quinta-feira, 26 de dezembro de 2024

José de Lemos

Foi um ser humano extraordinário, o maior desenhador do segundo modernismo, um invulgar contador de histórias para crianças, um infatigável trabalhador e, também, um pintor de mão feliz. Foi, com o meu pai e outros mais, fundador do «Diário Popular», e criador da admirável Página Infantil daquele vespertino, onde, por sua estima, comecei a escrever, com 14 anos.

Hoje há palhaços, José de Lemos, Diário Popular (página infantil), 31 de março de 1956
Hemeroteca Digital de Lisboa

Devo, ao Zé de Lemos, a ternura, o afecto, a amizade sem mácula, a bonomia, a solidariedade e a grandeza humana. Logo pela manhã, 7 horas, sentava-se ao estirador, colocado na Redacção, e desenhava e ilustrava todos os textos que lhe entregavam (...) (1)

José Neves de Lemos (1910-1995) foi um desenhador, ilustrador e escritor.

Nasceu em Lisboa, e cursou a Escola Preparatória Rodrigues Sampaio. Muito cedo revelou a sua vocação para o desenho. Inconformista por natureza, considerava-se um autodidacta perante a arte que escolheu.

José Neves de Lemos, 1980
MutualArt

Adolescente ainda começo a colaborar em diversas publicações, como o «Rebate», jornal republicano, um dos primeiros onde viu desenhos seus publicados. Mais assiduamente, o seu traço apareceria nas páginas de «O Papagaio», «Sempre Fixe» e «Diário de Lisboa». Ao ingressar no quadro de fundadores do «Diário Popular», José de Lemos passou a desenhar quase exclusivamente para aquele jornal.

Riso amarelo, Diário Popular, José de Lemos, 1974
José de Lemos, Riso amarelo e outros cartoons

Como "cartoonista", notabilizou-se com o "Riso Amarelo", uma rubrica com desenhos e comentários assertivos sobre a realidade que marcou a sociedade através das páginas do antigo conhecido vespertino. (2)

José de Lemos (Lisboa, 1910-1995) iniciou sua carreira na imprensa em 1927. Destacou-se pelas suas ilustrações em textos de ficção e no suplemento Acção Infantil. A partir de 1942, ilustrou generosamente o Diário Popular, especialmente nos suplementos Volta ao Mundo e Sábado Popular.

O seu trabalho na Página Infantil foi uma exceção na literatura infantil da época, chocando o público pela ausência de lições de moral e de elegias à História Pátria.

Histórias malucas, José de Lemos, 1947
Almanak Silva

José de Lemos também ficou conhecido pelas suas crónicas mordazes, incluindo a famosa rubrica «Riso Amarelo», que retratava a vida em Lisboa durante a ditadura salazarista. José de Lemos faleceu em 1995, quatro anos após a última edição do Diário Popular, o jornal que foi a razão e o legado da sua vida. (3)

Desce a Calçada da Estrela e sobe a do Combro. Todos os dias. Da casa em Campo de Ourique para o Diário Popular, na Rua Luz Soriano, ao Bairro Alto. No jornal, acende o candeeiro, senta-se ao estirador, afia o lápis, limpa o aparo, inteira-se das notícias do dia.

Por dezenas de anos, será esta a rotina de José de Lemos, um caso à parte na multidão de génios da ilustração portuguesa do século XX. O seu traço modernista, de altos contrastes, não terá mestre nem discípulos. A literatura para crianças e o vespertino Diário Popular marcarão a sua vida e obra.

José de Lemos
José de Lemos, Riso amarelo e outros cartoons

Lemos (Lisboa, 1910-1995) inicia-se na imprensa no satírico Sempre Fixe. Brilhará também n’O Papagaio, revista infantojuvenil católica, e no suplemento Acção Infantil, ensaio das futuras páginas dedicadas aos miúdos no Diário Popular. (4)

José de Lemos por Osvaldo Macedo de Sousa, in JL – Jornal de Artes e Letras de 19/3/1985

Quem é José de Lemos? Antes do mais, um «histórico» do humor português, um sobrevivente daquela plêiade de humoristas que teimaram fazer humor durante o salazarismo, um companheiro de Stuart Carvalhais, Francisco Valença, Carlos Botelho, Teixeira Cabral… trabalhando no «Sempre Fixe». No «Diário de Lisboa» e finalmente no «Diário Popular», onde ainda hoje se mantém. Do trabalho realizado neste periódico publicou há tempos um álbum de «Riso Amarelo e outros cartoons».

Riso amarelo, Diário Popular, José de Lemos, 1979
Fidalgo O Gosto do Vinho-Restaurante, Wine Bar & Tapas (fb)

Como segundo traço para o seu retrato, temos que o encarar, não como um cartoonista, mas como um jornalista, um redactor de jornal que optou pela grafia do desenho em vez da escrita. Uma opção que pode paradoxa, num escritor reconhecido de sensibilidade e talento.

Esse será o terceiro traço e, talvez, aquele que mais lhe agrada – o de escritor de contos infantis. Foi também este que mais satisfações lhe deu. José de Lemos tem vários livros de contos publicados, vários prémios e está representado em Antologias Internacionais de Contos Infantis. Esta carreira literária começou-a no «Diário Popular»: «Comecei a fazer a página infantil do “Diário Popular” e António Pedro (que dirigia então o jornal) é que me incentivou nos contos; moralista é aquele que aconselha a não fazer aquelas coisas que ninguém pensou fazer. Eu, pelo contrário, fazia crítica e até nestas histórias infantis fazia crítica política.»

