conservou-se ahi até junho de 1756, em que se passou para uma ermida, que mandára construir de madeira no sitio dos Cardaes, na Cotovia, emquanto se procedia á reedificação do seu antigo templo. Assim que este se concluiu, voltou para elle.
A egreja das Chagas está no districto da parochia da Encarnação. Como se ajuizará á vista da gravura que apresentamos, é um templo de modesta architectura no exterior, mas bem ornado interiormente, posto que com singeleza, e sobre tudo notavel pelo seu muito aceio. Os seus rendimentos estão hoje mui cerceados, porque a irmandade das Chagas de Jesus já não é numerosa, como outr'ora, nem dispende tanto com o culto divino. Todavia fazem-se n'ella os officios regullares, e algumas festividades com bastante decencia.
Egreja das Chagas, gravura de João Pedroso, 1863.
Imagem: Hemeroteca Digital
Possue esta egreja o corpo de Santo Urbano, que d'antes se achava depositado na capella da casa visinha, de que é proprietario o sr. Casal Ribeiro, e que este cavalheiro fez transferir, ha alguns annos, para aquelle templo.
A egreja tem o frontispicio voltado para oeste. Como está edificada na crista do monte, o seu adro é pequeno, porém mui lindo pelas arvores que o assombram para o lado do sul, e principalmente pelo delicioso painel que os olhos d'alli relanceiam.
A cidade, descendo por valles e subindo por encostas até Belem; o Tejo espraiando-se magestosamente, como um golfo, até se ir confundir com o Oceano por entre as fortalezas que lhe defendem a foz; os mo montes de além com suas quintas e povoações guarnecendo-lhes as faldas, ou surgindo das quebradas, ou coroando-lhes as alturas, e mais longe a serrania da Arrabida: tal é esse painel encantador. (3)
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Em 1898, se não me engano, consentiu a Camara, por motivos de certo muito transcendentes, mas que ficaram desconhecidos, um roubo artistico feito a um dos mais bellos miradoiros de Lisboa: permittiu o alteamento de um grande prédio do pateo do Pimenta, por forma que interceptou a vista para sueste.
Panorâmica de Lisboa e do rio Tejo vendo-se a igreja das Chagas de Cristo, 1905.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
Não creio que andasse bem, nem o proprietário pedindo e acceitando a licença, nem a Camara concedendo ao interesse financeiro de um influente politico, o sr. Conselheiro José Dias Ferreira, submetteram-se considerações de ordem mais nobre: os direitos do Bello. Emfim, se o publico perdeu uma parte do espectáculo, o inquelino do dito proprietário ganhou-a. E uma compensação.
Como chronista e procurador officioso da Cidade, cabe-me o direito de dizer n'isto o que penso. A lettra redonda tem os seus fóros. Uma coisa é usar da imprensa; outra muito diversa é abusar.
Hoje, que tanto se fala da Arte, hoje que ha um Conselho superior de monumentos, hoje que bellissimas escolas industriaes e artísticas florescem em toda a parte, espalhando nas classes populares conhecimentos que ellas d' antes não possuíam, hoje que tanto se pensa no aformoseamento e saneamento da Capital, pergunta o imparcial bom senso: deveria o Município ter consentido aquelle biombo, aquelle empacho, num dos sítios mais desafogados e pittorescos da Cidade? e deveria um cidadão do mérito do sr. José Dias Ferreira, antigo Lente de Direito publico, antigo Ministro, Presidente do Conselho, legislador, pedir (ou acceitar sequer) aquella concessão?
Lisboa, zona da Bica, Artur Pastor, década de 1960.
A igreja das Chagas de Cristo e as torres da igreja de São Paulo.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
Francamente respondo: não devia acceital-a o particular, e não devia a Camara concedel-a. Para dar vista a meia dúzia de janellas do prédio de um só individuo, permittiu-se que fosse vilipendiado o direito de nós todos. Foi-nos expropriada, sem vantagem nossa, e contra todos os dictames do bom senso, da justiça, e da equidade, uma vasta propriedade que disfructavamos desde séculos.
E entendo mais: entendo logicamente que, de ora em diante, não ha considerações que impeçam os outros donos dos terrenos da vertente de construírem para leste e sul, afogando o largo das Chagas em edificações de mestre de obras, e acabando de vez com os restos do prospecto que ainda d'ali se gosa.
O sr. Conselheiro José Dias Ferreira, proprietário opulento, não precisava da migalha que lhe rende o andar que levantou, para augmentar os seus haveres; e, como homem de talento laureado e indiscutível, não precisava d'esse monumento para sua gloria. (4)
Este palácio, um dos bons edifícios integrados na freguesia da Encarnação, situa-se na Rua da Horta Seca n.os 15-17-19, à esquina da Rua da Emenda (que foi Travessa do Mel), onde tem os n.os 87-89-91 e possui outro meio de comunicação na Rua das Chagas, onde um portão de ferro, com o n.° 18 (primitivamente n.° 20), abre para um extenso corredor, que liga com o jardim, nas traseiras do edifício, e que servia à criadagem e dava passagem às carruagens.
Palácio do Manteigueiro, Palácio da Horta Seca (detalhe), Candida Höfer, Formas de ver o mundo, 2006.
Imagem: Christie's
A entrada principal faz-se actualmente pelo n.º 15 da já citada Rua da Horta Seca, nome que foi muito acertadamente transmitido e que denota afinidades directas com a artéria vizinha, que a toponímia citadina designou Travessa do Sequeiro das Chagas.
São ambas velhas de séculos, saudosas da sua contemporânea, a desaparecida Travessa dos Gatos, que se foi com os Casebres do Loreto, tornados célebres pelo muito que resistiram às inclemências do tempo [...]
Casebres do Loreto, antigo Palácio dos Marqueses de Marialva, colecção Julio de Castilho.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
A origem deste palácio data de 1787 e a sua construção foi entregue ao arquitecto Manuel Caetano de Sousa (Eduardo de Noronha atribui a obra ao arquitecto Altronochi, Milionário Artista, pág.184), por mandado de Domingos Mendes Dias, natural da povoação de Medeiros, freguesia e comarca de Montalegre, província de Trás-os-Montes, que destinou a luxuosa moradia a sua residência.
Muito jovem ainda, fugiu aos pais e começou a vida em Lisboa como aguadeiro, depois foi marçano de mercearia e a seguir ao terramoto já se classificava "negociante ela praça de Lisboa".
Isto diz o Abade de Miragaia (P.e Pedro Augusto Ferreira), que foi o continuador de Pinho Leal no seu notável Portugal Antigo e Moderno, porque Tinop dá este batalhador como emigrado no Brasil, onde se entregou ao comércio de mercearias, tornando-se um novo-rico, numa época anterior à consagração desse termo.
