Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões (detalhe) Museu Nacional de Arte Antiga MeisterDrucke |
Cronologicamente, os três retratos são: o de 1556, numa prisão de Goa; e de 1570, feito por Fernão Gomes em Lisboa; e o de 1581, também em Goa, um ano depois da sua morte (v. Luís de Camões, Wikipédia).
Pertencente à colecção camoniana do Centro de Profilaxia, descoberto e revelado pela Dra. Maria Antonieta Soares de Azevedo, num artigo intitulado "Uma nova e preciosa espécie iconográfica quinhentista de Camões" (cf. "Panorama", Lisboa, n°s. 43-44, IV série, Set. 1972), este retrato, o primeiro dos que se conhecem do épico , representa-o na cadeia do Tronco, em Goa, dando-nos, como frisa a reveladora, não só a sua verdadeira imagem, mas fornecendo-nos também alguns elementos que esclarecem a sua vida social e literária, embora subsistam algumas interrogações.
Feita sobre pergaminho, medindo 217 x 145 mm., e pela técnica da iluminura e cartografia do séc. XVI, empregando-se o vermelhão, o azul e o preto, numa espécie de aguada, a pintura representa o poeta numa cela da prisão, de frente, em corpo inteiro, sentado num escabelo, a uma mesa, também de madeira como aquele, mas que à autora do artigo se afigura de feição europeia-hispânica.
Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões Museu Nacional de Arte Antiga MeisterDrucke |
O épico veste gibão preto,.abotoado à frente, de gola e punhos brancos, com dois rasgões na manga esquerda, calções tufados abaixo dos joelhos, calçando meias e sapatos grosseiros. Com uma gorra preta na cabeça, apresenta cabelos compridos de cor alourada, barba e bigode de pontas reviradas para cima, nariz aquilino, densas sobrancelhas e o olho direito cerrado.
Enquanto segura com a mão direita um prato de estanho, meio pousado sobre a mesa, com o que Maria Antonieta Soares de Azevedo supõe ser um pão ou um bocado de massa, com uma malga de duas asas ao lado, na palma da outra mão apresenta o que, segundo ela, seria uma pedra (moeda?).
Do lado direito da mesa vêem-se várias folhas de papel, escritas à mão, na primeira das quais se lê "Canto X", e um tinteiro com duas penas. Junto da mesa, à esquerda vê-se uma bilha, tal como ela a descreve, esguia, de boca ondeada e com asa em forma de um D, e uns grilhões no chão.
Por trás da mesa, vê-se um estreito catre com uma carta de marear desdobrada sobre ele, com duas naus com a Cruz de Cristo nas velas, pondendo ler-se na parte superior a palavra "Goa".
Por cima do catre, vêem-se duas prateleiras, suspensas por grossos cordões, que terminam por borlas, com quatro volumes encadernados, com títulos nas lombadas, que se não podem ler, na prateleira de cima, e três na de baixo, de que só se vê uma parte.
No canto superior direito, vê-se representada numa cartela a prisão do Tronco, com três figuras que parecem ser guardas e por cima outro cartel recortado com a palavra "Prizam", por baixo da qual Maria Antonieta Soares de Azevedo pôde ver confirmada, numa fotografia a raios infra-vermelhos, a data 1556, vendo-se ainda mais duas ou três palavras, difíceis de decifrar.
À direita, ao centro da parede, vê-se uma janela gradeada, através da qual se avistam dois mastros de navios. Como a ilustre investigadora diz em nota, a vista dos mastros através da janela da prisão, tal como se vê situada na planta de Goa no Itinerário de Linschoten (v. Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten), seria uma prova da minúcia com que a pintura foi feita do natural.
Goa, o tronco (prizam) e as cazas do Vice Rey (detalhe) Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten |
O valor deste primeiro retrato de Camões, representando-o preso no Tronco de Goa, estaria no facto de apresentar também, na parte inferior, deliberadamente escurecida, aos pés do poeta, duas figuras; a do lado esquerdo representando o rosto de um vice-rei ou governador, de barba, com a característica gorra, e a do lado direito, a cabeça, voltada para a primeira, de um frade que pelo hábito parece um dominicano.