OMS – José de Lemos é um contista, um redactor e perante isto não é necessária a seguinte pergunta, mas o esquema proposto no início desta série de entrevistas assim o impõe. Considera-se humorista, cartoonista ou caricaturista?

José de Lemos – Não me considero nada. Eu sou é pintor, apesar de não gostarem do que eu faço. Humorista? Humor é dizer algo com uma certa crítica, uma certa ironia. Eu não desenho para fazer humor, mas para fazer crítica e, criticando-se com ironia, é-se muito mais incisivo.

José Neves de Lemos, 1974
MutualArt

Desta forma, o muito sério pode vir a ser cómico, e o cómico vir a ser sério. O humorismo é uma coisa muito séria e deve fazer pensar, mais do que rir. No meu trabalho, faço tudo para ser um jornalista, porque a pintura é uma reportagem, o desenho é reportagem… a crítica são artigos. O cartoonista é um redactor, um trabalhador de jornal igual aos outros.

OMS – Apesar do desprezo intelectual pela comicidade, consideras o humorismo gráfico dentro das artes?

José de Lemos – O mais importante que o artista faz, é aquilo que está a fazer no momento. A arte é arte, é tudo. A dança – o bailado nasce logo nos primeiros gestos das crianças. Picasso dizia: “Arte é o homem que entra nu na floresta e sai de lá vestido”. Todas as profissões devem ser uma arte, e todas devem servir umas às outras. Arte é aquilo que fazemos com amor, respeito, ambição.

A grande maravilha (folheto publicitario Gazcidla), José de Lemos, 1958
Garfadas on line

OMS – Neste campo quem são os teus artistas preferidos? Algum deles o influenciou?

José de Lemos – Não tive influencias. Tenho respeito por todos. Fui amigo de todos os grandes, do Stuart…. Admiro o João Abel Manta porque para mim, ele é o “operário”, trabalha tudo com profundidade.

OMS – Achas que trouxeste alguma coisa de novo ao humor gráfico português?

José de Lemos – O que eu trouxe foi mais para as crianças com o “dr. Sabichão”, “Hoje há palhaços”… fazia historias e bonecos, mas o meu maior orgulho é a secção de “Palmo e meio”. Nada há mais bonito do que a criança a sorrir, mesmo que tenha os dentes podres.

OMS – A existência da censura até 1974 influenciou a tua obra? Tens algum desenho censurado?

José de Lemos – Alguma coisa, mas havia sempre maneira de dizer e fazer as coisas de forma que a censura não compreendesse. O pior era o chefe de redacção, que não só censurava, como nos criticava em público.

OMS – Eça de Queiroz dizia que o humor no constitucionalismo é pelo menos uma opinião. Para ti é uma opinião, ou uma forma de manipulação?

José de Lemos – Acho que deve ser uma opinião sobre a vida cara, os impostos… Devemos tentar ser justos, em vez de servir os clubes, os partidos…. O humor deve ser elevado e não ordinário. Gostava que o humor fosse feito por «gentlemans»

Riso amarelo, Diário Popular, José de Lemos, 1974
Exposição Riso amarelo, Kuentro 2

OMS – O humor gráfico português tem actualmente alguma característica específica, que o distinga do que se realiza no resto do mundo?

José de Lemos – Acho que sim, apesar de ser um pouco «saloio», do ponto de vista estético. Os públicos são quase todos iguais, dependendo os matizes unicamente do civismo de cada um. Tudo depende do grau de educação. O humor do povo é um pouco cruel, pois o nosso homem do povo crê saber tudo e ter solução para tudo. O humor em Portugal é a discussão entre uma pessoa mal educada e outra bem educada.

OMS – Hoje pode-se dizer tudo o que se quer através do desenho?

José de Lemos – Hoje pode-se e não se deve dizer. Eu sou a favor da autocensura, e que não seja preciso censuras estranhas, o que não impede a crítica ou a irreverência- Eu sou irreverente, mas peço licença, desculpa.

José de Lemos, Riso amarelo e outros cartoons
Humor fabricado em Portugal
Estaminé, Estúdio de Arte Comercial, Lda. s/d (197?)


Acabada a entrevista lá o deixamos entregue ao seu humor amarelo, triste; deixamo-lo com os seus belos contos e um grande sorriso para as crianças; deixamo-lo resmungando contra a roupa molhada que pinga sobre os transeuntes, contra a má educação das pessoas. (5)


(1) Baptista Bastos in José de Lemos, Riso amarelo e outros cartoons, Humor fabricado em Portugal, Estaminé - Estúdio de Arte Comercial, Lda. s/d (197?), cf. artelection
(2) José de Lemos, Riso amarelo e outros cartoons, idem (fb)
(3) Exposição José de Lemos em Matosinhos, clube da criatividade portugal
(4) José de Lemos, idem
(5) humorgrafe