O afortunado transmontano, que se não fora a riqueza acumulada não passaria dum ignorado e humilde cidadão, chegou a fidalgo da Casa Real e atribui-se a origem da sua sólida posição, ao comércio de manteigas por grosso, que montou em Lisboa, daí lhe advindo o epíteto de "Manteigueiro".
É outra a versão apresentada pelo Abade de Miragaia, que, fazendose eco de correntes diferentes, insinua como possíveis meios condutores do amealhamento dos grossos cabedais, "lanço feliz de rede por ocasião do terramoto", contrabando ou interesses ligados à expulsão dos jesuítas.
Domingos Mendes Dias era considerado um dos maiores capitalistas do seu tempo e deixou uma fortuna que, na data do falecimento, foi avaliada em seis e meio milhões de cruzados, correspondentes a dois mil e seiscentos contos de réis.
Apesar disso, até ao fim da sua vida, revelou-se um espírito tacanho, peculiar à sovinice de que deu bastas provas. Vivia com uma preta de avançada idade, que lhe preparava os alimentos, tudo do que havia de mais barato, e mandava servir o jantar dentro duma gaveta da sua secretária, que logo fechava, se alguma visita aparecia.
Devido ao seu feitio miserável, este estranho milionário chegou a ser preso pela ronda, por se tornar suspeito, uma noite em que transportava às costas a fruta verde que apanhara do chão, numa das suas quintas dos arredores. Contava-se que, nas longas noites de inverno, o seu prazer favorito consistia em "formar cartuchos de cem peças de oiro".
Jamais soube tirar do dinheiro o bom partido que ele pode dar, esse ricaço asqueroso, que faleceu nos princípios do século XIX (já passara a esse estado em Agosto de 1804), em consequência de um ataque de ladrões, à punhalada, pois que, mesmo nessa emergência, achando os gastos exagerados, implorou do médico que o tratava, que fosse mais comedido nos remédios... Da poupança surgiu a gangrena, que o levou como a qualquer pobre de Cristo.
Transtornado por tanto luxo, e esquecendo os seus princípios, o antigo pobretão foi acometido pela mania das grandezas. E, querendo mostrar-se de origem fidalga, obteve de António de Sousa Pereira Coutinho, morgado de Vilar de Perdizes e vizinho na sua terra de nascimento, a sua aquiescência no tratamento de primo, prometendo, em troca, legar-lhe o palácio e toda a sua fortuna [v. A Revolução Liberal em Trás-os-Montes (1820-1834): o povo e as elites].
Planta do fragmento da cidade entre as Chagas e a Rua Direita do Loreto antes de 1755.
Imagem: Internet Archive
Não esqueceu o "brasileiro" a promessa feita, que "religiosamente cumpriu", e assim, por sua morte, o palácio da Rua da Horta Seca entrou na posse do morgado [v. Correio do Porto n° 61, quarta-feira 6 de dezembro de 1820], que teve como antepassado o reverendo António de Sousa, servidor dedicado dos duques D. Jaime e D. Teodósio, e representava a ilustre família Pereira Coutinho [...]
O fidalgo que se tornou herdeiro universal do "Manteigueiro", era tido como gastrónomo de primeira ordem, e um dos seus filhos, de nome Alexandre, deu brado em Lisboa com o seu exagerado janotismo. Apresentava-se elegantemente encasacado, de chapéu alto enformado a rigor e destacava-se nos salões como aprimorado dançador.
Uma irmã desse gentleman, D. Maria da Graça Pereira Coutinho, consorciou-se com Santana e Vasconcelos, 2.° visconde de Nogueiras, de seu nome completo Jacinto de Santana e Vasconcelos Moniz de Bettencourt, e que foi consul de Portugal no Peru, ministro em Washington, fidalgo-cavaleiro da Casa Real, deputado da Nação, comendador das Ordens de Cristo, de Nossa Senhora da Conceição de Vila Viçosa e de Carlos III, de Espanha, funcionário superior do Ministério da Fazenda, jornalista e poeta de boa inspiração.
Santana e Vasconcelos [v. Diario Illustardo n° 162, 13 de fevereiro de 1888], que em política foi um acérrimo combatente contra a política de Costa Cabral, ganhou fama pela sua vida aventurosa de grande boémio, fazendo parte do grupo do marquês de Nisa, António da Cunha Sotto Mayor e outros elegantes da vida turbulenta e extravagante do século passado.
Era dotado de um extraordinário vigor físico, grande espadachim e atirador de respeito; e porque as suas atitudes foram muitas vezes as de autêntico "Varredor de feira", deixou uma lista quase lendária de inacreditáveis episódios.
A esta curiosa figura se têm referido detalhadamente Bulhão Pato, Júlio Dantas, Pinheiro Chagas, Pinto de Carvalho, Ramalho, Palmeirim, Eduardo de Noronha, Sousa Bastos e outros mais.
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Norberto de Araújo refere-se vagamente a este palácio, e, pelas averiguações de Tinop, se conclui que, durante algum tempo, após a morte do seu rico proprietário, os moradores do palácio não se fixaram por longo tempo, pois, em Agosto de 1804, era pedida a sua cedência para moradia temporária do conde de Caparica (D. Francisco de Meneses da Silveira e Castro, feito marquês de Valada pelo príncipe regente D. João — na mesma época habitou o seu palácio, no Calhariz, que foi do herói da Alfarrobeira, D. Álvaro Vaz de Almada, depois dos Távoras e ainda dos condes de Azambuja), que sofria de febres malignas, e, seis anos mais tarde, D. Miguel Pereira Forjaz (conde da Feira), na qualidade de ministro da Guerra e dos Negócios Estrangeiros da Regência, determinava que essa casa ficasse à disposição do coronel Peacock, para que nela se pudesse estabelecer um hospital militar britânico.
O citado Abade de Miragaia dá Junot como aqui instalado em 1807, o que bem pode ser confusão com outro palácio, o do Loreto, que nessa data serviu ao representante diplomático da França, acreditado em Portugal.
Outro morador foi o marquês de Lille, ministro plenipotenciário da França, em representação de Napoleão III, no tempo em que, no dizer de Tinop, "a contradança obedecia ao protocolo e a valsa perdia de vista o equilíbrio europeu".
Esse diplomata mandou executar grandes obras no palácio, com uma decoração rica e de bom gosto, tendo marcado a inauguração de tal acontecimento com um grandioso baile, a que se seguiram outros, não menos solenes.
Mas o corolário foi a festa de estrondo oferecida em 1855, em honra do nosso rei D. Pedro V, comemorativa da sua coroação.