Para não me alongar em pormenores, direi apenas que essas duas figuras representariam, uma o governador Francisco Barreto, que mandou prender Camões, e a outra um desses "alvitreiros ou novelheiros", o frade de S. Domingos, que teria contribuido para a prisão.
O mercado de Goa, Joannes van Doetecum, década de 1580 Itinerario de Linschoten Wikipedia |
Como a técnica usada é a da cartografia e iluminura, pensa Maria Antonieta Soares de Azevedo que o autor podia ter sido qualquer dos dois cartógrafos contemporâneos do poeta na Índia, Fernão Vaz Dourado ou Lázaro Luís, inclinando-se a crer que fosse o primeiro, que, além de cartógrafo e iluminador, foi também navegador e guerreiro, tendo possivelmente travado relações de amizade com Camões em Goa. Não no-lo diz ela, mas Fernão Vaz Dourado era filho de pai português e mãe indiana. (1)
Mostra um Camões arruivado, de guias do bigode assimétricas, sentado a uma mesa, segurando uma travessa na mão direita e uma pequena peça escura na esquerda. Estará prestes a trabalhar num dos cantos de Os Lusíadas, o décimo para Maria Antonieta Soares de Azevedo (que revelou o retrato na revista "Panorama", Lisboa, n°s. 43-44, IV série, Set. 1972).
Frontispício da colecção de poemas do poeta português Luis Vaz de Camões Museu Nacional de Arte Antiga MeisterDrucke |
O poeta parece dispor de um certo «conforto intelectual»: vemos vários cartapácios na parede, pode consultar uma carta geográfica que tem perto de si, certamente para verificar qualquer afirmação ou referência do poema. Mas o gibão está roto na manga esquerda e a comida representada não parece abundante, não se percebendo bem que objecto mostra na mão esquerda.
Pode confirmar-se que ele está a trabalhar no Canto X exatamente por ter aquela carta geográfica aberta para consulta. Isto porque, n' Os Lusíadas, na descrição geográfica da Europa, feita no Canto III (6-20), não faria qualquer sentido serem representadas as embarcações que ali são figuradas.
Não assim na longa descrição geográfica da Ásia feita no Canto X (10-73), entremeada com as profecias dos feitos dos portugueses. Embarcações semelhantes às representadas nessa carta, movidas à vela (com a cruz de Cristo) e a remos, podem ver-se desenhadas no Roteiro do Mar Roxo (fustas, galés), de D. João de Castro (...)
Fusta com pavilhão português, Joannes van Doetecum, década de 1580 Itinerario de Linschoten Wikipedia |
No cartão que constitui a parte de trás do retrato, informa-se o seguinte, em letra que pode ser do século XVI: «Luis de Camões prezo e tendo aos pés quem quis perdelo. Pintado nas Indias e foi do propio.»
E mais abaixo, em letra de fins do século XVIII, está colada a tarjeta dizendo que o «painel pertenceu a Sr. Marquez de Sande é hoje de Joze Antonio de Salda e Sousa, Conde da Ponte (...).»
Por sua vez, a nota que se encontra no verso, «Luís de Camões preso e tendo aos pés quem quis perde-lo», permite deduzir que o borrão que impede se reconheça «quem quis perdê-lo» só ocorreu posteriormente à feitura de tal inscrição. (2)
(1) Carmo Azevedo, Retratos de Camões: os três feitos em Goa
(2) Vasco Graça Moura, Camões na prisão, 09 de outubro de 2013
Artigos relacionados:
Os Joinville e A morte de Camões de Domingos Sequeira
Leitura relacinada:
Pedro de Mariz, Ao estudioso da lição poética in Os Lusiadas (...)
Maria Antonieta Soares de Azevedo, Quando Camões fala de si... 1981
Vasco Graça Moura, Retratos de Camões, Sociedade Portuguesa de Autores/editora Guerra & Paz, 2014
Colóquio Letras nº 55, maio 1980
Luís de Camões (1524?-1580), Os Lusiadas, Lisboa, em casa de Antonio Gõçaluez, 1572
Itinerario, by Jan Huygen van Linschoten
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