Mais informação:
Este jornal pertence a… Almanak Silva
O Compadre Simplório tem os pés tortos, idem
Histórias malucas, ibidem
Fidalgo O Gosto do Vinho-Restaurante, Wine Bar & Tapas (fb)
José de Lemos na Casa do Design, TVsenhoradahora
Exposição Riso amarelo, Kuentro 2
José de Lemos, Abysmo
A grande maravilha, segundo José de Lemos, Garfadas on line
José Neves de Lemos, MutualArt
BestNet Leilões

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Largo do Costa Pinto (1887)

Ainda bem que os burros cacilheiros não estão no Largo, porque se pilham o Costa Pinto todo vestido de verde, como Porphyrio o pintou, chamam-lhe um figo, mesmo á porta do café "Progresso", n.° 79. (1)

Largo do Costa Pinto (Cacilhas), Porphyrio Henriques da Fonseca, 1887
(apresentado na décima quarta exposição da Sociedade Promotora das Bellas-Artes, quadro n.° 65)
Cabral Moncada Leilões

Porphyrio Henriques da Fonseca (1850-?)

Natural de Torres Novas, filho de Francisco Henriques da Fonseca e Engrácia Maria da Cunha, foi admitido à frequência da ARBAL em 6 de Outubro de 1867, onde começou por frequentar as aulas de Desenho Histórico e Desenho de Arquitectura Civil.

Foi discípulo de Joaquim Pedro Aragão, Vítor Bastos, Miguel Ângelo Lupi, Tomás da Anunciação e Joaquim Pedro de Sousa em Desenho Histórico, e de João Pires da Fonte e José da Costa Sequeira em Arquitectura.

No primeiro ano lectivo do curso de Desenho Histórico (1867-1868), foi premiado com um partido pecuniário de 20$000 réis, na classe de Desenho por Estampa.

Concluída a sua formação em Desenho Histórico, que aconteceu no ano de 1870, foi admitido ao estudo superior da Pintura Histórica, donde se despediu no dia 5de Junho de 1873, por se achar pouco habilitado para o concurso trienal desse ano. No entanto, em 1874, figurou com pintura na 10.ª exposição da SPBA e edições seguintes. (2)


(1) Pontos nos ii, 26 de maio de 1887
(2) Alberto Faria, A Colecção de Desenho Antigo da Faculdade de Belas-Artes de Lisboa (1830-1935)... vol. iii

Artigo(s) relacionado(s):
Café Progresso, Largo do Costa Pinto

Jayme Arthur da Costa Pinto:
Almada virtual (Google search)
Mar de Caparica (Google search)

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Finis terrae

A última vista da cidade será uma cortina de gaivotas enfurecidas a levantarem-se entre mim e o Tejo.

Na altura estarei, ou estou ainda, sentado num café-snack do Terreiro do Paço junto ao cais dos cacilheiros, com uma larga vidraça a separar-me do rio. Café Atinel, que nome mais estúpido. Olho as mesas vazias e pergunto-me por que razão é que um sítio assim, tão privilegiado, consegue estar desconhecido. Por mim não quero outra coisa: barcos que chegam, barcos que partem, gente de entrar e sair a servir-se ao balcão, e eu sentado em cima do Tejo.

Lisboa, Atinel (Lenita) bar, Cais dos cacilheiros, ed. Cómer
Delcampe


Tal como estou tenho a cidade pelas costas. Comércio, multidão, Europa, fica tudo para trás. Lá as pessoas andam todas a perguntar as horas umas às outras, enquanto que neste reduto para aqui esquecido sabe-se do correr do dia pelo mudar da cor do Tejo, e não me digam que não é uma felicidade estar-se assim, à mesa sobre as águas, com gaivotas a saírem-nos debaixo dos pés e a passarem-nos a dois palmos dos olhos num bailado de gritaria.

Esplanada junto da Estação Sul e Sueste (Atinel/Lenita), Artur Pastor (1922-1999), década de 1980
As Cores de Lisboa


Tempo bom, o desta solidão. tempo melhor ainda, lembram os eméritos de biblioteca num ulissiponês de fazer inveja , quando se via a olho nu o promontório da Lua por toda essa costa além. Tempo, dizem, em que nas margens da Outra Banda havia areias que escorriam ouro (Marco Terêncio fala disso) e pastagens celestes onde as éguas emprenhavam pelo vento. Tempo de poeiras luminosas e lágrimas lunares. E de pérolas. e de tritões. Tritões cantadores como aquele que consta da Descrição da Cidade de Lisboa de Damião de Góis." (1)


(1) José Cardoso Pires, Lisboa, Livro de Bordo, vozes, olhares, memorações, Lisboa, Dom Quixote, 1997

Artigos relacionados:
A janela de José Cardoso Pires
Costa da Caparica de José Cardoso Pires
A charrua entre os corvos
O anjo ancorado

Leitura relacionada:
Sérgio Massagli, Lisboa, Livro de bordo, entre os espacos...

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Casa de campo por Adelino Nunes

Foi ainda há muito pouco tempo acabada de construir, esta bonita casa, na mata da Costa da Caparica, sendo propriedade do Ex.mo Sr. José Pereira Mendes.

Costa da Caparica, casa de Campo na Mata, projecto do arquitecto Adelino Nunes.
Arquitectura, revista mensal, julho 1931

O projecto é da autoria do nosso colaborador, o arquitecto Adelino Nunes, que neste género de edificações tem produzido algumas boas casas, tanto no que respeita a fachadas agradáveis e de boa proporção, como na disposição das plantas, que é sempre motivo de sério estudo.