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Nesta casa solarenga também residiu, com sua família, o rico negociante de origem inglesa, João Fletcher, talvez a partir de 1826, época em que o palácio se transformou num grande centro de reuniões, principalmente da colónia inglesa, tendo hospedado naquele ano um general que viera na divisão de Clington.
Bulhão Pato, um dos íntimos da Casa, conta que nos jantares e serões se reunia a primeira aristocracia, os mais altos titulares do país [v. Bulhão Pato, Memórias III, 1907].
João Fletcher tinha como vizinho e assíduo frequentador dos seus salões, o opulento negociante João Paulo Cordeiro, acérrimo miguelista e chefe duma quadrilha de caceteiros, e que a tal ponto levava o seu fanatismo político que, por cada ano de reinado de D. Miguel, metia nos dedos um anel com brilhantes.
Quando se verificou a derrota da causa do filho segundo de D. João VI, aquele súbdito inglês, que era muito afecto ao liberalismo, salvou a vida do poderoso magnate, recolhendo-o no seu palácio. Este rico negociante possuía igualmente casas na Ameixoeira e na Moita; e, nas suas propriedades no sítio do Ginjal, onde recebia principescamente os amigos, também deu abrigo a muitos miguelistas, no intuito de os salvar da fúria política.
João Fletcher teria vindo para Lisboa anos depois de 1786, na intenção de proceder ao salvamento da carga do galeão espanhol "São Pedro de Alcântara" [v. O naufrágio do San Pedro de Alcántara], afundado em Peniche, e que do Peru, então colónia espanhola, havia sido enviado a Cadiz, "Com um carregamento no valor de 70 milhões de cruzados (28.000.000$000) em moedas, barras e baixelas de ouro e prata, além de outros objectos" (cf. Três palácios dos Correios na Rua de S. José, por Godofredo Ferreira).
João Fletcher e seu sobrinho Alfredo William Howell, empreendedores do trabalho, acabaram por desistir, mas por cá continuaram a viver.
O primeiro ocupou na sociedade um lugar de destaque, e tornou-se curioso em Lisboa pela sua rara e notória excentricidade. Foi ele que, no ano de 1812, apresentou na capital o primeiro landau, que mandou vir de Londres e lhe custara 400 libras esterlinas [v. Bulhão Pato, Memórias III, 1907].
Bem lançado na sociedade, acompanhava assiduamente com o marquês de Nisa e outros fidalgos boémios. Frequentava os melhores salões e deixou fama no palácio das Laranjeiras, pelas anedotas que sabia contar e a que emprestava a sua graça. Era um perfeito "dandy", que não faltava nas corridas de cavalos, na ópera de S. Carlos e nos bailes das "assembleias" aristocráticas e outras festas mundanas.
Era amigo do prof. Melo Breyner e foi director da "Assembleia Estrangeira", que se chamara "Assembleia Inglesa", já existente em 1771, e onde na noite de 24 de Julho de 1833, dia da entrada do duque da Terceira na capital, se deu um baile, em que todas as senhoras se apresentaram vestidas de azul e branco.
Duque da Terceira por John Simpson, após 1834.
Imagem: Parques de Sintra
Em 1816 apresentou à Real Junta do Comércio um projecto para a criação de um estabelecimento bancário em Lisboa [v. Arquivo Distrital de Braga].
João Fletcher era neto dum oficial de engenharia inglês [tenente-coronel J. Fletcher, comandante do corpo de engenheiros de Wellesley] que batalhou nas linhas de Torres Vedras [e na Linha de Defesa da Margem Sul do Tejo, integrante das Linhas de Defesa de Lisboa, em 1810, v. Cronologia breve da Torre Velha (3 de 3) e A Arte da Guerra e o Castelo de Almada].
Castelo de Almada após as reparações de 1810, gravura (detalhe), Pierre Eugène Aubert (Aubert pére),
cf. Lisbon from Fort Almeida [sic], Drawn by C. Stanfield from a Sketch by W. Page, Engraved by E. Finden,
Fieldmarshal The Duke of Wellington.
Imagem: Biblioteca Nacional de Portugal
Sua filha, D. Constança Fletcher, consorciou-se com o tenente-general D. António José de Melo Homem (da família dos Condes de Murça), e desse casamento nasceu D. Tomás de Melo (D. Tomás José Fletcher de Melo Homem), que juntou à sua veia literária uma excentricidade buliçosa, com larga tradição boémia, que ficou reflectida na sua turbulenta biografia.
Tomás de Melo não nasceu na casa da Horta Seca , como parecia a Bulhão Pato — quando muito, viveu lá os primeiros meses de infância —, mas sim no palácio de seu avô, na vila da Moita, a 23 de Fevereiro de 1836.
Deixou uma filha, D. Maria Justina Micaela Tomásia José de Jesus de Melo Homem, que era conhecida por Maria de Melo e também se destacou na capital pelas suas fantasias , trajando sempre de maneira extravagante.
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É a altura de nos referirmos à "Assembleia Lisbonense", também chamada "Assembleia da Horta Seca", considerada durante os catorze anos da sua vigência, o melhor centro da plutocracia e da alta política, que constituíam a nata dos partidários da "Carta" [v. Lisboa de outrora, vol. 2.º, pág. 124].
A ideia da sua formação surgiu numa conversa de amigos, presentes a um sarau da "Assembleia Recreativa" (funcionava no palácio Rio Maior), em Abril de 1836, lembrança do grande liberal Francisco José de Almeida, a quem logo se associaram José da Silva Carvalho, Rodrigo da Fonseca e outros categorizados elementos, que na assembleia geral de 17 desse mês, no salão de S. Carlos, elegeram aquele notável estadista para vice-presidente e deram o lugar imediatamente superior ao conde de Farrobo [v. O Conde do Farrobo a ação e o mecenato no século XIX].
Foi após nova assembleia geral, em casa deste titular, que se resolveu alugar o palácio, considerado óptimo para o efeito e estabeleceu-se a quota de 9$600 réis (2 moedas). O contrato de arrendamento datou-se de 12 de Maio de 1837, o senhorio continuava a ser o morgado de Vilar de Perdizes e João Fletcher, que ainda era inquilino, foi quem mostrou as casas.
Tinop dá como instalada no Palácio do Manteigueiro, em 1829, a "Assembleia Portuguesa", por transferência do palácio Valadares, no Largo do Carmo; mas, tomando em conta o tempo em que João Fletcher permaneceu nesse palácio (de 1826 a 1836) e outra referência do valioso cronista, relativamente ao "Club Lisbonense", que na fundação, em 1835, aproveitou o citado edifício do Largo do Carmo, da então extinta "Assembleia Portuguesa", somos levados a concluir que houve inexactidão na primeira afirmativa.
