quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Praia de Santos

A velha praia de Santos, com toda a sua physionomia amphybia, archeologica, ainda eu a vi. O que é Espozende, Vianna, Caminha, ou Villa do Conde, e o que foram as Ribeiras de Alfama, vistas e descriptas por Villalba e Pedro de Medina, foi-o a nossa saudosa, e hoje morta, praia de Santos.

Panorâmica da Lisboa ribeirinha antes do Terramoto de 1755,
tomada a partir dos jardins do palácio do Marquês de Abrantes (onde hoje se encontra a embaixada de França).
Museu de Lisboa

Depois... veiu a gradual transformação da marinha com as machinas de vapor; e Portugal, que não podia competir com os centros manufactureiros da Inglaterra, caiu. Morreram estes nossos estaleiros tão atarefados, e ficou annos moribunda a praia de Santos.

Veiu o Aterro, acabou de a matar, e sepultou-a. Não quero mal ao Aterro, entenda-se bem. Gosto muito do passado, gosto mais d elle que do presente, mas o presente tem os seus direitos. O que é pena é que as Camaras Municipaes, antes de aniquilarem a orla marítima característica de Lisboa, não conservassem vistas photographicas d'esta praia de Santos, que era um admirável especimen do mundo antigo portuguez, e lembrava os companheiros do Gama, e cheirava á salsugem dos Lusíadas! (...)

Pelo lado do Sul, batia o Tejo aos pés da muralha do jardim, c ainda se dava esse facto em 1823. O Tejo foi fugindo, e já por 1848 a praia de Santos começava a ser habitada. O popular fogueteiro italiano José Osti tinha ahi na praia a sua fabrica de fogos de vista, designada num almanack de 1849 sob o numero municipal 117. Junto á fabrica edificou elle por esses annos a sua casa, elegante e pintadinha, com gelozias verdes; fazia então um bonito effeito aninhada á beira das aguas (note-se que a rampa de Santos não existia). Essa casa tem hoje os n.os 148 a 172 da rua de Vasco da Gama (o n.° 148 é uma escada ao ar livre).

Lisboa finais de setecentos Henri L`Éveque Arquivo dos Portos de Lisboa, Setúbal e Sesimbra 3200 03 cor.jpg

Moraram no seu palacio estes Lencastres, um dos ramos da descendencia do Duque D. Jorge, Condes de Figueiró, depois Condes de Villa-Nova de Portimão, e por fim Marquezes de Fontes, e depois de Abrantes, pela extineção da linha primogênita dos Almeidas Condes de Abrantes, ficando a varonia sendo Lencastre. No século passado a herdeira Condessa de Villa-Nova casou com D. Manuel de Tavora (o que esteve dezoito annos prezo, sem se saber porquê). (...)

Lisboa Vista da praia dos Santos em 1788 feita por Alberto Dufourcq.
Em primeiro plano, sobre a praia, observam-se os estaleiros navais, com intensa actividade de reparação naval e estiva. Na linha do horizonte, toda a frente ribeirinha da zona de Santos, prolongando-se até ao Cais do Sodré. No topo do Alto de Santa Catarina destaca-se a desaparecida igreja da mesma denominação, demolida em 1833, seguida do casario do bairro da Bica que preenche o vale. No lado oposto observa-se a Ermida das Chagas. Sobressai ainda o grande edifício que foi o Palácio dos Duques de Valença.
cf. Museu de Lisboa

Em duas palavras: no projecto geral de Pezerat ganhavam-se sobre o Tejo vastos terrenos, desde o Arsenal até á torre de Belem, orlavam-se com um caes em linha recta traçado a 40 metros fóra da torre, e collocava-se um porto de construcção na bocca do rio de Alcantara.

Casamento de D. Maria II com D. Fernando II em 1836.
Igreja de Santos o Velho, óleo sobre tela da autoria de Tony de Bergue, meados do século XIX.
Pertence ao Ex.mo Senhor Pedro Costa.
Arquivo Municipal de Lisboa

A medonha febre amarella de 1857 obrigou o Governo, a Municipalidade, o publico inteiro, a pensar, com maior seriedade ainda do que até ali, nas incalculáveis vantagens que á saude publica deviam provir de. se entulharem de vez os lodos mephyticos da Boa-Vista, estendendo aos pés de Lisboa, como um estrado enorme, um longo aterro, que tirasse á Capital a causa mais efficaz das epidemias, que já muita vez a tinham assolado.

Aterro da Boavista, Entrada da avenida 24 de Julho junto à Igreja de Santos, 1863.
Archivo Pittoresco


Toda a opinião dirigente se empenhou no assumpto; trabalharam os poderes do Estado; e logo em sessão da Camara Municipal de 15 de Maio de 1858 se recebia communicação de ter o Director do Instituto Industrial, que era então o honrado José Victorino Damasio, dado começo ao aterro entre o forte de S. Paulo e a praia de Santos; o illustre engenheiro sollicitava coadjuvação do Município. (...)

No cais do Tejo, Alfredo Keil, 1881.
MNAC
(museu do Chiado)

Em Maio de 1858 era, como disse, o sabio Director do Instituto Industrial, o Engenheiro José Victorino Damasio (velho alto, serio, grave, que ainda conheci em casa de meu Pae) encarregado de proceder sem demora ao aterro da margem desde o boqueirão da Moeda até á praia de Santos por conta da empreza Lucotte. Eram apenas uns cincoenta metros furtados ao rio, sustentados por um paredão armado de quatorze linguetas para contraforte, e planos inclinados para desembarque.

Começou-se logo com a actividade que sabia incutir a tudo o notável trabalhador, technico de primeira ordem, cujo glorioso nome ficou a uma das ruas do novo Aterro. (...)

A obra não parava; em 9 de Maio de 1859 propunha o Vereador Dr Lisboa que se obrigassem os donos de barcos varados na praia de Santos a removerem-n-os dentro de quinze dias para se dar começo ao entulhamento2; e em 28 de Novembro seguinte arrematava-se o verdugo para a construcção da muralha do aterro da velha praia.

Finalmente, depois de tantos e tão grandes trabalhos, achava-se em Agosto de 1867 concluido o Aterro desde a praia de Santos até ao Arsenal da Marinha. (1)



(1) Julio de Castilho, A ribeira de Lisboa, Lisboa, Imprensa Nacional, 1893

Leitura relacionada:
Rua de Santos-o-Velho I
Idem, II
Idem, III
Idem, IV
Idem, V
Idem, VI
Idem, VII

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