Costa da Caparica, casa de Campo na Mata, projecto do arquitecto Adelino Nunes.
Arquitectura, revista mensal, julho 1931

Apresentamos só a fachada principal, porque as restantes fachadas são a sequência dessa, como não podia deixar de ser. A construção desta casa é muitissimo simples, mas também, como os leitores vêem, muitissimo agradável.

O muro da frente que dá para a estrada, com os seus motivos de tejolo, completa o conjunto e estabelece euretmia com a paisagem. (1)


(1) Arquitectura, revista mensal, julho 1931

domingo, 25 de agosto de 2024

Carolina do Aires por Maurício de Vasconcelos

No domingo passado, dia 30 de Março o dia começou bem cedo. Fui para a Costa da Caparica, visitar o restaurante Carolina do Aires e a casa do Dr. Luciano Carvalho (1964), uma casa desenhada em contexto urbano e com um programa diferente das que estou a estudar, por se tratar de uma casa de férias.

Costa da Caparica, década de 1970
Delcampe

Dirigi-me ao restaurante Carolina do Aires e uma vez que era hora de almoço decidi parar e aproveitar a oportunidade para entrar no restaurante e assim "sentir na pele o espaço".

Proposto, inicialmente, como um objecto para uma permanência de carácter temporário, Maurício desenha toda a estrutura em madeira, sendo rapidamente desmontável caso fosse necessário.

Costa de Caparica
Alçados do restaurante Carolina do Aires pelo arquitecto Maurício de Vasconcelos
Arquio Histórico de Almada


Apesar de se encontrar muito alterado, pelo menos exteriormente, percebe-se claramente a intenção do arquitecto, a procura de uma ligação interior exterior.

Costa da Caparica, restaurante Carolina do Aires, década de 1980.
Delcampe

Por dentro ficámos maravilhados com a dinâmica imposta pela estrutura da cobertura e por todo o ambiente de recolhimento e conforto proporcionado pela madeira. (1)


(1) Single family houses by Mauricio de Vasconcelos, 1950-1970

Nota: são ainda de Maurício de Vasconcelos a autoria dos equipamentos de praia de apoio aos banhistas no âmbito da campanha de 1969, "Há e mar, há ir e voltar" de Alexandre O'Neil.

quarta-feira, 14 de agosto de 2024

Gil Vicente (os tipos na Copilaçam de 1586)

Estava a rainha D. Maria doente de parto. Nascera-lhe o que ia ser D. João III, o colonizador do Brasil. Uma noite, irrompe-lhe pelo quarto do resguardo, o ourives da rainha mãi, Gil Vicente, fantasiado de pastor, o qual, subreptício e surpreendente, como seria a sua obra inteira, se pôs a recitar, em homenagem à soberana e ao filho augusto, o que depois se veio achamar o monólogo da Visitação ou do Vaqueiro (1502) (...)

Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)

Por quanto a obra de devoção seguinte procedeu de uma Visitação que o autor fez ao parto da muito esclarecida rainha Dona Maria, e nascimento do muito alto e excelente príncipe Dom João, o terceiro em Portugal deste nome, se põe aqui primeiramente a dita Visitação por ser a primeira cousa que o autor fez e que em Portugal se representou, estando o mui poderoso rei Dom Manuel, a rainha [Dona Leonor, sua irmã, a infanta Dona] Beatriz, sua mãi, e a senhora duquesa de Bragança sua filha, na segunda noite do nascimento do dito senhor.

Auto da Visitação (ou Monólogo do Vaqueiro)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)

E estando esta companhia assim junta, entrou um vaqueiro, dizendo:

PARDEUS! Sete arrepelões
me ferraram à entrada,
mas eu dei uma punhada
num daqueles figurões (...) (1)


E por ser cousa nova em Portugal, gostou tanto a rainha velha desta representação que pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas do Natal, endereçado ao nascimento do redentor. E porque a substância era mui desviada, em lugar disto fez a seguinte obra. (2)


(1) Celebração Vicentina
(2) Noémio Ramos, Gil Vicente, Auto da Visitação

Artigos relacionados:
Gil Vicente e outros (os tipos nas folhas volantes)
Gil Vicente (personas)
Embrechados (3 de 5)

Mais informação:
Carolina Michëlis de Vasconcelos, Notas Vicentinas, preliminares de uma edição critica das Obras de Gil Vicente, 1912
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1562)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)
Uma proposta crítico-discursivo-filológica de análise da censura: emendas inquisitoriais na edição de 1586 da Compilação de todas as obras de Gil Vicente
Gil Vicente, Teatro 1502-1536
Gil Vicente, o autor e a obra
Denise Rocha, Xilogravura do Auto de Inês Pereira (1523) de Gil Vicente
Conde de Sabugosa, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911

Leitura relacionada:
Maria José Palla, Gil Vicente as artes plásticas
As Barcas, de Gil Vicente, cinco séculos depois
Gil Vicente (HathiTrust)

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

Gil Vicente e outros (os tipos nas folhas volantes)

Quanto às figuritas, ideadas evidentemente para representação de tipos da vida real, nos trajes da época, algumas, e exactamente as mais antigas, vieram com certeza de Espanha (Salamanca, Burgos, Toledo, Medina dei Campo, Sevilha, salvo erro), facto que está em harmonia com outros capítulos da Historia das Artes e com a Historia da Tipografia na Península.