Em reforço desta opinião, lemos em Eduardo de Noronha que o "Club Lisbonense" foi descendente da "Assembleia Portuguesa".
Logo, esta acabou os seus dias nas vizinhanças das ruínas do Convento [do Carmo] fundado pelo vencedor de Aljubarrota. Com o pretexto de dar aos salões um aspecto moderno, cometeu-se a barbaridade de arrancar ou substituir as ricas decorações, como os espelhos, os damascos das paredes, os caixilhos doirados das sobreportas, e os estuques dos tectos, vendendo-se aos ferros-velhos as portas de madeira do Brasil.
As portas da nova Assembleia abriram-se a 15 de Agosto, e, em 21 de Novembro, fez-se a inauguração com o 1.° baile, que decorreu entre primores de luxo e galantaria. Estavam presentes, e tornaram-se certos em todas as festas, os Fronteiras, Palmelas, Farrobos, Vilas Reis, Ficalhos, Terceiras, Braamcamps, tudo o que de mais nobre e de mais fidalgo compunha a alta sociedade da época.
Palácio do Manteigueiro, Palácio da Horta Seca (detalhe), Candida Höfer, Formas de ver o mundo, 2006.
Imagem: Christie's
Muitas vezes não foi estranha a presença da rainha a Senhora D. Maria II, de D. Fernando, da imperatriz-duquesa viúva de D. Pedro, e das Senhoras Infantas.
Em honra do marquês de Fronteira [José Trazimundo Mascarenhas Barreto, 7º marquês de Fronteira] deram-se alguns jantares e bailes, manifestações políticas dos seus partidários e camaradas no exército, e teve especial realce o baile de 21 de Abril de 1838, em benefício do Asilo de Mendicidade.
Nessa época dançava-se por toda a parte. As casas nobres ou abastadas davam continuamente festas. Os condes de Farrobo, do Carvalhal e de Penafiel e o marquês de Viana, formavam em primeiro plano, escancaravam os seus salões, para que neles entrasse a aristocracia, a tomar parte nos mais esplendorosos bailes, muitas vezes acompanhados de magnificentes jantares, chás de grande distinção e concertos da mais sublimada arte.
O general Pourcet de Fondeyre, que visitou o nosso país e chegou a Lisboa em 8 de Outubro de 1842, no seu livro "Lisbonne et le Portugal" [v. J. Pourcet de Fond, Lisbonne et le Portugal, Paris, 1846], não esqueceu referenciar a Assembleia Lisbonense, porque lá esteve em noite de recepção [...]
François d'Orléans, príncipe de Joinville (detalhe).
Chateau de Versailles, Franz Xavier Winterhalter, 1843.
Imagem: REPRO TABLEAUX
O ilustre visitante destacou [também] da assistência o capitão Napier, "Un homme petit, gros, rouge et Anglais", que ostentava "Un habit de marin et une quantité de décorations", estava rodeado de "nombreux courtisants qui l'assiégerent aussitôt", e «malgré son âge, sa dignité et sa confirmation, il dansa" [...]
Almirante Charles Napier por John Simpson, após 1834.
Imagem: Parques de Sintra
Esta agremiação, nascida sob a influência do romantismo, importado de França pelos emigrados que haviam fugido ao miguelismo, não resistiria às perturbações nascidas duma política nacional incerta e revolucionãria, que o constitucionalismo reprimia a custo.
Localização do Palácio do Manteigueiro no cruzamento das ruas da Horta Seca e Emenda e acesso à rua das Chagas.
Atlas da carta topográfica de Lisboa (detalhe da carta 42), Filipe Folque, 1857.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
Quando, a 27 de Julho de 1851, numa almoeda que foi pasto de natural coscuvilhice, ecoava o pregão do leiloeiro, significativo de que findara o luxo e o fausto vividos adentro desses salões, já a "Assembleia Lisbonense" perdera todo o esplendor e grandeza [...]
E agora regosigemos os olhos com variegadas flores que vivem numas deliciosas télas, pintadas pela Ex.ma Sr.a D. Josepha Garcia Greno, uma hespanhola que esposou um portuguez, o sr. Greno.
Retrato de Josefa Greno (detalhe), Adolfo Cesár Medeiros Greno, 1887.
Imagem: DezenoveVinte
Um casal de artistas. Sem rivalidades. Casados para o amor e para a arte.
Ella cultivando as flores dos seus quadros, que nascem debaixo do seu pincel, com espontaneidade, com collorído, com viveza e graça natural, numas composições imprevistas, como "Um ninho de flores" e tantos outros quadros que reacendem o aroma das rosas e dos lilazes.
Elle cultivando o retrato com certa distincção, muito principalmente no de M.lle Nascimento, uma cabeça primorosamente pintada, com frescura, suave, destacando-se do fundo, sem dureza, muito melhor que "Las Pritaneras", urna hespanhola que, sentada nos degraus da sua porta, entre uns vasos de flores, dedilha na viola com a qual se não sente á vontade, numa posição a que mostra estar pouco habituada, e que o redondo do desenho torna ainda mais sensível, alem da prespectiva não iludir o suficiente para que a figura se despegue do fundo. (1)
Soirée chez lui ou Concerto de amadores, Columbano, 1882.
Da esquerda para a direita: Maria Augusta Bordalo Pinheiro, Adolfo Greno, um cantor italiano, Josefa Greno e Artur Loureiro ao piano.
Imagem: MNAC
Greno gosta d'aformosear os seus esmerados estudos de figura, tratados pacientemente, e retoca as faces das pessoas retratadas com uns suaves tons roseos, que eu, por desventura minha, não estou afeito a ver por essas ruas e encruzilhadas nas caras innumeraveis dos tranzeuntes; todavia, aqui lhe confesso, effusivo e grato, que o antiquado candeeiro de latão amarello, com os tres bicos no bojo e a sua alta haste bandeirolada, introduzido solitariamente n'um dos seus quadros, provocou-me uma saudade saborosa das boas noites passadas no conchego acalentado e pacifico dos serões d'aldeia.
A sr.a Josepha Garcia Greno expõe de novo as suas composições decorativas de fructas e flores, tão vigorosamente executadas; dentre ellas, destaco uma tela magnifica, em que se desmancha ao acaso um molhe espesso d'amores perfeitos; emquanto que outra pinturinha, archaica e alegre, com um ramo de rosas brancas recortadas em fino contorno sobre o fundo dourado, tem um bonito ar byzantino. (2)
A ex.ma Sr.a D. Josepha Greno uma das mais distinctas artistas do nosso paiz expõe um grande numero de télas, a maior parte das quaes nos revelam a grande technica, certeza e felicidade de toque, de que é possuidora a illustre artista.
Os n.os 51, 52, 59, 61 e 67 são uma grande belleza de colorido e na verdade muito decorativos. O n.° 67 "Amores perfeitos", especialmente é muito primoroso.
Alguns ha porém que gostamos menos; o n.° 56 "Malvaiscos" por exemplo é pouco cuidado; aqueles tons verdes são demasiado falsos e desagradaveis. N'este grupo incluiremos ainda o n.° 55 "Amores perfeitos", que temos de classificar de "pochade" pouco feliz. (3)
A sr.a D. Josefa Greno, sem apresentar nenhum trabalho comparavel ao "Melão francez" do anno passado, sustenta no entanto os seus creditos de eximia pintora de flores.
Dos seus quadros são especialmente notaveis os "Malvaiscos e fructos", as "Rosas e despedidas de verão" e os "Fructos", tratados com a maestria que lhe é habitual; o "Cesto de rosas", de tonalidade delicada e composição muito feliz, e as "Estrellas do Egypto", tambem muito bonito de aspecto; e ainda as "Rosas" e as "Rosas e papoulas", de factura vigorosa e quentes de cor.
Das paisagens expostas pela mesma senhora, bastante inferiores ás suas flores, é ainda assim muito agradavel de aspecto a "Devesa do Cumulo", numa gamma delicada e branda. (4)
A sr.ª D. Josepha Garcia Greno [(1850-1902)] é uma artista festejada, muito conhecida pelos seus bellos quadros de flôres, e se as suas paisagens que este anno expõe se podessem medir com as flores que sabe pintar, teria augmentado consideravelmente os seus creditos de pintora.
Infelizmente não acontece assim e os seus quadros de paizagem deixam tanto a desejar como os seus quadros de flores satisfazem perfeitamente.
Flôres, illustre artista, é que deve pintar; estas agradecem-lhe muito mais os seus cuidados, dando-lhe mais triumphos como os que tem tido em outras exposições, onde as suas flores tem sido devidamente apreciadas, ainda que n'esta não foi tão feliz, talvez porque descurasse um pouco os seus "Lilazes", "Malvaiscos e Rozas" preoccupada com as "Margens do Agueda" e as "Margens do Vouga" que afinal a não compensaram condignamente.
De todos os quadros o que mais nos agradou foi o "Rosas e malmequeres". (5)
D. Josefa Greno anima a exposição com o fresco colorido das suas bellas flores. As — Papoulas — são uma gentileza. Em alguns outros quadros os fructos têem bastante perfeição e muita verdade. As composições são sempre graciosas, o desenho, em geral, bom e em todos os seus trabalhos se encontra alguma cousa mais que o correcto. — Preparos para o festim — é uma bonita composição, animada na sua insensibilidade, que é pena ter algumas imperfeições no desenho, e estarem pouco tratados os primeiros planos.
Esta senhora, uma verdadeira artista, cultiva amorosamente o genero a que se dedicou, e as suas télas offerecem sempre uma variedade e encanto seductores. (6)
D. Josepha Greno espalha pelas salas profusamente, rosas, lilazes, papoulas, malmequeres e amores perfeitos, depois, entrando nos dominios de Pomona, offerece-nos morangos, cerejas e outros fructos apeteciveis, mas alguns d’estes trabalhos são menos felizes do que outros, anteriores, que lhe fizeram uma merecida reputação. (7)
Foi assim que um dia d'estes a cidade toda se commoveu profundamente ao ter noticia da morte de Adolpho Greno assassinado a tiro de revolver por sua propria mulher, D. Josepha Greno, tão conhecida entre todos os que frequentam exposições de bellas artes pelos seus primorosos quadros de flores.
Retrato de Josefa Greno por Adolfo Greno.
Imagem: MatrizNet
Tinham por amor casado ha muitos annos, julgava-os felizes quem de perto os não conhecia. Atribue-se o crime a loucura da mulher, que, ha muito, com ciumes atormentava o marido, já tendo ha meses, disparado sobre elle um tiro de revolver.
E elle perdoara, e tão tranquilo vivia agora que, quando novamente ella desfechou sobre elle, uma d'estas madrugadas, quatro tiros d'outro revolver que comprara, o pobre Greno, dormia socegado, refazendo forças para mais um dia de trabalho.
Julgam-a doida e assim deve estar, nem é facil por outra forma explicar o sangue frio que mostrou nos primeiros instantes que decorreram depois tio assassinato, não querendo sahir de casa sem primeiro ter almoçado placidamente.
Adolpho Greno, que nunca pela pintura conseguira alcançar nome ilustre, dedicava-se ultimamente á restauração de quadros velhos. Maior nomeada tinha entre os artistas a Sr.a D. Josepha Greno, sua esposa assassina.
Desde muito moço vivi com homens dos mais notáveis da guerra civil entre D. Pedro e D. Miguel. Os acontecimentos estavam próximos ainda; vivas e sangrando, feridas de todo o género nos contendores de ambos os campos; mas em espiritos elevados as paixões haviam serenado.
General Bernardo de Sá Nogueira de Figueiredo (1795-1876), Marquês de Sá da Bandeira.
Imagem: Academia Militar
Das narrativas que ouvi aos parciaes dos dois lados me veia poder firmar linhas physionomicas de personagens que representaram na scena politica de uma epocha cuja historia, apesar de haver volumes sobre ella, ainda se
não escreveu.
Para mim, de todos os homens do cerco do Porto, o mais heróico é Bernardo de Sá Nogueira, marquez de Sá.
A ultima vez que o vi jantámos juntos. Foi no dia 4 de agosto de 1873, em Cintra, em casa dos duques de Palmella. Fazia annos a sr.a duqueza.
Maria Luísa de Sousa Holstein (1841-1909) 3a Duquesa de Palmela.
Imagem: Geni
O velho soldado e grande cidadão fora saudar a nobilíssima fidalga, que allia, ao talento artístico, a flor mais perfumada de educação, e o dote de captivar quantos a conhecem, pelo poder irresistível e supremo da sympathia. Marquez de Sá prezava, havia muito, as qualidades moraes de finíssima tempera de António de Sampaio, duque de Palmella.
Algumas horas antes de jantar, no parque da casa de campo dos duques, marquez de Sá, marquez de Sabugosa, e eu, conversámos, ou antes, nós dois ouvimos o deus Marte da serra do Pilar, que, apesar de manco, tantas vezes acutilado, uma vez quasi enterrado vivo, e já próximo dos 80, parecia ter o animo e vigor da mocidade. Contou algumas anecdotas engraçadas, e, como prologo, disse:
"Agora, quando vejo nos jornaes noticia de coisa triste, não leio."