Auto de Inês Pereira
07/vii. Escudeiro (1), Inês Pereira (2), Lianor Vaz (3), Mãe (4)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Outras, feitas cá, e que não passaram a fronteira, imitam pelo menos, modelos inventados no pais vizinho. Nas oficinas de impressores de Lisboa, como o activíssimo francês Germain Gaillard que imprimia para ambos os países de 1519 a 1560 (e para o tempo e o género de que estou a tratar, era preeminente) encontravam-se e influenciaram-se mutuamente desenhadores e gravadores de ambas as nações.

As mais antigas e mais influentes que conheço, datam ainda do século xv, e foram desenhadas e talhadas de propósito como ilustração de certos textos de grande arte, e poesia elevada, a clássica de então, como a obra-prima do marquês de Santillana, chamada Dialogo de Bias contra Fortuna, as Trecientas de Juan de Mena, as Coplas de Jorge Manrique Recuerde, el alma dormida, a sátira anónima de Mingo Revulgo. E representando lá figuras simbólicas de alto coturno passaram, no primeiro e segundo quartel do século xvi, a representar cá tipos cómicos e familiares, de soco, ou pantufos.

Eu podia documentar isso, reproduzindo um dos Sete Sábios da Grécia — o Bias, do Dialogo — vestido de opa, e de chapeu-coroa na cabeça, virado de perfil para uma dama de cabelos soltos, tendo uma melena agarrável a cair na testa, e que representa a Fortuna, em atitude de lhe expor, de indicador estendido, um teorema complicado. E esse mesmo figura como profeta Arribato em frente do popular e pastoril Mingo Revidgo, símbolo do povo, espécie de Zé-Povinho do século xv.

E em terceiro lugar transformou-se no Eneas, de certa idade, de Elissa Dido (1536). No Romance de Toledo, do deshonesto Luis Hurtado de Toledo, é o expositor das belezas da cidade pátria, pessoa séria ainda (1552). Imitado quanto à posição e no traje, mas aburguesado, de roupão e boné, o filósofo-profeta e conselheiro desce, no nosso Auto da Bela Menina, e nos do Chiado que se conservam entre os Reservados de Lisboa, a ser pai de familia que endoutrina ou admoesta a filha.

Desse mesmo modo evolucionam outros modelos. E como os tipos que caracterizam o auto dos sucessores de Gil Vicente, são relativamente poucos, os principaes reaparecem frequentes vezes, estragando-se com o muito uso, mas tornam depois a surgir, repetidos em miragem (au miroir), como o famoso pelicano da portada dos Lusíadas.

É o que aconteceu ao tipo 1 do Namorado; mas também à criadinha; e ao cavaleiro de barbas em Autos diversos dos nossos. O escudeiro namorado, de pé são e inteiro numa poesia à morte da princesa Dª Maria (1548), assim como na Pratica de Compadres do Chiado, e também no nosso Auto de D. Fernando, aparece com pé quebrado, e a flor deteriorada no Auto do Bela Menina e no dos Enanos. E depois torna a aparecer, p. ex., no Auto da Natural Invenção (refeito), completo e escorreito, mas visto au miroir.

Auto de Dom Fernando
15/xv. Zagal (13); 1; D. Fernando (14); 8, 10
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Nos nossos dezanove autos (positivamente só em doze, porque os n° I-VI e o n° XII tem, em lugar de figurinhas avulsas, scenas inteiras, compostas ad hoc), o que, à razão de quatro por auto, seriam quarenta e oito, conto apenas dezaseis modelos diversos, empregados em regra com tino, mas algumas vezes à toa.

Em geral são os Autos religiosos e os de assunto cavalheiresco que ostentam como gravura um quadro composto ad hoc. Curioso, e único no seu género, é o que ilustra uma das poesias feitas à morte da filha de D. João iii (Dona Maria, esposa de Felipe ii, e mâe do desventurado príncipe D. Carlos). Ela está estendida numa cama de baldaquim, sobre estrado, o filhinho no braço direito em atitude de o passar à aia ajoelhada. No fundo está o medico. Fora da porta, a Morte. A poesia escrita pelo semiportuguês Jorge de Montemor (glosa de dez das Coplas de Jorge Manrique), é dedicada a outro português ilustre, um dos Silvas, regedores da Justiça. Pertence a uma serie de poesias luso-castelhanos sobre o mesmo assunto.

Os que mais vezes se repetem, são naturalmente os que representam o namorado, noivo, ou pretendente da peça, e a dama, sua amada e amante.

Auto das capelas
16/xvi Auto das capelas. 13, 8, 1, 6
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Eis como Ele aparece. De capa curta (que ora parece ter capuz, ora não) em que está embuçado, com o gesto tradicional; espadim; ramito de flores na mão que esconde; pluma na gorra; de porte arrogante; olhando de perfil para a direita (para a esquerda apenas, na reprodução restaurada e tardia au miroir). E eis o que é: o escudeiro tiranete, da Inês Pereira, de que os autores quinhentistas trocejavam tanto; o galante, da Farça Penada; o António Pacheco, do Auto de D. Fernando; o cavalheiresco D. Luis; o pretendente de Dª Belicia, irmã de D. André; André Velez, homem nobre das Capelas; o Fidalgo de França, da Bela Menina; o noivo, no auto das Regateiras (e fora desta publicação, o Namorado do Auto terceiro do Chiado); e novamente e tardiamente o D. Rodrigo Manrique, numa Glosa de Recuerde el alma, dedicada a Dª Leonor, rainha de França em 1557) e reimpressa em 1602 por António Alvares, um dos tipógrafos principaes do período que decorre de 1580 a 1640, conforme já expliquei.