Estas palavras tão simples deram-me mais uma nota das cordas d'aquelle coração.
O homem que presenceara tragedias pavorosas; que elle próprio curtira dores cruelissimas de todo o género; a dois passos do tumulo, ainda se commovia com os infortúnios alheios!
Busto em màrmore do Marquês de Sá da Bandeira (c. 1870), inaugurado na Sociedade de Geografia de LIsboa em 1909, detalhe de fotografia de Francesco Rocchini tomada no atelier da 3a Duquesa de Palmela Maria Luísa de Sousa Holstein.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
Falou também do cerco do Porto, narrando grandes actos de abnegação e intrepidez, que lá se praticaram, sem por sombras alludir ao seu nome. E foi no Porto, depois do funesto desbarato da Gandra de Souto Redondo, que elle praticou uma acção, que adeante referirei, acção que não tem rival vencedora nas mais nobres da historia.
Simão José da Luz Soriano narra o facto com a sua chateza habitual. Eu ouvio-o da bôcca dos homens d'aquelle tempo, e nenhum o contava sem commoção.
O auctor do cerco do Porto, trabalhador incansável, honra lhe seja, dá a noticia exacta e impreterível para a historia d'aquella epocha;
foi testemunha de muitas scenas; é sincero, mas não vê senão a superfície das coisas; desconhece os homens ou não tem olhos para os observar ou
está longe dos meneios diplomáticos; não falseia, mas amesquinha actos de heroicidade, ou porque os não comprehende, ou porque lhe são antipathicos aquelles que os praticaram; respira no circulo estreito dos seus parciaes [v. História do cerco do Porto... vol. I e História do cerco do Porto... vol. II].
As Festas da Liberdade no Porto — Veteranos da Liberdade que tomaram parte no préstito in O Occidente, 1883.
Imagem: Hemeroteca Digital
A falta de recursos como escriptor, ora o leva á confusão e obscuridade, ora a infatuar, sem intenção malévola, a verdade das coisas.
Saldanha, cujos defeitos como politico por tantas vezes temos censurado no decurso d'estas "Memorias", teve no Porto esses defeitos, que lhe estavam no sangue e o acompanharam até á morte, mas representou um papel eminente e brilhantíssimo, desde a defesa da "Frecha dos mortos", até que abateu os lauréis orgulhosos da vencedor de Argel.
Luz Soriano acurta-lhe a estatura.
De Mousinho da Silveira, alma da revolução, como não pôde encarar o minimo relâmpago d'aquelle cérebro genial, diz, inconscientemente, o que diria um gazetilheiro, d'esses a que os francezes appellidara de "fulicularios", assalariado para o insultar.
Palmella é também injustamente apreciado. Faz pena que um escriptor brilhante, que já não vive, deixasse correr, propositadamente, os juizos fúteis, acanhados, e por vezes empeçonhados, do animo miudinho e cabeça apoucada de Simão Soriano.
Varias injustiças do auctor do cerco do Porto já estão corrigidas, pela rispidez dos factos, em algumas correspondências diplomáticas, na "Historia das Côrtes Geraes", e ainda nos volumes de J. da Silva Carvalho, "O meu tempo", importantíssima collecção de documentos para a historia politica d'este século em Portugal, publicados e annotados por seu neto, A. Vianna.
Antes de narrarmos os factos mais importantes da vida do marquez de Sá, dêmos, em dois traços apenas, a biographia do aventureiro soldado. Tinha mais seis annos do que o século (1795); aos quinze sentava praça no regimento de cavallaria 11. Até 1814 bateu-se sempre. N'esse anno (13 de março), explorando a estrada de Tarbes, é envolvido pelo inimigo, acutilado, cae por morto no campo de Vielle, passa-lhe por cima um esquadrão. Prisioneiro dos francezes, restabelece-se, mas fica surdo para o resto da vida.
Termina a guerra, embainha a espada, matricula-se em Coimbra, fórma-se em mathematica. É uma linha recta no caminho da honra, aquella vida!
De 1826 a 1827 bate-se sempre. Em 1828 continua a combater. Rejeita o camarote no Belfast, offerecido pelo duque de Palmella, para salvar da forca a cabeça de Cesar Vasconcellos e levar os seus soldados até á Galliza.
Pedro de Sousa Holstein, 1° Duque de Palmela, por Domingos Sequeira.
Imagem: Wikipédia
Essa retirada foi digna de ser escripta pelo punho de Thucydides.
Em Hespanha dá-se o celebre dialogo entre elle e o façanhoso official.
Soriano narra o facto; mas eu prefiro a versão das "Lendas de Santarém", do meu velho amigo Zeferino Brandão, por apresentar testemunha de grande valor.
Haverá bastantes leitores que não conheçam este passo.
O coronel de milícias hespanhol, D. Manuel Ignacio Pereira, á frente da sua tropa, tratou com grande rudeza Bernardo de Sá. Este, sereno, queixou-se de que tivessem feito fogo sobre o seu acampamento.
— Eso merecen ustedes, replicou o hespanhol, porque son ustedes rebeldes y criminosos. — Rebeldes y criminosos son esos que os siguen, atalhou Sá Nogueira. — Y se atreve v. a hablarme com esa altaneria? — Yo le hablo a v. de la misma manera que V. me habla. — V. me habla asi en cuanto no le cuerto la cabeza. — Y V. me habla asi porque no tengo mi espada a mi lado.
O coronel arrancou da espada e mandou calar baioneta aos soldados. Bernardo de Sá cruzou os braços, e disse-lhe com o máximo desprezo:
— Es una cosa gloriosa el sacar la espada contra un hombre desarmado!
Os officiaes hespanhoes tiveram mão no covarde sanguinário, clamando-lhe que não deshonrasse o exercito do seu paiz com um infame assassínio.
A testemunha presencial, que o meu amigo Zeferino Brandão teve para a sua narrativa, foi, nem mais, nem menos, de que o marquez de Thomar, em cuja casa Zeferino era recebido pelo marquez e seu filho, actual conde de Thomar [vivia quando isto se escreveu].
Nas aguas dos Açores (1829) deu-se um caso com Bernardo de Sá e seu irmão José, caso que escapou á phantasia de todos os auctores de romances enredados e tenebrosos.
Ambos haviam partido de Inglaterra n'um brigue que devia deital-os na Ilha Terceira. A principal carga do barco era carvão de pedra. O commandane, excellente homem, prevendo algum mau encontro, mandou abrir no carvão uma cova, onde coubessem, a custo, dois homens. Não mentira o coração presago do solicito lobo do mar.
Quando faziam proa para a Angra, o cruzeiro miguelista cahiu sobre o brigue, julgando-o boa presa. Bernardo de Sá e o irmão foram para a sua cova. Não podiam mover-se, nem sequer levantar a cabeça. Treva profunda! Correram oito dias esplendidos para o tenebroso "Inferno" de Dante!
Ancorados em S. Miguel, o brigue ia ser descarregado. José de Sá, bravo como um cavalleiro andante, disse para o irmão:
— Se fôr descoberto atiro -me ao mar.
— O peor que te pôde succeder, observou-lhe Bernardo de Sá, é enforcarem-te. Não vejo necessidade de poupares esse trabalho ao incumbido da execução.
Estavam perdidos, quando a Providencia, encarnada n'um homem de coração, o cônsul inglez William Harding Read, pae do meu querido amigo Guilherme Read Cabral, com auxilio do bravo capitão, os salvou.
Quando comecei a gizar as feições do marquez de Sá referi-me a um acto da sua vida, dizendo que não conhecia no sangue frio e na abnegação nenhum mais elevado. Vou narral-o como o ouvi da bôcca dos homens d'aquelle tempo. O facto, em si, é notório. A noticia de Soriano, exacta no fundo, é contada a seu modo, e isso basta para lhe tirar toda a elevação.
Álvaro Xavier da Fonseca Coutinho e Povoas era um general; cabeça bem organisada e fecunda em planos. Os exaltados do partido absolutista não podiam com elle, porque em 1828, pela sua humanidade, não levara os vencidos á forca.
Deviam de ter sido, n'esse momento, pavorosos os morticínios da vindicta sanhuda e cruel dos vencedores, que tinham como sinistra inspiradora Carlota Joaquina, mulher radicalmente má. Todavia Povoas impunha-se-Ihes, como agora se diz, a torto e a direito, quasi sempre a torto, pela sua incontestável superioridade.
Conde de Villa-Flôr, depois duque da Terceira, valente como leão, não tinha nem a prudência, nem o alcance impreteriveis nos cabos de guerra.
No dia 7 de agosto (1832) atacou o inimigo, e na primeira refrega levou-o de vencida. O coronel do 10, Pacheco, que, segundo a opinião dos homens como Saldanha, tinha capacidade para vir a ser general de primeira ordem, receando do modo por que Villa-Flôr dispuzera as coisas, poz em reserva o seu regimento. Essa previsão fez com que lograsse cobrir a retirada desordenada e medonha.
Os constitucionaes avançaram com a intrepidez desenganada de homens que jogam a cabeça. Ás 11 da manhã o imperador recebia participação auspiciando a victoria como certa. De facto, nas primeiras arrancadas, os soldados do Mindello levavam a melhor. Povoas, porém, era homem de guerra e conseguiu attrahir os aggressores á própria Gandra de Souto Redondo.
O ataque fora desastradamente planeado. Povoas, n'um movimento acertado e rápido, mandou carregar á baioneta o regimento de infanteria de Bragança, gente escolhida, flanqueado pela cavallaria. Os constitucionaes foram como apanhados de improviso e em linha.
Começou o pânico, que o grito de alarma de um capitão de caçadores converteu em completa debandada. Então o coronel Pacheco, cobrindo a retirada, salvou o Porto, que esteve por um fio n'esse dia!
D. Pedro IV, no seu palácio dos Carrancas, depois da participação que de manhã recebera, esfregava as mãos, tendo a victoria como certa.
Bernardo de Sá estava com elle, quando o marquez de Loulé chegou de improviso. O marquez vinha extremamente pallido, e, apesar do seu caracter frio, tão commovido que nos primeiros momentos não poude proferir palavra.
Nuno J. S. de M. R. de M. Barreto (1804-1875), 1.° duque de Loulé.
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D. Nuno José Severo de Mendoça Rolim de Moura Barreto, 24,° senhor da Azambuja, 3.° conde da Azambuja, 9.° conde de Valle de Reis, 2° marquez de Loulé e 1.° duque de Loulé, casara com uma irmã do imperador, a infanta D. Anna de Jesus Maria.
Na epocha a que nos referimos tinha os annos incompletos e era tal belleza de homem que na Grécia poderia servir de modelo a um estatuário genial! Quando entrou a tomar alentos, narrou o funesto desbarato. Fora completo. Povoas perseguia os fugitivos e a entrada
na cidade parecia inevitável.
O imperador, incontestavelmente bravo, tremia como vara verde. Então ergueu-se Bernardo de Sá e disse para D. Pedro:
"Senhor, Povoas é um general. Basta que mande dois esquadrões carregar o inimigo para apossar-se do alto da Bandeira, tomar a vanguarda aos fugitivos e aprisionar desde o general ao ultimo soldado. No aperto em que estamos é preciso, único recurso, que Vossa Magestade, com toda a gente que temos no Porto, embarque nos navios que ahi estão. A difficuldade consiste em realisar o embarque em presença do inimigo triumphante; mas para o defender me offereço eu, dando-me Vossa Magestade trezentos homens escolhidos."
— E o Bernardo de Sá? disse o imperador enfiado. — Isso é commigo, senhor, respondeu serenamente aquelle intrépido coração!
Era com elle, coitado, era... que o fuzilavam em 24 horas, se o não enforcassem!
O duque de Bragança, altivo, mas generoso, não poude conter as lagrimas que lhe rebentaram dos olhos aos borbotões, e, apertando a mão de Bernardo de Sá, disse-lhe:
— Obrigado, meu amigo!
D. Pedro afivelou o cinturão e, sahiu com os que tinha em volta de si. Povoas, como que não querendo acreditar na demasiada fortuna ou arreceando-se de alguma cilada, ou finalmente por outros motivos que ficaram sempre na sombra, não perseguiu os fugitivos, cuja retirada, com prudência e valor excepcionaes, ia protegendo Pacheco, á frente do 10 de infanteria, regimento que nos humbraes de pedra da porta do seu quartel da Graça tinha gravadas as gloriosas datas dos seus repetidos feitos.
Quando já levantado o cerco, cahiu com uma bala perdida, que lhe deu na cabeça, o laureado coronel.
Desastrado e obscuro fim de tão brilhante soldado!
No dia 8 de setembro, no Alto da Bandeira, Bernardo de Sá teve o braço direito partido por uma bala. Continuou a combater. Durante a amputação não soltou um gemido. Vinte dias depois montava a cavallo, e o braço esquerdo não brandia a espada com menos valor.
Proseguiu na carreira coruscante. Por vezes applicou rigorosos castigos, sempre com a máxima justiça. Habituado desde os quinze annos ao campo das batalhas, via impassivel medonhas carnificinas. Não raro, nos arrebatamentos da sua terrível valentia, era temerário cruel como o foi na serra do Algarve; mas tinha coração profundamente humano.