Auto da bela menina
11/xi. 1, criada (10), pai (11) bela menina
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Pois bem, esse escudeiro-cavaleiro, conheço-o também de numerosas obras castelhanas, impressas parte realmente em Espanha, parte em Lisboa. Vi-o, p. ex., na Tebaida, 1546 (Salvá, Catálogo, 1436. Impressa em Sevilha em casa de André de Burgos que parece passou para Portugal (Évora), chamado pelo Cardeal-Infante), no Espejo de enamorados (s. 1. n. a.), e numa Glosa de Pedro de Aguilar, dedicada ao Regedor das Justiças de Portugal, Jorge da Silva, a qual julgo ter saido da imprensa de Germão Galharde. E além do tipo que tem flor ao peito, ha outro quasi igual, mas sem flor; e mais um de cavaleiro de certa idade, de barbas, ambos imitações e variantes do primitivo.

Não me importo agora com ele, porque não figura nos nossos autos.

Neles ha contudo outro modelo diverso de verdadeiro cavaleiro, com ares de cortesão, embora sem espadim, de pernas cruzadas e corpo en-face, capa aberta de sorte que se ve o gibão, gorro chato sem pluma. Queira o leitor olhar para o Auto de D. Fernando e D. André, em que a presença de dois homens da mesma categoria social exigia dois desenhos diferençados. Fora desta publicação já o vi em dois dos Autos do Chiado, e na Glosa já citada de Pedro de Aguilar.

Auto de Dom André
18/xviii. 14, 3, 10 (au miroir) dama (15)

Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Do pai de certa idade, conselheiro nato da sua família, já falei (n° xi).

De dois tipos de soldados, um (que também faz as vezes de capataz de pastores) tem vara longa na mão (7, no auto xiv e xvii, vilão no Auto de Vicente Anes Joeira, no dos Enanos, e no dos Ladrões, é pastor numa edição das Trovas de Crisfal, de 1639); outro virado de costas (8) pega na espada (auto n° x, xiii, xv, xvi, xix).

Auto dos enanos
17/xvii. 13, 7, 1, 2

Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Os ratinhos e zagaes, simples ou parvos, aparecem também sob dois aspectos diversos: um de capuz, encostado ao bordão ou cajado, procede das Trovas de Crisfal (1536) e da Egloga iii de Bernardim Ribeiro, em que representa Amador (9, nos autos x, xiii, xiv); outro, em cabelo, com um naco de pão na direita (13, em xv, xvi, xvii) procede do pastor Silvestre, e esse deriva directamente das Coplas de Bias que já mencionei. É o povo ingénuo e inocente, o qual simboliza, toscamente, não posso negá-lo.

Auto de Vicente Anes Joeira
14/xiv. 9, 6; beata regateira (12), 2
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Um turco aparece naturalmente no Auto de D. Luis (mal classificado todavia como Bras-Lourenço, que é cristão).

Auto de Dom Luis e dos turcos
19/xix. I, 2, 3; turco (16)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Um mendigo descalço, no Auto das Regateiras.

Auto das regateiras
08/viii. Mendigo (5), grupo de duas damas (6), 1, 4
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Agora o sexo feminino. Ela, menina em cabelo (2) segundo a praxe da idade-media, recatada, braços e pés envolvidos no vestido amplo e modesto, atado com um cinto-cordão, que ela segura com a esquerda, a direita apertada significativamente sobre o peito, tem o nome ora de Inês Pereira (vii); ora de Dona Clara (xix), Dona Paula (xvii), Florença (x), Bela Menina (xi); mas também é a filha pobre, mas fermosa e mimosa, da Regateira (vii); e incorrectamente a moça dos Dois escudeiros ladrões (ix). Mas antes disso fora Elissa Dido!

Auto dos dois ladrões
09/ix. 1, 2, guerreiro de vara na mão (7), guerreiro de costas viradas (8)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Onde ha mais de uma, a segunda aparece de braços cruzados, mas num gesto menos simétrico do que hoje usam em Portugal as senhoras, de vida quasi de freiras. É a Dª Belicia do Auto de D. André e já fora a Maria de doce memoria, de Crisfal (1536), a donzela das Coplas de Pedro de Aguilar, e Ana, irmã da Rainha Dido. Em Portugal também é a Freira dos Ditos de Joana da Gama, sentenciosos, de 1550 ou 1575 (v. Innocêncio da Silva, x, 140).

A mãe, viuva, velhinha de costas curvadas (4), está envolvida numa manta-veu cumprida (nos autos vii e viii). Outro modelo (12) originariamente de beata, segundo a minha ideia, mostra-a com um grande rosário nas mãos (xiv).

De touca, recatada na atitude e no traje (3), representa uma vez a hilariante Leonor Vaz de Gil Vicente (vii), e outra vez a irmã, já madura mas ainda pretendida de D. André (xviii).

Mais simples, de avental e vestido curto, com um embrulho debaixo do braço, temos a criada (10), moça (xii) e donzela (xv).

Auto da farsa penada
13/xiii. 9, I, 8, 10
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

O grupo de duas senhoras, de vestes roçagantes, olho ao ceo e uma mão erguida, cuja origem ainda não cheguei a apurar, representa a figura alegórica da Verdade, acompanhada da Justiça, no Auto da Festa, mas veio a figurar mãe e filha (6) no Auto das Regateiras, e no de Vicente Anes Joeira (refeito).

Auto de Vicente Anes Joeira (refeito)
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

A fortaleza de ameias, que se vê, sem motivo, no Auto de Florença, já a vi em Dos cartas de refranes castelhanas, e alhures.

Auto de Florença
10/x. Pastor (9), I, 2, fortaleza
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

Não tive ocasião de estudar a scena, tosquíssimamente feita, que precede o Duque de Florença, mas suponho provêm de uma novela de cavalarias. A caravela que enfeita o Auto de D. André, por realmente terminar com um embarque, é a do Naufrágio de Sepúlveda (1554), de Marco Paulo (1502) e da Estoria de Vespasiano (1496).

Eis em resumo, ou num quadro, as figuras numeradas dos Autos profanos:

07 Auto de Inês Pereira. Escudeiro (1), Inês Pereira (2), Lianor Vaz (3), Mãe (4).
08 Auto das regateiras. Mendigo (5), grupo de duas damas (6), 1, 4.
09 Auto dos dois ladrões. 1, 2, guerreiro de vara na mão (7), guerreiro de costas viradas (8).
10
Auto de Florença. Pastor (9), I, 2, fortaleza.
11 Auto da bela menina. 1, criada (10), pai (11).
12. Scena cavalheiresca.
13 Auto da farsa penada. 9, 1, 8, 10.
14 Auto de Vicente Anes Joeira. 9, 6; beata regateira (12), 2.
15 Auto de Dom Fernando. Zagal (13); 1; D. Fernando (14); 8, 10.
16 Auto das capelas. 13, 8, 1, 6.
17 Auto dos enanos. 13, 7, 1, 2.
18 Auto de Dom André. 14, 3, 10 (au miroir) dama (15).
19 Auto de Dom Luis e dos turcos. I, 2, 3; turco (16).


Temos, portanto, onze vezes a figura primeira; sete vezes a segunda; cinco vezes a oitava; quatro vezes a decima; três vezes a nona; e outras três vezes a decima-terceira; duas vezes a 6ª, a 7ª, a 5ª, a 4ª e a 3ª; uma só vez a 11ª, 12ª, 15ª, 16ª e a 5ª. (1)


(1) Carolina Michëlis de Vasconcelos, Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina, Madrid Sucesores de Hernando, 1922

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Gil Vicente (personas)
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Carolina Michëlis de Vasconcelos, Notas Vicentinas, preliminares de uma edição critica das Obras de Gil Vicente, 1912
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1562)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)
Uma proposta crítico-discursivo-filológica de análise da censura: emendas inquisitoriais na edição de 1586 da Compilação de todas as obras de Gil Vicente
Gil Vicente, Teatro 1502-1536
Gil Vicente, o autor e a obra
Denise Rocha, Xilogravura do Auto de Inês Pereira (1523) de Gil Vicente
Conde de Sabugosa, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911

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Maria José Palla, Gil Vicente as artes plásticas
As Barcas, de Gil Vicente, cinco séculos depois
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segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Gil Vicente (personas)

Ourives da corte, o poeta e dramaturgo português Gil Vicente (c. 1465-1537) escreveu 44 peças teatrais, em português, em castelhano e bilíngues, que foram reunidas pelos filhos Luis Vicente e Paula, no ano de 1562, e editadas como título de Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (...)

Os Doze Apóstolos da Custódia de Belém, Gil Vicente, 1506
MNAA

Gil Vicente escreveu e encenou nos anos 1502 a 1521 as seguintes peças teatrais: Auto da Visitação (1502), Auto Pastoril Castelhano (1502), Auto dos Reis Magos (1503), Auto de São Martinho (1504), Auto da Índia (1509), Auto da Sibila Cassandra (1509), Auto da Fé (1510), Auto dos Quatros Tempos (1511 ou 1516), O Velho da Horta (1512), Exortação da Guerra (1514), Quem tem farelos? (1515), Auto da Barca do Inferno (1517), Auto da Barca do Purgatório (1518), Auto da Barca da Glória (1518), Auto da Alma (1518), Auto do Deus Padre, Justiça e Misericórdia (1519 ou 1520), Auto da Fama (1521), Cortes de Júpiter (1521), Comédia da Rubena (1521), Pranto de Maria Parda (1522) e Dom Duardos (1522). (1)

Em 1502, uma quarta-feira, 8 de junho, representou-se na camara da Rainha D. Maria, que dois dias antes tivera um filho (o futuro D. João III), o Monologo do Vaqueiro, que se pôde considerar a primeira peça dramática com forma litteraria representada entre nós.