Em 1838, sendo presidente de ministros, dia de Corpo de Deus, defendia a porta de escada onde se haviam refugiado José da Silva Carvalho e António Bernardo da Costa Cabral. Um sicário atirou-lhe uma baionetada ao peito: a commenda da Torre e Espada serviu-lhe de broquel. Correram sobre o assassino, para o acabar. Sá da Bandeira acudiu-lhe, bradando: — Larguem esse homem, que não foi elle.
Na revolução da Maria da Fonte, em Valle Passos, Bernardo de Sá mandou entrar em fogo
um regimento:
— "Passou-se para o inimigo." Ordenou que outro carregasse: — "Passou-se para o inimigo."
Restava o terceiro. — "Que avance." — "Passou-se para o inimigo."
— "Então vamo-nos embora, meus senhores."
Não sei commentar. Esta simplicidade seria para o pulso de Shakespeare dar o ultimo toque no retrato de um estóico, quando o estóico fosse um heroe!
Ao terminarem com a Regeneração as luctas civis, que foram como constante resaca dos mares da revolução liberal, os olhos do marquez de Sá — continuaremos agora a dar-lhe este titulo, comquanto o não tivesse ao tempo — voltaram-se para a Africa.
Chamaram-lhe visionário, já se vê. A inveja, que se dá em todo o terreno, mas que feracissimo o encontra na mediocridade, appellidava-o de utopista, testudo e allucinado. A geração que lhe suecedeu saudou-lhe a profícua iniciativa, e ahi estão hoje os aventureiros das armas e os do commercio, não menos úteis e valorosos estes, a perlustrajr essas regiões, que se o nosso temperamento não levar o amor pela Africa até á cegueira, principalmente com jactâncias fumosas de dominação, nos promettem largo e prospero futuro.
Sorriam-lhe a alma e os olhos ao marquez de Sá quando lhe falavam nas colónias. Essa paixão o distrahia da triste preoccupação que lhe dava o caminho que as coisas iam levando.
Emquanto viveu D. Pedro V, o marquez não desanimou. Votava-lhe, com a admiração, affecto paternal. O nobre e sympathico príncipe pagava-lhe com egual extremo.
Quando o marquez de Sá, sendo ministro,
cahiu gravemente enfermo (1859), D. Pedro V firmou-lhe n'uma carta singular a ultima consideração que tributava áquelle que offerecera a vida para salvar seu avô. A carta é conhecida; muitos haverá, porém, que a não lessem, e tem cabido logar n'estas paginas.
"Meu caro visconde.
— Recebi, por seu irmão, a carta em que me participa a impossibilidade absoluta de continuar a gerir os negócios das duas repartições, que lhe commetti com uma confiança que nunca foi trahida.
Transmitto-a ao marquez de Loulé, que me proporá o meio de sahir do embaraço em que vem collocal-o a declaração official de um facto que o visconde se pode honrar de que não influísse, tanto quanto era natural, na marcha dos negocios.
Ao acceitar a resignação de um poder, que eu não podia desejar em mãos nem mais fieis, nem mais votadas ao bem do paiz e á honra do soberano, seja-me permittido exprimir-lhe, e sinceramente, o dobrado pezar que tenho do facto e das causas que o determinam.
Nos três annos que servimos juntos, divergimos algumas vezes de opinião: fizemol-o como devem fazêl-o um soberano e um ministro constitucionaes; quer dizer, discutindo livremente, e sem nos entrincheirarmos, como muitos fazem, atraz da nossa auctoridade, ou das formulas particulares da nossa diversíssima responsabilidade. Nunca abrimos, pelo menos todas as minhas lembranças me levam a crêl-o, nenhuma d'essas feridas da alma que se dissimulam e não se esquecem.
Por isso nos despedimos com eguaes sentimentos, e quer-me parecer que com pezar egual.
É que o visconde conservava no poder todas as excellencias, e, deixe-me dizer, toda a originalidade do seu caracter, toda a desprevenção da sua intelligencia. Foi ministro e nunca foi ministro. Resta-me ao lado do sentimento da perda, e da difficuldade da substituição, a confiança de que a desoneração de um trabalho, que ajudava a extenuar-lhe as forças, pode contribuir para o seu restabelecimento.
Acompanham-o na sua ausência estes votos, os quaes conto renovar-lhe pessoalmente antes da sua partida.
Creia-me, meu caro visconde, seu muito affeiçoado.
— D. Pedro V.
Lisboa, 12 de março de 1859."
Tinha 22 annos quando escrevia esta carta, que, além da elevação do pensar e sentir, tem a forma onde ha períodos que, pela concisão elegante, parecem de A. Herculano.
Fui incumbido pela Segunda classe da Academia Real das Sciencias de represental-a no enterro do exemplar e austero cidadão. Em Santa Apolónia encontrei-me com o marquez de Sabugosa. Estava um dos nossos dias de inverno deslumbradores. Se podessemos vender alguns d'esses dias, por anno, á nevoenta cidade de Londres, em breve teríamos os inglezes como nossos submissos devedores!
Quando chegámos á estação de Santarém demos logo com Alexandre Herculano, que lhe transpareceu no rosto a satisfação de nos ver.
Estava commovido. Havia muitos annos era intimo do marquez de Sá.
Jardim da Praça Dom Luís e monumento ao Marquês de Sá da Bandeira, fotografia de Paulo Guedes.
Imagem: Arquivo Municipal de Lisboa
Sobre a tarde, á sombra da nogueira que plantara e onde a Nympha de Ovidio soltaria dolorosos carmes, ia descançar finalmente o lidador aventureiro. Cahia o sol, atirando as frechas no occaso por aquella paizagem encantadora, onde os freixos rumorosos e frondeados são dos mais bellos da Europa, e o rio corta a campina, divertindo os seus regatos crystallinos pelas hortas e pomares.
Era já muito noite quando chegámos a Valle de Lobos. O jantar correu pouco animado. Herculano olhava pensativo para a labareda serena e azulada dos toros de oliveira que ardiam no fogão.
Depois animou-se, e falando sobre o marquez de Sá e sobre a historia da nossa vida politica e social, no percurso dos últimos quarenta annos, esteve grandioso, porque Herculano, não tendo peito para orador nos grandes auditórios, era soberbo, e era certo género sem rival, na conversação intima.
Pouco mais de anno e meio depois, n'aquella mesma casa, o marquez de Sabugosa e eu viamos apagar-se a luz faiscante e guiadora que nos illuminara nos dias alegres e fecundos da nossa mocidade! (1)