Depois, vê-se pelas rubricas das obras do poeta, a grande influencia que na sua factura teve a Rainha D. Leonor. É perante ella que em 1504 é representado na egreja das Caldas o Auto de S. Martinho. É por seu mandado que em 1505 se representa nos Paços da Alcáçova em Lisboa, o Auto dos Quatro Tempos.

Lisboa c. 1500–1510, Crónica de Dom Afonso Henriques, Duarte Galvão
Wikipédia

É em 1506 que em Abrantes, tendo nascido o infante D. Luiz, filho de El-Rei D. Manuel, foi pelo mesmo Gil Vicente feito no serão do Paço um sermão á christianissima Rainha D. Leonor, e a seu mandado o Auto da Alma.

E ás representações que a ella directamente não eram dedicadas, ou por seu mandado feitas, assistiu muita vez como protectora que era do poeta, e como principal elemento da animação e brilho dos serões reaes, a cuja organisação já presidia em tempo de seu marido, nos Paços de Santarém, de Setúbal, etc.


Nascimentos de Principes, casamentos reaes, recepções e despedidas, eram quasi sempre acompanhadas com alguma representação do Gil, que fazia os autos a El-Rei. 

E muitas vezes, sem motivo de festa, ou acontecimento publico, e unicamente por desfastio nas continuas mudanças da Corte, que fugia aos assaltos da peste, tão frequente n'essa épocha, Gil Vicente representava um Auto, ou uma Farça que o seu génio animava com a graça viva das concepções, com o engenho dos argumentos, com a critica mordente dos costumes, com o desenho dos caracteres, com o bem achado das situações.

Algumas figuras do teatro Vicentino
Rui Granadeiro

Foi durante um d'aquelles recrudescimentos de peste em Lisboa, que a Rainha D. Leonor, em 1509, se retirou para Almada. E alli, fiel ás suas predilecções, chamou Gil Vicente para lhe representar um auto. Acudiu elle prompto ao chamamento, e alli mesmo compoz a farça chamada o Auto da índia. Diz a rubrica assim: "Á farça seguinte chamam Auto da Índia".

"Foi fundado sobre que hua mulher, estando já embarcado para a Índia seu marido, lhe vieram dizer que estava desviado, e que já não ia, e ella, de pezar, está chorando. Foi feita em Almada, representada á muito catholica rainha D. Leonor, era de 1519." (2)

Martírio de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, Retábulo de Santa Auta, c. 1522
MNAA.(In)Cultura

(....) algumas peças teatrais de Gil Vicente - Auto da Barca do Inferno (1517), Pranto de Maria Parda (1522), Auto de Inês Pereira (1523) e Auto da Mofina Mendes ou Mistérios da Virgem (1534) - foram publicadas em folhas volantes, cujas edições príncipes se encontram na Biblioteca nacional de Madri (...)

Figuras do teatro vicentino, Auto da Barca do Inferno (ou Auto da Moralidade)
Copilaçam de todalas obras de Gil Vicente (edição de 1586)

conhecido como capa interna e folha de rosto, o frontispício expressa uma faceta da função social da arte, pois tem como objetivo atrair e informar o público leitor. a elaboração dessa página, que tem ilustração e texto escrito, visa um aspecto comercial que leva o leitor a conhecer bem o conteúdo da obra, antes de adquiri-la, já que a mesma utiliza uma imagem ou mais para a construção do sentido do texto (...)

No caso específico, o da análise da xilogravura da folha de rosto de uma obra do século XVI, o Auto de Inês Pereira, de Gil Vicente (Copilaçam de todas as obras de Gil Vicente, edição de 1586), é possível observar o papel da imagem no processo de significação e de criação artística que serve de apoio à compreensão de poéticas visuais e narrativas na concepção do ilustrador, do entalhador e do editor (...)

Figuras do teatro vicentino, Auto de Inês Pereira
Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina

O ilustrador, o entalhador e o editor são leitores e conhecedores da obra, que provavelmente preferiram dar ênfase ao casal - Brás e inês -, na escolha da gravura à esquerda da folha, enquanto que as relações entre as duas senhoras, antigas conhecidas, estão postadas à direita.

A autoria da peça é mencionada, bem como a referência à presença real na estréia em 1523, no convento da cidade de tomar. na época, o autor já estava consagrado na corte, por isso seu nome estampa a página de rosto. não há indicação alguma sobre o nome da editora, do pintor, do entalhador e da data de impressão.

Interessante é a indicação dos personagens com nomes: Inês Pereira, Lianor Vasques, alcoviteira, Latão e Vidal, judeus casamenteiro, e Pero Marques, o segundo marido de inês. o galanteador e elegante escudeiro, Brás da Mata, não tem seu nome mencionado.

Na imagem, ele parece saltitante e com pose de mesuras. Inês segura uma flor de haste longa. Ambos se olham diretamente. As duas mulheres têm idades diferentes; a mãe é mais idosa e está meio encurvada.(3)


(1) Denise Rocha, Xilogravura do Auto de Inês Pereira (1523) de Gil Vicente
(2) Conde de Sabugosa, Embrechados, Lisboa, Portugal-Brasil Lda., 1911
(3) Denise Rocha, Idem

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Gil Vicente, Teatro 1502-1536
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Carolina Michëlis de Vasconcelos, Autos porgugueses de Gil Vicente y de la escuela vicentina, Madrid Sucesores de Hernando, 1922

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